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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

DESCONFINADOS E DESMASCARADOS. 2

 

Na crónica anterior, tentei reflectir sobre o desconfinamento. A crónica de hoje, que não põe de modo nenhum em causa a importância do uso da máscara no contexto da pandemia, tenta ser uma breve reflexão sobre outras máscaras e a necessidade do desmascaramento, outro desmascaramento. Não se dedica a um estudo aprofundado sobre a história e a riqueza cultural da máscara, desde as máscaras das divindades e dos guerreiros, passando pelo teatro, até aos bailes de máscaras e aos carnavais. Aqui, é aquela máscara que colocamos, umas vezes inconscientemente outras conscientemente, para parecermos o que realmente não somos, enganarmos os outros e enganarmo-nos a nós próprios. Temos medo e vergonha de nós, do que verdadeiramente somos? O desmascaramento é particularmente urgente numa sociedade como a nossa: sociedade do parecer, da pós-verdade, do espectáculo e, por isso, da mentira e da ilusão.

 

Quem esperava esta pandemia? Um vírus invisível chegou e invadiu o planeta e atingiu a Humanidade inteira. E foi preciso fazer uma pausa, e tudo o que parecia inadiável ficou parado, para depois, para quando for possível. Afinal, quais são as prioridades? Foi e é preciso colocar uma máscara, porque a covid-19 nos desmascarou quanto à nossa pretensa omnipotência. Afinal, não somos omnipotentes nem imortais. Fomos desmascarados. Como disse o filósofo Nicolas Grimaldi, “trata-se de um acontecimento natural como pode sê-lo um tremor de terra. Isso teria interessado a Pascal: como é que um infinitamente pequeno como um vírus pode produzir efeitos tão imensos? A Humanidade toma consciência da sua universalidade ao tomar consciência da sua mortalidade, da sua precariedade, em toda a parte no mundo, no mesmo momento. De repente, é-nos lembrado: é igual em toda a parte, porque vamos morrer.” E fomos obrigados, inevitavelmente, a pensar. Porque é a morte, o impensável, que obriga a pensar no essencial: o que é morrer?, o que é estar morto?, para onde vão os mortos?, “onde estarei quando deixar de existir?” (Tolstoi), “que morto serei para os que me sobreviverem?” (Paul Ricoeur), o que é existir autenticamente, porque é que há algo e não nada?, para quê tudo?, qual é o sentido último da minha vida?, o que sou?, quem sou?, o que é que quero verdadeiramente ser?, o que é que autenticamente vale?

 

E agora? Vai ser diferente para o futuro? Mudámos de forma duradoura? Contra tantos que dizem que sim, eu, mesmo fazendo figura de pessimista, temo que esteja na cabeça da grande maioria, e no mais profundo, o desejo de voltar ao antes, à vida como era. Como escreveu o filósofo Abdennour Bidar, que já várias vezes aqui citei, “passar-se-á da anormalidade extraordinária do confinamento imóvel à anormalidade ordinária do corre-corre febril. Dois confinamentos, um em casa, o outro ‘fora de si’, numa existência dispersa que nada tem a ver com o essencial.”  Desejo de voltar às máscaras da aparência, do ter, do poder, da corrupção, da sociedade da produção-consumo, que assenta a sua lógica no tabu da morte. Disso pura e simplesmente não se fala, há pudor em falar dela.

 

A morte desmascara e obriga a tirar as máscaras do parecer, da hipocrisia, da mentira, do medo de dizer a verdade, da cobardia, da competição feroz, das vaidades do ter e do poder pelo poder... Face à morte, como tudo o que não é essencial se torna pequeno! Martin Heidegger foi o filósofo do século XX que levou mais fundo o pensamento sobre a morte. O Homem é o ser da possibilidade, o existente para quem no seu ser a questão é esse mesmo ser, isto é, a quem o seu ser é dado como tarefa, como poder ser. Ora, a morte é a sua  possibilidade “mais própria”, pois é a que mais o caracteriza, “irreferível”, pois corta a relação com tudo o resto, remetendo-o para si próprio, “intranscendível”, pois, enquanto possibilidade da impossibilidade, é a possibilidade extrema, a que se não pode escapar. A tentação permanente é distrair-se e não assumir a morte como essa possibilidade mais própria, irreferível, intranscendível, escapando-lhe pelo palavreado tagarela, pelo fazer como toda a gente faz, pelo recurso ao “toda a gente morre”, mas não propriamente eu. O Homem cai então no esquecimento de si mesmo e perde-se numa existência inautêntica.

 

Nas nossas sociedades tecnocientíficas e citadinas, a morte tornou-se tabu, o último tabu. Mas, ao perder o sentido da morte, perde-se o sentido da vida e o sentido da filosofia e da religião — sem a morte e a consciência dela, haveria religião e filosofia? E perde-se também o sentido ético: de facto, sem a consciência do limite no tempo, não se ergueria a questão ética na sua urgência da liberdade na definitividade. É o pensamento sadio da morte que obriga a distinguir entre o bem e o mal, entre o justo e o injusto, o que verdadeiramente vale e o que não vale, entre a superficialidade e o definitivo. E que dá o horizonte da fraternidade, como viu também o filósofo Herbert Marcuse, autor da obra célebre e marcante dos anos 1960, O Homem unidimensional, denunciando a redução do Humanum a uma só dimensão: a de consumidor entregue à cultura consumista, ao prazer e ao divertimento segundo padrões estandardizados. À beira de morrer, disse Marcuse ao amigo Jürgen Habermas: “Sabes, Jürgen? Agora, sei onde se fundamentam os nossos valores e juízos morais: na compaixão.”

 

Lídia Jorge, a grande escritora, marcada pela morte recente da mãe, de quem não se pôde despedir, tem razão: “Não somos nada enquanto não estivermos preparados para morrer.”

 

Este pensamento nada tem a ver com menosprezo pela vida e pela alegria de viver. Pelo contrário, ele remete-nos para a vida na sua exaltação exultante. Viver quando? Precisamente agora, intensamente. Que cada instante seja um hino à vida no seu esplendor, no milagre de ser e viver!... Na liberdade toda, na serenidade combativa, sem máscaras para nós nem diante de ninguém.

 

Poderá então erguer-se um outro pensamento, que vem de outro filósofo maior do século XX, Paul Ricoeur, que morreu há 15 anos, precisamente no dia 20 de Maio de 2005, com 92 anos. Poucas semanas antes de morrer, diz-nos Catherine Portevin, escreveu a uma amiga: “Do fundo da vida, surge um poder, um poder que diz que o ser é ser contra a morte. Acredite nisso comigo.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 14 JUN 2020

DESCONFINADOS E DESMASCARADOS

 

Claro que precisamos da devida “distância social” e do confinamento apropriado e, evidentemente, também e sobretudo, da máscara. Para preservarmos a saúde, a nossa e a dos outros. Podemos contagiar-nos uns aos outros e somos responsáveis uns pelos outros. Quem é cristão tem uma razão suplementar para isso: segundo os Evangelhos, um dos interesses e preocupações maiores de Jesus foi a saúde das pessoas. Por isso, não entendo aquele debate à volta da comunhão na mão ou na boca, havendo quem invoque razões para a comunhão na boca. Sempre fui contra a comunhão na boca, pois só damos de comer na boca às crianças. Agora, ainda mais se impõe a comunhão na mão, por causa da preservação da saúde. Ah!, e para quem continua a propugnar a comunhão na boca: não é verdade que provavelmente há línguas mais sujas do que as mãos?

 

Mas não foi este tema que me motivou hoje. A questão é mais funda. O que provoca a minha reflexão de hoje são outros confinamentos e outras máscaras, ficando a crónica de hoje para os desconfinamentos e a da próxima semana para os desmascaramentos. Desconfinados e desmascarados.

 

1. Como a gente se sente mal no confinamento! Mas, ao contrário do que pensamos, andamos e somos demasiado confinados, no sentido de auto-centrados, e, por isso, pobres, se não paupérrimos. Afinal, na contradição de nós. Vejamos.

 

Uma vez, uma antiga aluna pediu-me para ir à escola onde agora lecciona, para fazer uma palestra sobre o umbigo, esperando ela que fosse falar sobre o egoísmo, o individualismo. Cheguei lá e fui mostrando aos jovens que é verdade que essa expressão de “voltado, voltada para o seu umbigo” é vulgarmente usada com esse sentido. Mas em contradição com o próprio umbigo. De facto, o umbigo é em nós a marca biológica de que não vimos de nós, vimos de uma relação, não somos a nossa origem.

 

Outra vez, uma outra estudante queria uma nota melhor. Para isso, até escreveu um trabalho sobre ética. Na defesa, perguntei-lhe: “Se houvesse uma única pessoa no mundo, como seria um tratado de ética?”. E ela: “Nem sequer se punha a questão ética, porque essa ‘pessoa’ não sabia que era ser humano.” E teve a boa nota que queria.

 

É isso: somos seres humanos com e entre seres humanos, fazemo-nos uns aos outros e uns com os outros. Quem não ouviu falar no menino-lobo, que viveu sempre com lobos e que se comportava como lobo, que não sabia falar? É isso: depois do nascimento, precisamos de um “segundo útero”, até, pelo menos, adquirirmos a posse da palavra, tornando-nos então verdadeiramente humanos. Talvez percebamos agora melhor, no meio do confinamento, a falta que fazem as creches para a socialização e crescer saudavelmente, e as escolas, não só para aprender as matérias de ensino, mas aprender, na presença física e na interacção, essa que é a nossa tarefa primeira: irmos sendo homens e mulheres, adultos, autênticos, livres. E o que se pôde observar com as pessoas de idade, confinadas, sem visitas, como se estivessem encerradas em autênticos “jazigos vivos”? Quem se fecha sobre si morre, melhor, já está morto. Porque a vida é comunicação, comunicação de todo o tipo: pelo olhar, pelo toque, pelo afecto, pela palavra, pelos silêncios, pela ressonância...

 

Sem tu, não há eu, constituindo um nós. A identidade pessoal é sempre atravessada pela alteridade. O outro, os outros, fazem parte da minha identidade: que seria eu sem eles? E, quando falo dos outros, estou a falar dos que conheço e de todos os que não conheci nem é possível conhecer: aí estão, do ponto de vista biológico, os bisavós, os trisavós, os tetravós... — até onde? e com todos os cruzamentos pelo caminho... Mas estão igualmente presentes todos aqueles e aquelas que me influenciaram, que eu, por exemplo, li..., e aí estão romances, obras de literatura, de filosofia, de teologia..., que fazem parte de mim, que sou eu, sem dar por isso. Somos sempre o resultado de uma herança genética e de histórias e encontros (e desencontros) culturais... De tal modo é assim que muitas vezes me pergunto: se tivesse encontrado outras pessoas, se tivesse frequentado outras escolas e universidades, se não tivesse tido as oportunidades que tive e algumas ousadias na descoberta do mundo..., seria eu? Sim eu, mas de outro modo. Como? Tantas possibilidades em aberto...

 

O paradoxo é este: é na abertura a tudo, ao Infinito, que o ser humano toma consciência de si como único, na intimidade mais íntima. Nisto, nos distinguimos dos outros seres, ascendendo. Uma pedra, por exemplo, tem relação com o que a rodeia, mas numa ligação pétrea, exterior. A árvore já lança raízes e a sua relação com o que a rodeia já é viva, a árvore tem a vida chamada vegetativa. Um cão rafeiro passeia-se por muitos lados e, portanto, o nexo de ligações é muito mais amplo, já tendo consciência de si, não consciência de que é consciente, evidentemente, mas alguma consciência, que o faz distinguir-se dos outros. O ser humano, esse, está em relação com tudo: com o que está perto e com o que está longe, com o real, mas também com o imaginário, com o possível e o impossível, com o que há e com o que não há, com o hipotético, está em ligação com todos o seres, com o Ser, com os mais próximos, com todos os que o precederam, na história do universo, e, recuando, atravessa o quando não havia vida e depois se passou ao vivo, e depois, na evolução constante, se avançou para o erectus e para o sapiens e o sapiens sapiens e vai até ao Big Bang e, aí chegado, ainda pergunta porque é que há algo e não nada, pergunta pelo Fundamento último e pelo Sentido último de tudo. É nesta abertura que, paradoxalmente, o ser humano vem a si, reflectindo sobre si mesmo como um eu único, consciente de que é consciente, numa unicidade indizível, até para si próprio. Cada um e cada uma podem e devem dizer a si mesmos, para bem e para mal: “Nunca houve nem haverá na História alguém como eu.” Este é o enigma e o mistério do ser humano, de tal modo que somos uma questão imensa, irresolúvel, para nós próprios, já que não é possível conhecermo-nos completamente a nós mesmos, porque não conseguimos objectivar-nos totalmente. Somos uma subjectividade que não é completamente acessível a si própria: não podemos ir à janela ver-nos a passar na  rua... Quer dizer, por mais que objectivemos de nós, para nos conhecermos, nunca nos objectivamos plenamente, pois somos uma subjectividade que se retrai a uma total objectivação.

 

Não há dúvida. Somos constitutivamente relação. Não somos primeiro nós, que, num segundo momento, entramos em relação. Somos sempre em relação, de tal modo que ser e ser em relação se identificam. Relação com os outros, relação com a natureza, relação com a Transcendência, com Deus. É assim que, em tensão, vimos a nós como centros pessoais, cada um, cada uma em autoposse e liberdade, liberdades que se reconhecem mutuamente com igual dignidade.

 

P.S. Quando se trava um combate por vezes heróico contra a pandemia, querer voltar ao Parlamento com a eutanásia é, no mínimo, uma falta de pudor.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 7 JUN 2020