Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
No século VIII, no contexto da ameaça militar e religiosa do islão a Bizâncio, a tradição cristã viu-se confrontada com a pureza radical do monoteísmo islâmico e a sua proibição das imagens. Os imperadores bizantinos mandaram destruir as imagens e os seus defensores foram perseguidos como idólatras. Embora esta luta dos iconoclastas tenha acabado com a vitória dos iconódulos (veneradores das imagens), pois Jesus Cristo é a imagem visível de Deus, nunca deveria esquecer-se que Deus é infinitamente transcendente e, se o Homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, Deus não é à imagem do Homem.
Diz-se perante certas imagens: vale mais uma imagem que milhares de palavras. Pense-se, por exemplo, naquelas imagens televisivas das crianças esfomeadas no mundo — pequenos andaimes de ossos a soçobrar, num olhar suplicante e quase morto —, e o soco que nos dão no estômago e na alma.
Aqui, porém, do que se trata é da civilização da imagem, daquela civilização que quer a visualização de tudo. Trata-se daquilo para que uma aluna uma vez me chamou a atenção. Ela tinha feito um trabalho sobre A Sociedade do espectáculo, de Guy Debord, um dos breviários da geração de 68, e disse-me: “Viu a transmissão televisiva do funeral do Papa João Paulo II? Aquilo era espectáculo, donde o mistério da morte foi arredado. Logo a seguir, em sequências vertiginosas, lá estavam imagens publicitárias e futebol: tudo o mesmo.” Ah! A alienação com o futebol: “pensar com os pés” (Carlos Fiolhais)!
Há perigos na civilização da imagem?
Nela, por paradoxal que pareça, julga-se que se está perante a hiper-realidade, mas o que se vai impondo é o virtual, com a consequente perda da realidade real.
Depois, é isso: a vertigem de imagens e de informações, em voragem. Mas, então, onde está o tempo da possibilidade de distanciamento e de crítica? Ah!, e a própria crítica, se existe, tem de ser dada em espectáculo, dissolvendo-se então com ele e nele, pois, como escreveu José María Mardones, mais do que permitir a reflexão e a crítica, do que se trata é de vender e “seduzir”.
Na civilização da imagem, importante não é ser, mas parecer e aparecer. Quem não aparece existe? Por isso, lá dizem os políticos, e não só eles, que decisivo é aparecer, mesmo se se diz mal deles.
De novo José Maria Mardones: o predomínio da imagem, com a pretensão de mostrar tudo, até a interioridade do sujeito, tem outra consequência perversa: “o esvaziamento da intimidade”. Por causa disso, eu fui uma vez à televisão para prevenir e chamar a atenção para a necessidade da distinção não apenas do público e do privado, mas do público, do privado e do íntimo. De facto, não anda para aí tudo desavergonhadamente escancarado, sem réstia de pudor?...
O símbolo, esse, abre para a profundidade do real e para o mistério e vincula à transcendência. Na civilização da imagem, onde a realidade é o que se mostra, vive-se na imediatidade do que há, do mercado das sensações, do empírico-funcional, e, portanto, na in-transcendência.
E uma conclusão, que pode parecer abrupta. Por vezes, há quem se espante com a indiferença e a distância dos jovens em relação à política. Seja-me permitido espantar-me com esse espanto. Razão de fundo – não a única, evidentemente, – para esse distanciamento está em que o espectáculo da política e dos políticos é muitas vezes deprimente e pouco recomendável. Não está a própria Assembleia da República, por exemplo, a sucumbir por vezes à falta de vergonha, à má-criação?...
Com o fim do trabalho simbólico e o império da imagem e da técnica, o mundo humano vai definhando. Sem o símbolo, também não há lugar para a religião na sua autenticidade e verdade. E corre-se o perigo da idolatria.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia 22 de fevereiro de 2025
Estátua do Imperador Constantino I. Foto: Angelina Dimitrova / Shutterstock.com
Nos Estados, há cerimónias oficiais, sendo natural que se estabeleça um protocolo de Estado. Em Portugal, já houve um debate à volta disso, e a Igreja católica e as outras confissões religiosas deixaram de ter lugar no protocolo.
É assim que deve ser. De facto, a que título é que as autoridades religiosas haveriam de surgir na lista de precedências no protocolo, concretamente num Estado regido pelo princípio da não confessionalidade, portanto, da separação da(s) Igreja(s) e do Estado?
“Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, foi programaticamente declarado por Jesus Cristo. Esta separação do político e do religioso não tinha sentido na Grécia, que não separava o cívico e o cultual, nem para o judaísmo, que unificava nação e religião. Como escreveu Régis Debray, em Jerusalém, Atenas e Roma, “o ritual cívico é religioso, e o ritual religioso é cívico”. Para as três culturas que estão na base da nossa, alguém que estivesse fora da religião estava fora da Cidade.
Contra o preceito de Cristo que delimitou campos de poder, Constantino, apesar da sua “conversão” ao cristianismo, não esqueceu a divinização imperial e intrometeu-se nas questões da Igreja, convocando concílios, condicionando ou mesmo determinando as suas decisões. O Papa Bonifácio VIII formulou a teoria das duas espadas, segundo a qual o Papa detém o poder espiritual e o temporal, mas, se exerce o primeiro directamente, delega o segundo nos príncipes, que o exercem em representação do Papa. Para se defenderem dos Papas, os monarcas reivindicaram o direito divino dos reis. Mesmo Lutero afirmou o carácter divino de toda a autoridade estabelecida.
A modernidade impôs a secularização, pondo fim a equívocos próprios da Cristandade e de césaro-papismos. Mesmo que se não esteja completamente de acordo com autores que sustentam que a secularização é um fenómeno produzido pela fé cristã, é necessário afirmar que, ainda que, de facto, tenha tido de impor-se contra a Igreja oficial, a secularização, no sentido da autonomia das realidades terrestres e concretamente da separação da Igreja e do Estado, tem raízes bíblicas.
O monoteísmo desdivinizou a política e os detentores do poder político. O profeta Ezequiel advertiu o rei de Tiro: “Tu és um homem e não um deus”. Jesus deixou aquela palavra decisiva sobre Deus e César. Por isso, os cristãos opuseram-se frontalmente à divinização do imperador, proclamando que “só Deus é o Senhor” e recebendo em troca a acusação de ateísmo.
Em ordem à dessacralização da política e à consequente separação da Igreja e do Estado, foram decisivas as guerras de religião na Europa. De facto, só mediante essa separação, que significava a neutralidade religiosa do Estado, era possível a garantia da liberdade religiosa de todos os cidadãos sem discriminação. Com a desconfessionalização do Estado, os cidadãos tornaram-se livres de terem esta ou aquela religião ou nenhuma.
É, porém, importante perceber que essa exigência não deriva apenas da necessidade do estabelecimento da paz política e civil, mas da natureza do cristianismo. A própria fé impõe essa separação. De facto, sem ela, espreita constantemente o perigo de idolatria, isto é, de confusão ou até de identificação entre Deus e a política.
Um Estado confessional põe em causa a transcendência divina. Por outro lado, acaba por impor politicamente o que só pode ser objecto de opção livre. Ninguém nasce cristão, mas as pessoas podem livremente escolher o cristianismo. Só homens e mulheres verdadeiramente livres podem aderir à fé religiosa e a Deus.
Jesus recusou a tentação de ser um Messias político, embora tenha sido condenado à morte como blasfemo e subversivo social e político, pois a sua mensagem, que não se confunde com a política, tem consequências sócio-políticas. E é aqui que reside o núcleo da questão. A Igreja não pode fazer política partidária. Mas isso não significa que deva ou possa remeter-se para a tranquilidade beata das sacristias. O seu interesse e caminho é o Homem, e isso exige uma intervenção pública na denúncia das injustiças e na defesa e promoção da dignidade humana toda.
A Igreja não precisa nem quer privilégios, pois apenas pede para si o que exige para todos: liberdade. Antes de mais, liberdade para defender os mais desfavorecidos, os velhos, os reformados pobres... Aliás, de um modo ou outro, a factura das precedências no protocolo do Estado e dos privilégios em geral acabaria sempre por chegar, tolhendo-lhe a independência crítica. Isto não significa que não possa e até deva haver uma colaboração sadia entre a Igreja e o Estado para o bem comum, concretamente no referente a questões sociais.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia 18 de fevereiro de 2025
"Se a verdade é mulher, não teremos razões para suspeitar que todos os filósofos, na medida em que foram dogmáticos, pouco entenderam de mulheres?" É com estas palavras que Nietzsche inicia a sua obra Para Além do Bem e do Mal, escrita em Sils-Maria, 1885.
Esta afirmação aplica-se não só aos filósofos, mas também aos teólogos, e, em geral, infelizmente, aos dirigentes, por princípio homens, da Igreja Católica.
Embora se não excluam traços maternos em Deus, a Bíblia chama a Deus Pai e não Mãe. Em primeiro lugar, porque se vivia numa sociedade patriarcal, e, depois, porque era necessário evitar toda uma linguagem que lembrasse as deusas pagãs da fertilidade...
É claro que Deus não é sexuado; portanto, chamar-lhe Pai é uma metáfora. Assim, tanto poderíamos dirigir-nos a ele como a ela, isto é, tanto poderemos chamar-lhe Pai como Mãe. E acrescento mesmo: o Deus que Jesus anunciou é o Deus bom e os cristãos deveriam dirigir-se-lhe sempre como Pai e Mãe (Pai/Mãe) — veja-se o famoso quadro de Rembrandt “O Regresso do Filho Pródigo” e repare-se nas mãos do Pai...
No Credo cristão, referimo-nos a Deus como Pai omnipotente criador do céu e da terra. Não dizemos: Mãe omnipotente. Isso está também vinculado à concepção da biologia grega, concretamente aristotélica, que, no acto da geração, atribuía toda a actividade ao sémen masculino. Portanto, a mulher era considerada essencialmente passiva. Não se esqueça que o óvulo feminino só em 1827 foi descoberto. Por isso, Santo Tomás de Aquino, na sequência de Aristóteles dirá expressamente que "a mulher é algo de falhado": de facto, de si, a força activa do sémen está orientada para gerar uma realidade plenamente semelhante, portanto, do sexo masculino; a geração do feminino acontece devido a uma fraqueza. Daqui concluirá que por natureza a mulher é subordinada ao homem, que os filhos devem amar mais o pai do que a mãe, que o sacerdócio está vedado às mulheres, que as mulheres não podem pregar, pois a pregação é um exercício de sabedoria e autoridade, etc...
Estas e outras razões, como, por exemplo, influências gnósticas e o celibato obrigatório dos padres, contribuíram para que a Igreja Católica se tornasse altamente hierarquizada e masculinizada, patriarcal. Note-se como a própria língua, que é sedimentação e forma de um mundo, está, no referente à autoridade, estruturada de modo machista: basta pensar que, se já não nos causa hoje dificuldade ouvir falar em ministra, por exemplo, ainda constitui autêntica agressão dizer, por exemplo, uma bispa... E que nome dar a uma católica feita cardeal?!...
As mulheres têm toda a razão quando criticam a Igreja oficial, pois ela discrimina-as de modo indigno. Mas têm obrigação de ser amigas de Jesus, pois ele não só não as discriminou como as defendeu sempre. Pense-se — só exemplos — na samaritana, na adúltera...; pense-se sobretudo em Maria Madalena, a primeira a fazer a experiência avassaladora de fé de que Jesus, o crucificado, ressuscitou, está vivo em Deus para sempre; ela reuniu de novo os discípulos, que tinham fugido, de tal modo que até Santo Tomás a chamou a “Apóstola dos Apóstolos”...
Constitui, pois, uma amarga desilusão que o Sínodo que terminou em Outubro com a aprovação do Papa mantenha as portas fechadas à possibilidade da ordenação das mulheres. Contra o Evangelho e os direitos humanos, continua o “clericalismo” que Francisco tanto diz ser “a peste” da Igreja. (Continua)
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 15 de dezembro de 2024
Quando olhamos para os horrores do mundo hoje, concretamente para a Ucrânia e o Médio Oriente, é o horror pura e simplesmente, pensando concretamente nas vítimas inocentes. Mas não foi sempre assim? Veja-se Auschwitz. A gente vai lá e fica estarrecido. Bento XVI foi lá também e deixou estas palavras: Há “um silêncio que é um grito interior para Deus: Porque te calaste? Porque quiseste tolerar tudo isto? Onde estava Deus nesses dias? Porque se calou?”
Ele deixou uma encíclica sobre a esperança — Spe salvi —, e nela debruça-se sobre uma pergunta decisiva, “a pergunta fundamental da Filosofia” (Max Horkheimer) : o que podem esperar as incontáveis vítimas inocentes da História? Quem lhes fará justiça? Elas clamam, um grito ensurdecedor percorre a História.
E ergue-se um ateísmo moral precisamente por causa das injustiças do mundo e da História . “Um mundo no qual há tanta injustiça, tanto sofrimento dos inocentes e tanto cinismo do poder, não pode ser obra de um Deus bom”. Quase se poderia dizer que se é ateu ad majorem Dei gloriam, para a maior glória de Deus, como se, perante o horror do mundo, a justificação de Deus fosse não existir. É-se ateu por causa de Deus.
Afastado Deus, deve ser o Homem a estabelecer a justiça no mundo. Mas não será esta uma pretensão arrogante e intrinsecamente falsa? Quem não ouve o eco das palavras de Sófocles: Na terra “há muita coisa terrível, mas nada existe mais terrível do que o Homem.”. Tem, pois, razão Bento XVI, ao acrescentar: “Um mundo que tem de criar a sua justiça por si mesmo é um mundo sem esperança. Ninguém nem nada responde pelo sofrimento dos séculos”.
Aqui, ele lembra a Escola de Frankfurt, nomeadamente Max Horkheimer e Theodor Adorno, que viveram filosoficamente a inconsolável “tristeza metafísica” da impossibilidade de fazer justiça às vítimas da História. De facto, mesmo supondo, no quadro do marxismo e da ideia do progresso moderno, que algum dia fosse possível erguer uma sociedade finalmente justa, transparente e reconciliada, ela não poderia ser feliz, já que ou essa sociedade se lembrava de todas as vítimas do passado, que não participam dela, e seria atravessada pela infelicidade, ou não se interessava por elas e então não era humana, porque insolidária.
Horkheimer e Adorno exprimiram uma filosofia em tenaz: por um lado, não podiam acreditar num Deus justo e bom; por outro, há uma verdade da religião, apesar de todas as suas traições no conluio com o poder e os vencedores: a religião “no bom sentido” é, segundo Horkheimer, “o anelo inesgotável, sustentado contra a realidade fáctica, de que esta mude, que acabe o desterro e chegue a justiça”. Não se trata de um desejo egoísta, mas da esperança contrafáctica de que a realidade dominante da injustiça não tenha a última palavra. Daí, o “anelo do totalmente Outro”, o “anelo da justiça universal cumprida”, “a esperança de que a injustiça que atravessa a História não permaneça, não tenha a última palavra”. E Adorno também escreveu que, frente às aporias da razão, neste domínio, a única filosofia legítima seria “o intento de contemplar todas as coisas como aparecem à luz da redenção”. Embora se não possa afirmar nada para lá da imanência, a pergunta pela esperança truncada das vítimas, que acusam o mundo da história dos vencedores, obriga a pensar para lá dos limites da imanência, colocando a pergunta pelo Absoluto enquanto pergunta pela justiça universal.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 24 de novembro de 2024
«Deus - A Ciência - As Provas – A Alvorada de Uma Revolução» (D. Quixote, 2024) de Michel-Yves Bolloré e Olivier Bonnassies constitui um documento importante com interrogações que nos permitem compreender que o tempo das conclusões definitivas sobre a ciência, o universo e a vida terminou, dando lugar à abertura de espírito.
UM DESAFIO A PENSAR A obra que acaba de ser publicada em Portugal, dada à estampa em França em 2021, resultou de três anos de labor envolvendo vinte cientistas e especialistas dos temas tratados, correspondendo a um trabalho hercúleo, envolvendo quatro séculos de descobertas científicas, de Copérnico a Freud, passando por Galileu e Darwin. Se as descobertas se acumularam de modo espetacular nesse tempo, a verdade é que, depois do otimismo positivista do início do século XX, sucedeu a oscilação do pêndulo da ciência num sentido da ponderação de novos fatores ditados pela descoberta da teoria da relatividade, da física quântica, da expansão do Universo e da complexidade da vida. Os novos conhecimentos abalaram as certezas consagradas e permitiram considerar a lógica materialista como uma crença como tantas outras, com o risco de se converter num entendimento contrário à razão. Eis por que motivo é importante esta obra, cujos autores apresentam em linguagem acessível e de uma forma aberta e crítica, um panorama rigoroso das provas possíveis da existência de Deus. Longe de uma perspetiva confessional, estamos perante a apresentação de um percurso complexo, que não para e que nos obriga a refletir. O objetivo dos autores é apresentarem os elementos necessários para pensar sobre a questão da existência de um deus criador, que se põe em termos completamente novos. A leitura é de facto apaixonante e pressupõe uma evolução, que se traduz numa “grande inversão” em cinco séculos de descobertas desde o crescimento ao declínio das ideias “materialistas”. Senão vejamos. Há um primeiro ciclo que envolve, desde 1543, o heliocentrismo de Copérnico e Galileu, a gravitação de Newton, a idade da Terra de Buffon, o determinismo de Laplace, a evolução de Lamarck, a seleção natural de Darwin, a dialética de Marx e a psicanálise de Freud. Depois abre-se o segundo ciclo da termodinâmica e da morte térmica do Universo, com Carnot, a mecânica quântica e o princípio da indeterminação de Max Planck, Heisenberg e Bohr, a relatividade, a expansão do Universo e o Big Bang, de Einstein e Friedmann, o teorema da incompletude de Gödel, a descodificação do genoma de Watson e Crick, o descrédito das teorias de Freud e o colapso do bloco soviético, a refutação do Big Crunch e o princípio antrópico do astrofísico Brandon Carter. Como afirma no prefácio Robert W. Wilson, prémio Nobel da Física (1978): “vivemos num desses multiversos que beneficiou de boas constantes para nos engendrar como descreve o princípio antrópico bem conhecido. Na minha opinião, porém, nenhuma destas hipóteses avança uma explicação científica convincente sobre a forma como, afinal, o Universo pode ter começado”. Caminhamos numa via de tentativa e erro, não sabendo o suficiente para ser intolerantes, como nos ensinou Karl Popper. Daí a importância de se explorar a ideia de um espírito ou de um Deus criador, que encontramos nas numerosas religiões.
DOIS GÉNIOS Albert Einstein ajuda-nos a perceber esta obra, afirmando: “Não sou ateu e não creio que possa dizer-me panteísta (…). O que me separa da maioria daqueles a que se chama ateus é o sentimento de uma humildade total perante os segredos inacessíveis da harmonia do cosmos. (…) Os ateus fanáticos são como escravos que continuam a sentir o peso das suas grilhetas que rejeitaram após uma luta encarniçada. São criaturas que, no seu rancor contra a religião tradicional concebida como ‘ópio do povo’, já não conseguem ouvir a música das esferas celestes”. E afirma ainda: “Sentir que, por detrás de tudo o que a experiência consegue apreender se encontra alguma coisa que o nosso espírito não consegue assimilar e cuja beleza e sublime só nos tocam indiretamente sob a forma de um ténue reflexo, isto é a religião. E neste sentido sou religioso”. Por isso, defendia que a religiosidade cósmica seria a mola mais forte e mais nobre da investigação científica. É notável o testemunho de Kurt Gödel, um dos nomes mais importantes no pensamento contemporâneo. Da sua amizade com Einstein em Princeton colhemos este testemunho. “Regresso a casa com Einstein quase todos os dias, e falamos de filosofia, de política e dos Estados Unidos. A religião dele é bem mais abstrata, tal como a de Espinosa ou a da filosofia indiana. A minha é mais próxima da religião da Igreja. O Deus de Espinosa é menos do que uma pessoa, o meu é mais do que uma pessoa, porque Deus não pode ser menos do que uma pessoa. Pode desempenhar o papel de uma pessoa”. Se as religiões estavam cheias de impurezas, haveria que preservar o essencial do fenómeno religioso. E pode dizer-se que Gödel definia assim o seu pensamento: “O mundo não é caótico e arbitrário, mas como mostra a ciência, a maior regularidade e a maior ordem reinam em toda a parte. A ordem é uma forma de racionalidade. A ciência moderna mostra que o nosso tempo, com todas as suas estrelas e planetas, teve um começo e terá provavelmente um fim. Porque haveria, então, de haver este mundo único aqui? Visto que um dia aparecemos neste mundo sem sabermos como, nem de onde, o mesmo pode acontecer de novo num outro mundo da mesma maneira. Se o mundo está organizado de forma racional e tem um significado, então deve haver uma outra vida. Para que serviria produzir uma essência (o ser humano) com tão grande número de possibilidades de desenvolvimentos individuais e de evoluções nas suas relações, mas a quem nunca poderia ser permitido realizar mais do que um milésimo delas? Seria como construir os alicerces de uma casa com grandes dificuldades, e depois deixar tudo ruir”. E assim espírito e matéria são distintos – e esta é a base do teorema da incompletude. “O meu teorema mostra somente que a mecanização das matemáticas, ou seja, a eliminação do espírito e das entidades abstratas, é impossível”. Se há uma conclusão fundamental é a de que, como pretendeu Pascal, qualquer simplificação unilateral é perigosa. Se fossemos testemunhas silenciosas dos diálogos entre Einstein e Gödel em Princeton perceberíamos que a atitude correta é a que nos leva a recusar as opções sem saída. Somos demasiadamente imperfeitos para poder ficar pelas simplificações redutoras. A complexidade reserva-nos inúmeras surpresas e diz-nos que não há uma só motivação para um mesmo acontecimento e que as aparências são profundamente ilusórias.
DE LISBOA A BRAGA, DE BRAGA AO CÉU… por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
Acontecem-me dias assim: acordo e entro em oração e por lá vou ficando. Começa por escuta da Palavra, que uma leitura desperta, e me leva à contemplação, esse silêncio que nos agarra e conduz para além do que entendemos, até ao inefável mistério, perante o qual somos forçosamente humildes. E é assim pequenino que - como nos bandos de miúdos em que um vai à frente e os outros se escondem, aguardando - eu chamo os outros, vivos e mortos, parentes e estranhos, aqueles com que embirro e os mais próximos a quem quero tanto!, para uma reunião com esse Deus escondido que não nos ignora e sempre nos interroga sobre o amor que, uns aos outros, nos devemos... Como "no antigamente", nas festas que eram os recreios da escola, a oração torna-se num convívio. Estás lá sempre, encostada à faia que se erguia, inexplicavelmente, no meio do cimento do pátio do colégio, como que a dizer que há impulsos que vêm de baixo, mas vão sempre para cima, procurando o sol. Habitarás até ao fim dos meus dias a paisagem interior em que me encontro. Hoje, abraçam-me saudades, rezar é também um modo de estar saudoso: conforta-nos, mas diz-nos que ainda não chegámos lá. A condição humana é uma vocação ao reencontro. No olhar dos infelizes que sofrem uma vida que os reduz e definha, há certamente perplexidade e espanto. Mas lá no fundo, muito para lá do inexplicável, haverá essa luz íntima de uma promessa que Deus saberá cumprir "in tempore oportuno"... Afinal, que sabemos nós explicar da nossa própria vida? O que ela tem de certo é a morte, o fim da ilusão. O que ela tem de grande, o essencial, é invisível aos nossos olhos. Está no mistério infinito de Deus. Qualquer apego sensível é nada, e de tudo, condenados, nos despedimos: "quando eu morrer, / meu amor, / não te zangues / comigo: / não foi por desamor / de ti / que eu morri, / mas pelo desgosto / de mim / que é tão antigo..." Lembro-me muito do Alberto, tenho estado a ler passos da "Vida de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires" do frei Luís de Sousa. Na sua aposta em pôr-me a aprender português, o Alberto ofereceu-me, entre outros, este livro, insistindo em que Manuel de Sousa Coutinho (que, quando professou na Ordem de S. Domingos, tomou o nome de frei Luís) foi o primeiro "clássico" a emancipar o discurso da língua portuguesa, totalmente, de regras e tiques latinos, para o tornar fluido, correndo com a elegância simples da ternura lusitana... Encontro, nas páginas da "Vida...", trechos que parecem testemunhá-lo. Assim, esta cena da meninice de Bartolomeu: "Criava-o a mãe a seus peitos com cuidado de mãe, e mãe de grande virtude. Estava fugida da peste, que ardia em Lisboa, em um casal, que tinham no lugar de Torrugem, limite de Oeiras, quase três léguas da cidade. Era sobre tarde, tinha-o nos braços à porta do casal; chegou um homem no trajo pobre mendicante, no semblante estrangeiro, e pediu-lhe esmola. Enquanto lha mandava dar foi cousa de espanto, e que deu muito que cuidar à mãe e aos de casa, o que viram no menino. Encarou no pobre todo risonho, todo alegre, debatendo-se para ele, e festejando-o com as mãozinhas, boca e olhos, como se fora um dos mais conhecidos de casa; e enquanto o pobre não se despediu, não desviou os olhos dele, nem deixou de o estar agasalhando com aquelas inocentes mostras..." Este menino cresceu, fez-se frade dominicano e teólogo, foi, arcebispo, para Braga. Sempre penitente e disciplinando-se, andou pelas serranias de Trancoso e outras paragens inóspitas, era frugal e procurava a companhia dos pobres. Distinguiu-se no Concílio de Trento, foi - como, três séculos antes dele, o franciscano Santo António - um dos lisboetas com enorme prestígio na Europa e na Igreja, pela sabedoria e por esse odor de santidade por que se reconhecem os pobres. O papa acolheu-o em Roma e buscava amiúde o seu conselho, que apontava para a necessária reforma de uma Igreja mergulhada nas vaidades do mundo. Conta frei Luís de Sousa: "Daí em diante, quase todos os dias, era chamado de Sua Santidade, e umas vezes o mandava ficar a jantar, outras convidava-o para o dia seguinte, mostrando particular gosto de tratar com ele. E foi crescendo esta facilidade e favor, de sorte que deu em mui estreita familiaridade e tal que chegou o arcebispo a adverti-lo de coisas importantes ao bem comum da Igreja e a seu ofício pastoral, das quais contaremos algumas. Apontava-lhe o arcebispo erros e abusos que havia em partes da Cristandade no governo eclesiástico; e, com o peito de varão apostólico, amoestava-o que convinha não tardar com o remédio; que, para isso, o tinha Deus posto naquele lugar supremo, para vigiar e acudir a tudo; que, se se descuidasse, quanto era maior a honra, tanto seria a conta mais estreita..." Se nos lembrarmos de que, entre os fatores dos movimentos de reforma protestante, estava o escândalo do comércio de indulgências para custear as obras "faraónicas" do Vaticano, saborearemos melhor este relato de uma conversa de Paulo III com o "Bracarense" (assim, parece, o tratava por vezes o Papa), reformador também, católico e tridentino: "Levou-o um dia consigo passeando até o jardim famoso dos papas, que chamam Belveder; e, mostrando-lhe as obras que se iam fazendo, disse-lhe, sorrindo-se, como quem lhe sabia já o humor, porque não fazia lá na sua Braga uns paços como aqueles? - Santíssimo padre - respondeu o arcebispo - não é de minha condição ocupar-me em edifícios que o tempo gasta... Não ignorava o papa que havia de ser esta a resposta, e, contudo, tornou a instar e disse: - Pois que vos parece destas minhas obras?... Então, com maior energia, respondeu: - O que me parece, Santíssimo Padre, é que não devia curar Vossa Santidade de fábricas que, cedo ou tarde, hão de acabar e cair. E o que digo delas é que, de tudo isto, pouco e muito pouco e nada, e do edifício temporal das igrejas seja mais do que se faz; mas no espiritual, aí sim, que é razão ponha Vossa Santidade toda a força e meta todo o cabedal de seus poderes..." Penso, nesta minha misteriosa saudade de Deus, que Deus é verdadeiramente pobre. E só aos pobres e pequenos se revela. Assim, minha Princesa de mim, brilhe também, no fundo fundíssimo de nós, a luz dessa esperança com que nascemos. E não esqueçamos que defraudar os pobres é esquecer Deus". Na carta seguinte, Camilo Maria escreve sobre o anseio de ser, recorrendo a uma ópera de Dvorak: "Rusalka".
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 27.09.13 neste blogue.
Neste tempo dominado por maquinarias de estupidificação, quando o que mais falta é, por isso mesmo, pensar criticamente, não podia deixar passar o terceiro centenário do seu nascimento sem uma brevíssima referência. Refiro-me a Immanuel Kant, que nasceu no dia 22 de Abril de 1724 em Königsberg, antiga Prússia, actualmente Kaliningrado, um enclave russo entre a Polónia e a Lituânia, e que morreu nessa mesma cidade no dia 12 de Fevereiro de 1804. É lá, na catedral de Kaliningrado, que se encontra uma lápide com a sua frase célebre : “Duas coisas enchem a mente de uma admiração e um respeito sempre novos e crescentes quanto mais frequentemente e com maior persistência delas se ocupa a reflexão: o céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim”.
Kant, um dos maiores filósofos de sempre, deixou um legado essencial: uma atitude de pensamento crítico que vá ao essencial. “Sapere aude!” Ousa saber, ousa pensar, atreve-te a saber, atreve-te a pensar! “Que é Iluminismo? O Iluminismo é a libertação do ser humano da sua incapacidade culpada. A incapacidade significa a impossibilidade de servir-se da sua inteligência sem a guia de outro. Esta incapacidade é culpada porque a sua causa não reside na falta de inteligência mas na falta de decisão e coragem para servir-se por si mesmo dela sem a tutela de outro. Sapere aude! Tem a coragem de servir-te da tua própria razão!”
Em síntese, a obra de Kant vai ao encontro destas três perguntas essenciais: “Que posso saber?”, “Que devo fazer?”, “O que é que me é permitido esperar?”
Na sequência do sua “revolução copernicana” quanto ao conhecimento, concluiu que, escapando à experiência, Deus e a imortalidade não podem ser conhecidos. Não são demonstráveis.
Como agir bem, moralmente? Há para isso um critério seguro? Este critério não está em seguir os desejos ou inclinações pessoais, os hábitos de acção dos grupos ou países. Esse critério também não se encontra na busca da felicidade. Para Kant, esse critério consiste num “imperativo categórico”. Em que consiste? Se queremos saber se uma acção é moral, deve-se sujeitar a máxima ou regra pela qual nos guiamos a um teste de universalização. Assim, numa das suas formulações: “Age como se a máxima da tua acção devesse ser erigida pela tua vontade em lei universal de natureza”. Quando agimos, se queremos saber se estamos a agir moralmente, perguntemos: o que aconteceria se todos aplicassem a regra ou máxima. Um exemplo: a mentira. É moral mentir? Para sabê-lo, perguntemos: é universalizável? O que sucederia se todos mentissem? É evidente que a própria mentira se tornaria absurda, pois mentir só vale, isto é, só tem eficácia, no pressuposto de que as pessoas confiam no que alguém lhes diz. Portanto, mentir é imoral. Outro exemplo, este pela positiva: aliviar o sofrimento dos desgraçados. Neste caso, os sofrimentos próprios da condição humana encontrariam sempre um alívio. Aí está, pois, uma acção moral. Kant segue, portanto, na sua apreciação moral, um critério racional em autonomia. Mas, uma vez que nem sempre é fácil este critério da universalização, Kant propõe outra formulação do mesmo imperativo categórico: “Age de tal modo que trates a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de todos os outros sempre como um fim, nunca como um simples meio”. Cá está, pois: as coisas têm um preço, porque são meios, o Homem não tem preço, mas dignidade, porque é fim.
Do dever moral enquanto imperativo categórico, seguem-se os chamados postulados da razão prática.
Em primeiro lugar, a liberdade. Diz Kant: “Podes, porque deves”. Se deves, podes; é pela lei moral que sabemos que somos livres; agir moralmente é afirmar a liberdade, que não é arbítrio, e, por isso, educar tem de ser educar para a liberdade. Neste sentido, há um célebre exercício mental na sua Crítica da razão prática, que obriga a pensar. Suponhamos que alguém, sob pena de morte imediata, se vê confrontado com a ordem de levantar um falso testemunho contra uma pessoa que sabe ser inocente. Nessas circunstâncias e por muito grande que seja o seu amor à vida, pensará que é possível resistir. “Talvez não se atreva a assegurar que assim faria, no caso de isso realmente acontecer; mas não terá outro remédio senão aceitar sem hesitações que tem essa possibilidade.” Existem as duas possibilidades: resistir ou não. “Julga, portanto, que é capaz de fazer algo, pois é consciente de que deve moralmente fazê-lo e, desse modo, descobre em si a liberdade que, sem a lei moral, lhe teria passado despercebida.”
A esperança da felicidade, imortalidade e Deus. Não é critério da moralidade a busca da felicidade. Mas quem cumpre o seu dever moral incondicional torna-se digno de ser feliz. Este merecer ser feliz mostra-se no exemplo acabado de apresentar. Suponhamos que a pessoa preferiu de facto ser morta a levantar um falso testemunho contra o inocente. Casos destes acontecem, há muitos exemplos históricos. Ora, a ligação entre o dever cumprido e a felicidade não se dá neste mundo, pelo contrário, o cumprimento do dever implicou dar a vida. Por isso, postula-se a imortalidade e exige-se moralmente que Deus exista.
Embora nunca tenha saído da sua cidade natal, tinha ideias cosmopolitas e é dele a expressão Völkerbund (Liga de Povos) como organização internacional em ordem à paz mundial, concretizada no século XX na Sociedade das Nações e na ONU.
PS. Estimados leitores e leitoras, até Agosto!
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 29 de junho de 2024
Concretamente nestes tempos de globalização, torna-se mais claro que não haverá paz entre as nações sem diálogo inter-religioso. Como não se cansou de repetir o teólogo Hans Kung: "Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso globo sem um ethos global, um ethos mundial".
O diálogo inter-religioso é mais do que simples tolerância religiosa, pois é exigência do próprio Absoluto a que todas as religiões estão referidas. Precisamos de todas as religiões para tentar dizer melhor, embora sempre na gaguez quase muda, o Mistério que sempre transcenderá o que dele possamos pensar e dizer. As religiões estão referidas ao Absoluto, mas não são o Absoluto. Neste sentido, o místico diria: Deus é "nada" de todas as religiões. Mestre Eckhart pedia a Deus que o libertasse de "Deus", isto é, dos seus conceitos, imagens e representações de Deus.
Deste diálogo fazem parte também os ateus, não os ateus vulgares, mas os ateus que sabem o que isso quer dizer, porque são eles quem constantemente pode colocar, tem colocado e coloca os crentes de sobreaviso quanto ao perigo da superstição, da idolatria e da desumanidade, que as religiões muitas vezes transportaram e transportam consigo.
Quando se pensa na coragem heróica necessária para, em tempos de hegemonia religiosa confessional e sabendo que se corria o risco da prisão, da morte no cadafalso e da “certeza" do inferno, ousar, em nome da dignidade humana, do respeito para com Deus, das exigências mínimas da razão, lutar contra a superstição e contra o ridículo clerical-eclesiástico, surge-nos do mais íntimo e fundo de nós o sentimento de veneração e de reconhecimento de "santidade" em relação a muitos daqueles que, a maior parte das vezes em sentido pejorativo, ficaram na história como críticos da religião e até ateus. Esses não são santos de nenhuma Igreja, mas são com certeza "santos" da Humanidade.
Impressiona que hoje o cristianismo, que é uma fonte de liberdade e de libertação – estou convicto de que é a maior na história da humanidade -, para muitos já não exerça fascínio. Surpreende que, frente a Deus, enquanto o Infinito é a verdade do finito, grande número de homens e mulheres se mantenham indiferentes ou até O recusem pura e simplesmente. Há múltiplas razões explicativas desta indiferença e recusa. Uma delas, que não será a menor, prende-se com a imagem de Deus transmitida pelos crentes. Muitas vezes o Deus que aparece é um Deus menor, triste, invejoso, impeditivo da liberdade, da autonomia, do novo, que envenena o amor, a alegria e a criação. Depois, os crentes teriam de cindir a vida: a vida propriamente dita e uns enclaves de beatice. Não se caminha livre, erguido, inteiro, autónomo, solidário, na busca, correndo riscos. Como homens e mulheres humanos, justos, criadores. Perante uma imagem de Deus que humilha e atemoriza, ergue-se então, como escreveu o filósofo Carlos Díaz, a tentação de "matar Deus com medo que Deus me mate a mim".
Hoje, a questão essencial é que se corre o risco de já nem sequer se colocar a questão de Deus, nem sequer como questão. Ora, não é o que já está a acontecer nesta nossa sociedade de imediatismo disperso, de hiperactividade, num tempo descontinuado?... Como escreveu Byung-Chul Han, no seu recente livro Vita Contemplativa, referindo-se a esta sociedade: “A actual crise religiosa não se pode simplesmente atribuir ao facto de termos perdido toda a fé em Deus ou determinadas crenças terem passado a inspirar-nos desconfiança. A um nível mais profundo, esta crise indica que estamos a perder cada vez mais capacidade contemplativa. A crescente compulsão para produzir e comunicar dificulta a permanência no contemplativo. A religião requer uma atenção especial. Malebranche refere-se à atenção como a oração natural da alma. Hoje, a alma já não ora. Pelo contrário, produz-se. É precisamente à sua hiperactividade que se deve a perda da experiência religiosa. A crise religiosa é uma crise de atenção.”
Espíritos eminentes preveniram para os perigos, sendo urgente preparar-se para o pior. Václav Havel, o grande dramaturgo e político, pouco tempo antes de morrer, surpreendeu muitos ao declarar que “estamos a viver na primeira civilização global” e “também vivemos na primeira civilização ateia, numa civilização que perdeu a ligação com o infinito e a eternidade”, temendo, também por isso, que caminhe para a catástrofe.” Karl Rahner, talvez o maior teólogo católico do século XX - tive o privilégio de tê-lo como professor -, perguntava: O que aconteceria, se a simples palavra “Deus” deixasse de existir? E respondia: “A morte absoluta da palavra ‘Deus’, uma morte que eliminasse até o seu passado, seria o sinal, já não ouvido por ninguém, de que o Homem morreu”. Neste domínio, o perigo maior provém de a questão de Deus já não ser sequer questão. Como escreveu o historiador Georges Minois, o mundo parece encontrar-se hoje perante um facto decisivo e mesmo único: se, independentemente da sua resposta positiva ou negativa, o Homem já não vir pura e simplesmente necessidade de colocar a questão de Deus, isso significa que, pela primeira vez na sua história, a humanidade sucumbe à imediatidade, a uma visão fragmentária do aqui e agora e "abdica da sua procura de sentido".
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 22 de junho de 2024
180. DEBATENDO A DUALIDADE E A ESSÊNCIA DA CONDIÇÃO HUMANA
Sempre, em qualquer parte, ao lado do Bem existiu o Mal. É impossível imaginar um sem o outro.
Nos vários sistemas religiosos explicativos do universo, os espíritos do bem e do mal parecem ter nascido conjuntamente do caos, subsistindo sempre, num combate incessante e permanente, ora vencidos, ora vencedores.
Segundo a Bíblia, quando ainda não existia este mundo, já no Além houvera um crime político: a revolta dos anjos maus, comandados por Lúcifer, contra Deus. Criado o ser humano, cometeu de imediato os crimes de desobediência e furto, a que se seguiu a sua condenação e punição.
Assim convergiram e se incarnaram nos humanos os princípios do bem e do mal. Assim se explica, nesta perspetiva, que nenhum de nós seja incapaz de praticar o mal, nem que nenhum delinquente, marginal ou criminoso esteja incapacitado de realizar atos reveladores do bem.
Nesta dualidade fundamentam-se as teorias da prevenção do crime e da regeneração do delinquente pela pena, pelo trabalho e pela educação.
Indicia-se ser inglório saber qual dos dois princípios é mais antigo, aparentando ser duas faces da mesma moeda, tendo nascido em simultâneo.
E o bem pode associar-se ao bom, a Deus, à luz, ao certo, à norma e à ordem estabelecida, o mal ao mau, ao Diabo, às trevas, ao errado, à transgressão.
Porque nem tudo é a preto e branco repugna, a muitos, o maniqueísmo.
Ser de direita, do centro ou de esquerda, é bom ou mau? Onde fica o bem e o mal?
É usual dizer-se que não podemos viver sem reflexão transdisciplinar, dado que a análise global não se pode apoiar apenas nas conquistas da investigação especializada, pois há fenómenos cuja compreensão não é acessível por uma observação tecnicista e laboratorial, havendo que situá-los no meio ambiente, num conjunto complexo de interações.
Daí a preocupação de contrapor à especialização dos conhecimentos a investigação transdisciplinar, no seguimento da velha frase de Pascal, segundo a qual não podemos conhecer o todo sem conhecer as partes, como não podemos conhecer as partes sem conhecer o todo.
Todavia, pretende-se apenas detetar o possível, dentro do possível, em obediência ao princípio de que tudo é possível e questionável de novo.
Significa que aceitamos a incerteza, que sabemos e não sabemos.
Significa que o que se nos depara como fundamental é a necessidade de assumir plenamente a ausência de uma verdade absoluta, de aceitar o erro e a incerteza como componentes iniludíveis de toda a atividade humana.
Quando uma teoria se fecha ao real, os seus axiomas tornam-se dogmas e ela própria se transforma numa doutrina, assumindo a sua verdade como definitivamente provada e refutando todos os desmentidos tidos como reais.
Ora, toda e qualquer teoria só é verdadeira dentro de certas condições e limites, pois a verdade é biodegradável, abrindo-se ao mundo exterior e correndo os riscos de modificação e morte, tendo de permanente a sua luta, ao seu redor e em si própria.
E se, na vida, há algo de belo em todos termos uma missão, também temos a convicção de que a verdade e a verdadeira essência da condição humana está muito para lá daquela que convencionamos aceitar para podermos viver em coabitação, não sendo a internet e a inteligência artificial a mãe-de-Todas-as-coisas, porque permanecem sempre mistérios fora do alcance da imensurável sapiência que se queira atribuir a um verdadeiro Deus, e não a uma presumível divindade do Homo Deus.
Tem-se frequentemente a ideia de que, à partida, o ateu, quando nega a existência de Deus ou quando afirma que, com a morte, acaba tudo, tem do seu lado a razão, ficando o crente sob a suspeita de não-racional, de tal modo que é a ele apenas que compete ter de apresentar razões da sua fé.
Ora, as coisas não são assim, de modo nenhum. Por paradoxal que pareça, também o ateu assenta a sua negação da existência de Deus ou da vida depois da morte num acto de fé, melhor, numa crença. "Em qualquer das suas formas, o ateísmo é uma crença e não uma evidência, escreveu o filósofo Pedro Laín Entralgo, um 'creio que Deus não existe' e não um 'sei que Deus não existe'".
O chamado crente e o ateu encontram-se exactamente no mesmo plano: o crente não pode demonstrar a existência de Deus nem a vida eterna, exactamente como o ateu não pode demonstrar que Deus não existe ou que a morte é o termo definitivo da existência da pessoa. No que se refere a Deus ou à vida depois da morte, as posições do crente, do agnóstico ou do ateu assentam na crença.
Evidentemente, sendo humanos e, portanto, racionais, todos - o crente, o agnóstico, o ateu - têm de apresentar razões para a sua crença, pois esta, se quiser ser verdadeiramente humana, não pode ser cega. Sublinhe-se, porém, que se trata, para todos, de um acto de fé, certamente com razões, mas sempre de um acto de fé, e não da conclusão de uma demonstração.
Assim, o crente, o agnóstico, o ateu, em vez de se excluírem, devem encontrar-se e enriquecer-se mutuamente num conflito dialógico de razões, e, por paradoxal que pareça, num diálogo sincero e aberto, concluirão que há entre eles muito mais sintonias do que poderiam supor à primeira vista. Quantos crentes, por exemplo, não ficarão surpreendidos ao ler em Santo Tomás de Aquino que o saber da fé, não podendo ser evidente, convive com a opinião, a dúvida...
Fé religiosa e dúvida não se excluem. Pelo contrário, a fé está sempre acompanhada de perguntas. Estas perguntas humanizam a religião, pois impedem todo o tipo de fundamentalismo, abrem ao diálogo não só com os crentes de outras religiões, mas também com os ateus e agnósticos, obrigando a uma reformulação constante das fórmulas doutrinais, que ao mesmo tempo que tentam dizer o Mistério também o ocultam. Por outro lado, é bem possível que também ateus e agnósticos aceitem que há um Mistério inominável que a todos envolve...
Aprofundando a conhecida diferença entre problema e mistério, estabelecida por Blondel e sobretudo por Gabriel Marcel, Pedro Laín Entralgo distinguia entre problema, enigma e mistério.
Problemas são aquelas questões que mais tarde ou mais cedo o Homem pode resolver. Assim, concluiu-se que a Terra é redonda e que gira à volta do Sol, e pode encontrar-se solução para uma crise financeira...
O enigma está referido àquelas questões que nunca serão completamente resolvidas, mas de cuja solução racional o Homem se vai aproximando cada vez mais, ainda que apenas assintoticamente. Enigmas são, por exemplo, a realidade da matéria ou o pensamento. Hoje, sabemos muito mais sobre o que é a matéria do que Aristóteles ou mesmo Galileu ou Newton, mas isso não significa que tenhamos uma intelecção plena ou que algum dia venhamos a possuí-la. Neste domínio, há um saber cumulativo, mas num horizonte assintótico, na medida em que, como escreveu H.-G. Gadamer, o horizonte não é uma fronteira fixa, mas algo para onde viajamos e que ao mesmo tempo se desloca connosco, de tal modo que o não alcançamos...
Finalmente, o mistério refere-se a uma realidade na qual se crê, mas cuja intelecção racional estará para sempre vedada ao Homem. O mistério refere-se às perguntas últimas, como: Qual o sentido último do universo e da existência? Porque é que existo precisamente eu? Porque é que há algo e não nada? A vida continua depois da morte? Deus existe?
Estas perguntas colocam-nos perante o que é por si mesmo misterioso, pois relacionam-se com a ultimidade, que não é objecto do saber de evidência, mas do saber de crença. Daí, um dos dramas maiores da existência, pois, como não se cansava de repetir P. Laín Entralgo, o objecto da ciência é penúltimo, mas o último é objecto de crença, seguindo-se daí que "o certo é penúltimo e não pode não ser penúltimo, será sempre penúltimo, e o último é incerto e não pode não ser incerto, será sempre incerto".
Mas, por outro lado, repetindo, a crença, para ser autêntica e verdadeiramente humana, não pode ser cega, o que significa, portanto, que tem de ser argumentativa, isto é, tem de dar razões de si mesma. A fé não demonstra, mas tem de argumentar, de tal modo que mostre que é razoável. As razões que tem a capacidade e o dever de apresentar têm de mostrar a sua plausibilidade.
Concretamente quanto à questão de Deus e da vida depois da morte, isto é, com a morte, o Homem acaba definitivamente ou, pelo contrário, entrará na sua plena realização na Realidade Última e Primeira a que chamamos Deus, quanto a esta questão, nem o não-crente nem o crente podem demonstrar a sua respectiva posição, pois é de uma crença que, em última análise, se trata. No entanto, um e outro apresentarão razões a que ambos serão sensíveis. Ser ser humano é levar consigo esta questão. Melhor: ser esta própria questão. E o que, em última instância, une os homens é esta procura sem fim e o diálogo à volta desta questão infinita.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 11 de maio de 2024