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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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  De 19 a 25 de agosto de 2024

 
«Fora do Diálogo Não há Salvação» da autoria de Frei Bento Domingues, O.P. é uma coletânea que constitui uma reunião fundamental de textos sobre o fenómeno religioso contemporâneo.
 

 
 
PROTEGER A PALAVRA DE DEUS
 
Num texto importante incluído neste livro, já com alguns anos, Frei Bento Domingues afirmou: “Sei que a palavra Deus precisa de ser continuamente lavada e resgatada dos seus repetidos usos ridículos e criminosos, tanto no passado como no presente, mas não renuncio a ela. Na nossa cultura, o melhor e o pior é sugerido por essa palavra e por nenhuma outra com a mesma eficácia. (…) Tenho amigos que lamentam a minha teimosia em me manter fiel ao registo teológico, mesmo depois de já ter feito repetidas apologias da chamada teologia negativa que só consente afirmações acompanhadas de negações radicais, como da ideia de Tomás de Aquino: ‘Deus só é conhecido como desconhecido’.” (Público, 14.9.2014). Agora, a publicação da obra Fora do Diálogo não há Salvação (Temas e Debates, 2024) constitui motivo de reflexão viva e séria, num momento em que se sente haver o que Hermann Broch designou como “vazio de valores”. A coordenação da coletânea coube a João Miguel de Almeida, Alfredo Teixeira e Helena Topa Valentim. Os vinte e cinco textos reunidos constituem testemunhos da presença de Frei Bento Domingues, O.P. no Centro de Reflexão Cristã (CRC), de que foi cofundador em 1975. A reunião dos ensaios envolveu o CRC e o Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião da Universidade Católica Portuguesa. Identidade cristã – sim ou não?; Evangelização; Perseguição boa e má; Austeros, Libertinos e Religiosos; os Sacramentos – sinais da ternura de Deus; Teologia e choque de culturas; Antes de ser católico português; a Religião dos portugueses; Descolonização e consciência missionária em Portugal; Laicidade, laicismo e modernidade; para memória e futuro do CRC – eis alguns dos temas tratados, com pertinência e atualidade. O texto final é a transcrição de uma entrevista a Frei Bento Domingues, realizada por Alex Villas Boas e Inês Espada Vieira no Convento de S. Domingos em Lisboa em 2022.     
 
Ao falarmos de valores éticos não nos reportamos a abstrações, mas a referências concretas que nos permitam compreendermo-nos na ligação com os outros. Ao longo destes textos sente-se um apelo permanente ao compromisso e à capacidade de ouvir e de dialogar. O bem, o bom, o belo, o justo e o verdadeiro não são ilusões e constituem apelos a não sermos indiferentes relativamente aos outros e a entender a imperfeição como exigência de sermos melhores, sem a tentação de criar um mundo de princípios que esquecem as dificuldades e as incertezas da vida. Não por acaso, Broch escreveu Os Sonâmbulos numa época que antecedeu o trágico século XX de duas guerras mundiais, entre a massificação e um vago messianismo, interrogando-se sobre se num mundo sem ética há a possibilidade de uma relação humana baseada na dignidade e no respeito mútuo… Os três volumes da obra sintetizam a tentação de contrapor um mundo ilusório à realidade da vida – Pasenow ou o Romantismo (1888); Esh ou a Anarquia (1903) e Huguenau ou o Realismo (1918) são três modos de encarar a existência. Com uma guerra às portas da Europa e um conflito insanável no Médio Oriente, importa entender que a falta de memória nos assalta, do mesmo modo que o romancista austríaco diagnosticou. Voltamos à espada de Dâmocles de um novo conflito mundial. E o certo é que, fora do mundo, não há sentido da vida. 

 
RACIOCÍNIO SEMPRE NOVO
 
Tem razão Lídia Jorge quando afirma que Frei Bento é alguém que “coloca o espaço de leitura e da erudição ao serviço da formulação de um raciocínio sempre novo e sempre aberto, perante a transformação imparável do Mundo, sismógrafo sensível dos terramotos sociais por que passam os nossos tempos, como um discorrer radicado na sensibilidade à mudança”. Daí a importância de aproximar Frei Bento do registo de uma escrita profética ou de uma teologia sensível à grandeza do cosmos, à magnânima fragilidade do humano, ao rosto irrepetível das multidões, à pele da História, inocente e deslumbrado como se fosse um poeta que escolheu à partida a luz do princípio iluminado e fez dele o seu método de clareza”.
 
Que nos propõe o autor? “Porque é que dou muita importância à Teologia? Porque é o não estar na beatitude. É o não estar descansado, é o não se poder acomodar ao mundo que temos, à Igreja que temos, aos movimentos que temos. O não se acomodar é o que S. Paulo pede: não vos acomodeis a este mundo! Não vos acomodeis! O CRC neste momento tem feito um esforço para renovar as pessoas, mas a renovação é na medida em que se criem condições para poder congregar os descontentes (…). Eduardo Lourenço chamou sempre a atenção para algo que era a teologia negativa. É o não descansar. Por uma razão simples, é que nós não temos uma possibilidade de ir pelo lado de Deus a observar como Ele é. Portanto, a nossa teologia tem de dizer sempre: ‘Está bem, mas ainda não é isto, nem pode ser isto. ‘Porquê? Porque é o mistério absoluto do mundo, o mistério absoluto de Deus”. É neste sentido que as reflexões agora recordadas merecem leitura atenta.
 
Guilherme d'Oliveira Martins
 

FRANCISCO SOBRE O DIÁLOGO, AS MULHERES, OS CATÓLICOS ALEMÃES...

  


Entre 3 e 6 deste mês de Novembro, o Papa Francisco esteve no Bahrain, no Fórum a favor do Diálogo: Oriente e Ocidente pela coexistência humana. No regresso, no avião, deu, como é hábito, uma conferência de imprensa. É sempre enriquecedor dar atenção a essas conferências, até porque há temáticas múltiplas da actualidade e uma espontaneidade acrescentada. Seguem-se alguns temas.


1. Referindo o diálogo, acentuou que é uma palavra-chave: "diálogo, diálogo". Já tinha sublinhado, aliás, que os animais é que não dialogam, os humanos têm de resolver os seus problemas através do diálogo. Condição para dialogar é que se tem de partir da identidade própria, ter identidade afirmada, não difusa. Quando alguém não tem a sua própria identidade ou ela não é firme, o diálogo torna-se difícil, até impossível. A sua viagem foi uma viagem de encontro, porque o objectivo era estar em diálogo inter-religioso com o islão e ecuménico com os ortodoxos. Ora, tanto o Grande Imã de Al-Azhar, no Cairo, Ahmed al-Tayeb, como o Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu, "têm uma grande identidade" e as suas ideias vão no sentido de procurar a unidade, respeitando as diferenças, evidentemente, em ordem ao entendimento e ao trabalho conjunto para o bem e a paz da Humanidade. Também se chamou a atenção para a Criação e a sua protecção: "isto é uma preocupação de todos, muçulmanos, cristãos, todos". Os crentes das várias religiões "devemos caminhar juntos como crentes, como amigos, como irmãos."


2. Na sua viagem, lembrou outro jornalista, "falou sobre os direitos fundamentais, incluindo os direitos das mulheres, a sua dignidade, o direito a ter o seu lugar na esfera social pública"...


Resposta de Francisco. "Temos de dizer a verdade. A luta pelos direitos da mulher é uma luta contínua. Há lugares onde a mulher tem igualdade com o homem, mas noutros não. Pergunto: porque é que uma mulher tem de lutar tanto para manter os seus direitos?" E falou na ferida da mutilação genital feminina: "isto é terrível". Como é que a humanidade não acaba com isto, que é "um crime, um acto criminoso! As mulheres, segundo dois comentários que ouvi, são material "descartável" - isso é mau, claro - ou são "espécies protegidas". A igualdade entre homens e mulheres ainda não é universal, e existem estes incidentes: as mulheres são de segunda classe ou menos. Temos de continuar a lutar. Deus criou-os iguais, homens e mulheres. Todos os direitos das mulheres provêm desta igualdade. E uma sociedade que não é capaz de colocar a mulher no seu lugar não avança." As mulheres têm uma capacidade de gerir as coisas de outra maneira, que "não é inferior, mas complementar". E uma constatação: "Vi que no Vaticano sempre que entra uma mulher para fazer um trabalho as coisas melhoram: por exemplo, o vice-governador do Vaticano é uma mulher e as coisas mudaram para bem." Só um exemplo.


Igualdade de direitos, mas também igualdade de oportunidades; caso contrário, empobrecemo-nos. Há ainda muito caminho para percorrer. Porque "existe o machismo. Venho de um povo machista. Lutamos não só pelos direitos, mas porque precisamos que as mulheres nos ajudem a mudar."


3. Quanto à Ucrânia. "O Vaticano está permanentemente atento". Ele foi à embaixada russsa falar com o embaixador, "um humanista", está disposto a ir a Moscovo para falar com Putin, falou duas vezes ao telefone com o Presidente Zelensky... O que lhe chama a atenção é "a crueldade, que não é do povo russo... Tenho uma grande estima pelo povo russo, pelo humanismo russo. Basta pensar em Dostoievsky, que até hoje nos inspira... Sinto um grande afecto pelo povo russo e igualmente pelo povo ucraniano".


E atirou, desolado: "Num século, três guerras mundiais! A de 1914-1918, a de 1939-1945, e esta! Esta é uma guerra mundial, porque é certo que, quando os impérios de um lado e do outro se debilitam, precisam de fazer uma guerra para sentir-se fortes e também para vender armas. Hoje creio que a maior calamidade do mundo é a indústria armamentista. Por favor! Disseram-me, não sei se está certo ou não, que, se não se fabricassem armas durante um ano, acabar-se-ia com a fome no mundo." E contou que sempre que vai a cemitérios e encontra o túmulo de um jovem morto numa guerra, chora.


4. Sobre os abusos de menores, reconheceu que houve secretismo e encobrimento. Agora, é a "tolerância zero". "Nisto hoje a Igreja está firme, pois, mesmo que só tivesse havido um caso, seria trágico."


5. Mesmo a terminar, Francisco mostrou alguma preocupação com o "caminho sinodal" da Igreja na Alemanha: "Aos católicos alemães digo: a Alemanha tem uma grande e bela Igreja evangélica; não quero outra, que não será (nunca) tão boa como aquela; quero-a católica, em fraternidade com a evangélica."


A Conferência Episcopal Alemã esteve no Vaticano e o caminho sinodal foi um dos temas centrais nos encontros com o Papa e a Cúria. Os bispos alemães apelam à "unidade" da Igreja. Mas o Presidente da Conferência, G. Bätzing, também foi lembrando que Roma foi e é "ponto de referência para a fé católica e para toda a Igreja", mas "não é a origem e a meta do caminho que tomamos na fé"; "a origem e a meta desse caminho é Jesus Cristo".


Assim, pessoalmente, pergunto, por exemplo: o que impede acabar com o celibato obrigatório ou a ordenação de mulheres para presidirem à celebração da Eucaristia? Onde esteve afinal a igualdade de direitos?

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 19 de novembro de 2022

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

41. O REMÉDIO DA ARTE DE CONVERSAR

 

Grande remédio do mal foi sempre a conversação.

Conversar é arte. É a arte de conversar.

Um recurso, uma solução que auxilia e protege. 

Que atenua os males, agruras e rotinas da vida.

Tornando mais aceitável ou suportável deixar ir o tempo. 

Mas também é aprazível uma conversa enriquecedora.

Comunica-se e estabelece-se a confiança. 

Exerce-se o contraditório, sabendo escutar, coincidir ou desavir. 

Abrimo-nos desabafando, esperando atenção, amparo ou sentido crítico.

Nada melhor que um frente a frente pessoal. 

A distância inviabiliza ver as imperfeições e as insuficiências.

A pessoa que idealizamos e imaginamos de longe, é vista num plano diferente daquele através do qual vemos as pessoas conhecidas. 

É uma visão hipotética ou virtual, que por vezes se aproxima da realidade ou dela se afasta profundamente.

Se a representação imaginária, que fantasiamos do outro, se aproxima da realidade, saboreia-se a conversação que pode conduzir à amizade.   

Se o retrato imaginário não condiz, de todo, com a realidade, sobrevem o choque, a deceção, o afastamento e a rutura.   

Infelizmente a arte de conversar vai-se perdendo, em benefício do bulício normalizador e ruído comum.

Há uma tendência chamativa de chamar e gritar por atenção, maioritariamente via redes sociais, com disponibilidade para lermos, escrevermos e ouvirmos o que já estamos predispostos para ler, escrever e escutar.   

E, então, não há diálogo nem debate, ou se o há falta-lhe densidade e intensidade.

Diálogos, debates e a arte da conversa a dois (ou mais) vai-se perdendo.

Mas quando os há a dois (ou mais) densos e intensos, são oásis de enriquecimento, humanismo e sabedoria, com direito a arquivamento para memória futura.

 

06.03.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

FRANCISCO NA TAILÂNDIA: O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO

 

Era um sonho desde os tempos da juventude: ser missionário no Japão. A vida não o permitiu, mas Francisco acabou por realizar em parte, na semana passada, esse sonho, ao visitar durante sete dias (19-26) a Tailândia e o Japão. A partir da Ásia, Francisco deixou mensagens decisivas para o mundo, acentuando, na Tailândia, a importância fundamental do diálogo inter-religioso, e, no Japão, condenando como crime imoral não só a guerra nuclear mas também a simples posse de armamento atómico.

 

Hoje, incidirei na mensagem a partir da Tailândia. O próprio Francisco, após o seu regresso a Roma, na passada Quarta-Feira, na audiência geral, resumiu a sua estada na Tailândia. “Na Tailândia, prestei homenagem à rica tradição espiritual e cultural do povo thai, o povo do belo sorriso. As pessoas estão sempre a sorrir. Animei o impulso pela harmonia entre as diversas componentes da nação, para que o desenvolvimento económico possa beneficiar a todos e se curem as feridas da exploração, especialmente de mulheres, de meninas e meninos, expostos à prostituição e ao tráfico. A religião budista é parte integrante da história e da vida deste povo, por isso fui visitar o Patriarca Supremo dos budistas, prosseguindo o caminho da estima recíproca, começada pelos meus predecessores, para que cresçam no mundo a compaixão e a fraternidade. Neste sentido, foi muito significativo o encontro ecuménico e inter-religioso, celebrado na maior Universidade do país.”

 

Há muitos anos que o famoso teólogo Hans Küng não se cansa de proclamar que “não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões” e não haverá paz entre as religiões sem conhecimento e reconhecimento mútuo e, consequentemente, diálogo.

 

Como não podia deixar de ser, Francisco fez do diálogo inter-religioso uma das marcas essenciais do seu pontificado, e isso ficou bem claro também nesta visita à Tailândia. Enquanto no sul do país um grave e sangrento conflito confronta separatistas muçulmanos e forças governamentais, insistiu na necessidade do diálogo inter-religioso como “serviço a favor da harmonia social na construção de sociedades justas, compassivas e inclusivas.”

 

Logo no primeiro dia da sua visita oficial, num acontecimento histórico, encontrou-se no templo budista Wat Ratchabophit com o Patriarca Supremo Somdet Phra Maha Munivong, chefe do budismo oficial tailandês, começando por lembrar que o encontro se inscrevia “dentro do caminho de reconhecimento mútuo” iniciado pelos predecessores, e convidando a “aumentar não só o respeito mas também a amizade entre as nossas comunidades”, cinquenta anos depois da primeira visita de um patriarca budista a Paulo VI, tendo João Paulo II visitado também aquele templo. “Pequenos passos que ajudam a testemunhar, não só nas nossas comunidades mas também no nosso mundo tão inclinado a gerar e propagar divisões e exclusões, que a cultura do encontro é possível”. Referiu os fundamentos do budismo, que fazem parte indelével da identidade dos tailandeses, com “o seu modo de reverenciar a vida e os seus anciãos, prosseguir um estilo de vida sóbrio baseado na contemplação, no desapego, no trabalho duro e na disciplina”, permitindo definir a Tailândia como “o povo do sorriso”. “Possibilidades como estas lembram-nos como é importante que as religiões se manifestem cada vez mais como faróis de esperança, promotoras e garantes de fraternidade”, agradecendo ao povo tailandês que “desde a chegada do cristianismo à Tailândia, há uns quatro séculos e meio, os católicos, embora sendo um grupo minoritário, tenham desfrutado da liberdade na prática religiosa e durante muitos anos vivido em harmonia com os seus irmãos e irmãs budistas”. Os responsáveis religiosos, lembrou, devem oferecer ao mundo “uma palavra de esperança capaz de alimentar e apoiar os que são sempre os mais afectados pelas divisões”. Pelo seu lado, reiterou o seu “compromisso pessoal e o de toda a Igreja a favor do fortalecimento do diálogo aberto e respeitoso ao serviço da paz e do bem-estar deste povo”. Assim, “poderemos estimular entre os fiéis das nossas religiões a elaboração de novas iniciativas de caridade, capazes de gerar e multiplicar projectos concretos no caminho da fraternidade, especialmente para os mais pobres e na relação com a nossa tão maltratada casa comum”, para contribuir para “a construção de uma cultura da compaixão, da fraternidade e do encontro tanto aqui como noutras partes do mundo.”

 

O Papa Francisco deu um exemplo concreto, visitando o hospital Saint-Louis, fundado em 1898 por um bispo francês, que o confiou às Irmãs de São Paulo de Chartres, e que testemunha, explicou, “o precioso serviço que a Igreja oferece ao povo tailandês”. Aí, deixou palavras de inexcedível empatia e humanidade. “Todos vós, membros desta comunidade terapêutica, sois discípulos missionários quando, olhando para um doente, aprendeis a chamá-lo pelo seu nome. Estai abertos ao imprevisível”. “Realizais uma das maiores obras de misericórdia, uma vez que o vosso compromisso vai muito para lá de um simples e louvável exercício de medicina. Deveis ir para lá, abertos ao imprevisível”. Deveis “receber e abraçar a vida conforme chega à urgência do hospital para ser atendida com piedade especial, que nasce do respeito e amor à dignidade de todos os seres humanos”. “Os vossos esforços e o trabalho das muitas instituições que representais são o testemunho vivo do cuidado e da atenção que estamos chamados a mostrar a todas as pessoas, especialmente aos idosos, aos jovens e aos mais vulneráveis”. “Todos sabemos que a doença traz sempre consigo grandes interrogações. A nossa primeira reacção pode ser a de nos rebelarmos e até viver momentos de desconcerto e desolação. É o grito de dor, e é bom que assim seja: o próprio Jesus sofreu isso e fê-lo”.

 

No termo da sua visita e antes de partir para o Japão, Francisco, evocando os desafios do país e do mundo perante responsáveis de diferentes religiões (budistas, hindus, muçulmanos, sikhs) e confissões cristãs, voltou a apelar à cooperação inter-religiosa. “Os rápidos progressos, prometendo aparentemente um mundo melhor, coexistem com a persistência trágica de conflitos: migrações, expatriações, fomes e guerras, sem contar a degradação e a destruição da nossa casa comum. Todas estas situações colocam-nos em alerta e lembram-nos que nenhuma região nem nenhuma parte da nossa família humana pode considerar-se ou construir-se como uma entidade estranha ou imunizada em relação aos outros”, impondo-se, portanto, a salvaguarda contra “a lógica do fechar-se em si mesmo” e a defesa da “lógica do encontro e do diálogo na reciprocidade”. Em ordem à “solução dos conflitos”, à “compreensão entre as pessoas” e à “salvaguarda da criação”, “as religiões, sem por isso renunciarem às suas características essenciais e às suas diferenças próprias, têm um enorme contributo a dar e a oferecer”. O Papa apelou aos responsáveis religiosos que “construam fundamentos sólidos, ancorados no respeito e no reconhecimento da dignidade das pessoas, na promoção de um humanismo integral capaz de reconhecer e de reclamar a defesa da nossa casa comum”.

 

Neste seu discurso, pronunciado na Universidade Chulalongkorn, do nome de um rei de Sião, primeiro chefe de Estado não cristão recebido, segundo o diário La Croix, no Vaticano em 1897, Francisco insistiu ainda na necessidade de “aceitar a exigência de defender a dignidade humana” e “respeitar o direito
à liberdade religiosa”. Numa Tailândia budista, onde os idosos são muito considerados, Francisco manifestou também a sua satisfação por ver “preservadas as raízes necessárias para que o vosso povo não desvaneça por detrás de slogans que acabam por esvaziar e hipotecar a alma das novas gerações. Continuai a fazer com que os mais  jovens descubram a bagagem cultural da sociedade em que vivem. Ajudai os jovens a descobrir a riqueza viva do passado e ir em busca das suas raízes, com vista ao seu crescimento e às escolhas que são chamados a fazer.”

 

Neste contexto de diálogo inter-religioso, Francisco insistiu na sua mensagem constante: “O missionário não é um mercenário da fé nem um gerador de prosélitos. A evangelização não consiste em somar o número de membros nem aparecer como poderosos, mas em abrir portas para viver e partilhar o abraço, misericordioso e que cura, de Deus Pai, que nos faz família.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 1 DEZ 2019

NÓS E OS OUTROS. A URGÊNCIA E A DIFICULDADE DO DIÁLOGO

 

    Estamos a viver uma transformação prodigiosa do mundo. Há hoje várias revoluções em marcha. Uma revolução económica, com a globalização, que significa a concretização da ideia de McLuhan de que formamos uma “pequena aldeia” e a chegada ao palco da História de grandes países emergentes, como a China, a Índia... Outra é a revolução cibernética, que, como disse Jean-Claude Guillebaud, faz nascer um quase-planeta, um “sexto continente”. Nunca como hoje houve tanta informação e com a rapidez com que circula pelo mundo. Esta é a era da informática. A internet, o correio electrónico, os telemóveis, as televisões põem-nos em contacto constante e imediato com tudo o que acontece no mundo. Depois, com a facilidade dos transportes e no quadro das novas condições económicas, há a circulação permanente das pessoas de uns países para outros e também entre continentes. As NBIC (nanotecnologias, biotecnologias, inteligência artificial, Big Data, ciências cognitivas, neurociências...), em interconexão,  transformam a nossa relação com a vida e a procriação e podem fazer bifurcar a Humanidade: a actual continuaria ao lado de outra a criar; por isso, se fala em transhumanismo e pós-humanismo. Também está aí a urgência da revolução ecológica, que, se a Humanidade quiser ter futuro, obriga a uma nova relação com a natureza. Como se não pode esquecer de modo nenhum o perigo do terrorismo global e de uma guerra atómica. Está aí, omnipresente, de múltiplos modos, o terror da violência...

 

    Perante todas estas revoluções e face aos problemas que agora são globais, como a droga ou o trabalho, os mercados, impõe-se, em primeiro lugar, pensar numa governança mundial. Depois, não se sabe de que modo o futuro será, como diz J.-Cl. Guillebaud, uma “modernidade mestiça”, mas, para evitar o “choque das civilizações”, impõe-se o diálogo intercultural e inter-religioso. De facto, como escreveu o teólogo José María Castillo, com todos estes factos, produziu-se “um fenómeno inteiramente novo na história da Humanidade: a mistura, a fusão ou o choque, a inevitável convivência de culturas, tradições, costumes, formas de pensar e de viver, de pessoas que vão de uns países para outros, de um extremo ao outro do mundo. E vão, não para fazer turismo, mas para tratar da vida, fugir das guerras, da fome e da morte. Mas, como é lógico, este reboliço de pessoas, de notícias, de ideias, de formas de viver fez com que – sem nos darmos conta muitas vezes do que realmente se passa – bastantes critérios, convicções, costumes e tradições que até há poucos anos tínhamos como seguros e intocáveis, hoje estejam abalados, tenham perdido segurança, se tenham esfumado, modificado ou, em todo o caso, perdido a firmeza e estabilidade que antes tinham para nós.”

 

   De qualquer modo, para o diálogo, impõe-se uma reflexão de base sobre as suas condições de possibilidade e as suas dificuldades. De facto, o diálogo é feito de encontros e desencontros. O encontro é fascinante, mas, veja-se, logo de entrada, como a própria palavra chama a atenção para a sua dificuldade: encontro mostra, nas várias línguas, um confronto, uma oposição. Assim: en-contro (lá está o contra, como em en-cuentro ou em rin-contro..., mesmo no alemão, Begegnung, está presente o contra, que se diz gegen).  

 

   A neotenia constata, no essencial, que o ser humano é um prematuro – para fazer o que faz, precisaria de permanecer no ventre materno mais um ano, mas isso não é possível; assim, nasce no termo de 9 meses, em vez de passados 20 –, tendo, portanto, de receber por cultura aquilo que a natureza lhe não deu. Frágil segundo a natureza e sem especialização, tem de criar uma espécie de segunda natureza ou habitat, precisamente a cultura. Como escreve o filósofo Robert Legros, “é na cultura ou no que a fenomenologia chama um mundo que a humanidade de Homo encontra a sua origem, e não na natureza. Quanto à origem da cultura, ela está por princípio votada a permanecer uma questão sem resposta”. Enquanto os outros animais nascem feitos, o Homem, nascendo por fazer, em aberto, tem de fazer-se a si mesmo e caracteriza-se por essa tarefa de fazer-se com outros numa história aberta, em processo.  Constata-se deste modo que nos fazemos uns aos outros genética e culturalmente. O ser humano é, pois, sempre o resultado de uma herança genética e de uma cultura em história. Assim, no processo de nos fazermos, o outro aparece inevitavelmente. O outro não é adjacente, mas constitutivo. Só sou eu, porque há tu, em reciprocidade. O outro pertence-me, pois é pela sua mediação que venho a mim e me identifico: a minha identidade passa pelo outro, num encontro mutuamente constituinte. A identidade não é estática, fixa, determinada de uma vez para sempre. E, em cada um de nós, há múltiplas possibilidades de ser: se eu tivesse tido outros encontros, se tivesse frequentado outras escolas..., certamente seria eu, mas de outro maneira, idem sed aliter. A nossa identidade é aberta, somos nós e somos muitos; se assim não fosse, como poderíamos entender os outros, compreender um romance, colocando-nos na pele de tantas personagens diferentes?...

 

   Claro que cada um, cada uma, é ele, ela, de modo único e intransferível – a experiência suma desse viver-se cada um como único e irrepetível dá-se frente à morte, na angústia do confronto com a possibilidade do nada e da aniquilação do eu: “ai que me roubam o meu eu!”, clamava M. Unamuno –, mas fazemo-nos uns aos outros, de tal modo que ser e ser em relação coincidem. Por isso, a identidade faz-se, desfaz-se, refaz-se e, em sociedades complexas e abertas, ela será cada vez mais compósita e planetária, com tudo o que isso significa de enriquecimento e ao mesmo tempo de complexidades e possíveis rupturas. O outro é vivido sempre como fascinante e ameaça. Porque o outro é outro como eu, outro eu, e, simultaneamente, um eu outro, outro que não eu. Daí, a ambiguidade do outro. O outro enquanto outro escapa-se-me, não é dominável.

 

    Nunca saberei como é viver-se como outro. Quando olhamos para outra pessoa, perguntamos: como é que ela se vive a si mesma, por dentro?, como é que ela me vê?, como é o mundo a partir daquele foco pessoal? Porque é simultaneamente, tanto do ponto de vista pessoal como grupal e societal, um outro eu e um eu outro – outros como nós e outros que não nós –, o outro atrai, ao mesmo tempo que surge como perigo possível. Há, pois, uma visão dupla do outro, que tanto pode ser idealizado – no amor, é divinizado –, como diabolizado. Atente-se na ligação entre hospitalidade e hostilidade, derivados do latim “hospite” e “hoste”, respectivamente. Cá está: o outro é hóspede, por exemplo, no hotel e no hospital. Mas, no hotel, pedem-nos a nossa identidade, porque podemos constituir uma ameaça, um perigo ou ir embora, sem pagar. Aliás, agora, também há o “hostel”, onde a dimensão hostil é mais visível pela sua sonoridade, e, por isso, nos pedem, repito, para prevenir, a identificação. E a fronteira, porta de entrada e de saída, em ligação com fronte – a nossa fronte somos nós voltados para os outros e ao mesmo tempo ela é limite e demarcação de nós –, anuncia o outro – outro país – e é espaço de acolhimento e também da independência.

 

    No quadro desta ambiguidade, entende-se como, por medo, ignorância, desígnios de domínio, se pode proceder à construção ideológica e representação social do outro essencialmente e, no limite, exclusivamente, como ameaça, bode expiatório, encarnação e inimigo a menosprezar, marginalizar, humilhar e, no limite, abater, eliminar. Num mundo global, cada vez mais multicultural e de pluralismo religioso, é urgência maior repensar a identidade e avançar no diálogo intercultural e inter-religioso, sempre no horizonte da unidade na diferença e da diferença na unidade.

   

    As revoluções em curso, que obrigam a repensar o futuro da Humanidade, são outras razões que aprofundam a necessidade e urgência do encontro e diálogo entre as culturas e religiões. O que desde há anos Hans Küng vem sublinhando – a necessidade do diálogo inter-religioso para ser possível a paz no mundo – é cada vez mais urgente. Entende-se mais claramente do que nunca que a obra do célebre teólogo, autor principal da “Declaração de uma Ética Mundial”, aprovada pelo Parlamento Mundial das Religiões em Chicago, em 1993, se oriente pelo lema: “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso globo sem um ethos global, um ethos mundial”.

 

    Falo nas religiões, mas o problema estende-se às várias dimensões do Humanum, precisamente porque o ser humano é, constitutivamente cultural, resultado de uma herança genética e de uma cultura em história, é bom repetir. Por isso, a integração noutra cultura é tudo menos fácil. Porquê? Quem não reflectiu suficientemente é por vezes levado a pensar que a cultura é como um vestido, algo exterior que a pessoa facilmente troca, mudando de cultura como muda de vestido. Não é assim, de modo nenhum. Porquê? Sendo sempre o resultado de uma herança genética e de uma cultura, a cultura define-nos, faz parte da nossa identidade e, por isso, como se constata pela História, mesmo recente, não falta quem esteja disposto a bater-se, até pelas armas, pela sua cultura, que faz parte constituinte da sua identidade.

 

    Felizmente, a nossa identidade é aberta, em história e, por isso, também podemos ver no diálogo inter-cultural e inter-religioso um factor determinante de enriquecimento mútuo.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado o no DN  | 2 JUN 2019