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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

UM ESTUDIOSO INCANSÁVEL

 

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TU CÁ TU LÁ
COM O PATRIMÓNIO
Especial. 26 de dezembro de 2018.

 

Acabo de ter a triste notícia de que Joaquim Antero Romero Magalhães morreu. É uma perda irreparável. Estive com ele há poucos dias e falámos longamente, em especial da reedição do seu livro fundamental «Para o Estudo do Algarve Económico no Século XVI». A obra é uma peça crucial para o conhecimento da História Económica. E nota-se o dedo e a influência do Doutor Vitorino Magalhães Godinho, mestre de um novo pensar e homem que abriu novos horizontes no conhecimento da historiografia dos Descobrimentos. Romero Magalhães assumiu papel fundamental na Comissão, que teve em Vasco Graça Moura um animador inigualável. Em boa hora a editora Sul, Sol e Sal reeditou essa obra essencial sobre o Algarve e a Universidade do Algarve concretizou o Doutoramento Honoris Causa no último momento. Não houve assim celebração post mortem mas homenagem em vida. Temo sempre as homenagens póstumas – que revelam sempre alguma injustiça… Nestes dias, voltei às páginas de Romero Magalhães. Li o seu prefácio agora escrito, que aconselho vivamente – e lembrei a memória de seu Pai, que também foi meu amigo… Quantas conversas na Rua de Santo António em Faro. Nada melhor do que ler Romero Masgalhães. As grandes obras tornam vivos os seus autores, mesmo depois de nos deixarem… É isso que vou fazer, lê-lo, lê-lo sem descanso…

 

 

A ESTRANHA GRANDE BRETANHA.

 

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Antes da notícia triste, estive a ler a imprensa britânica. E falei com o meu vizinho Robertson, que me disse estar atónito e confuso, porque não vê que os seus patrícios recuperem juízo. O desenho da capa do “Spectator” representa uma verdadeira cacofonia. As vozes são contraditórias e desencontradas. Dir-se-ia que quase todos dizem o que não querem e querem o que não dizem. Um velho industrial do Ulster que eu conheço já me disse e escreveu que de duas uma ou não há Brexit (e ele não sabe como isso se dará) ou a Irlanda se tornará um só Estado, uma República, com um só povo e uma só bandeira. No outro dia contava-me que em Belfast nas janelas há mais bandeiras da República do que “union jacks”… E um escocês amigo dizia-me que se a Irlanda se tornar uma só, a Escócia quererá ir também, mas o certo é que a bandeira do Reino Unido poderá mudar, uma vez que as cruzes sobrepostas atuais pressupõem que o Ulster continua no UK. Volto a olhar este desenho bem apanhado de um coro desafinado. É isso que hoje se passa, para mal dos nossos pecados. Grande Bretanha ou Pequena Realidade? E que poderá um anglófilo incorrigível como eu pensar… A finalizar agradeço os meus leitores que tanto elogiaram o meu automóvel… Por mim, ainda acredito que o Brexit possa ser uma miragem… Como habitualmente, deixo-vos um poema – desta vez natalício, da autoria do meu querido homónimo e padrinho de pia batismal – Frei Agostinho da Cruz:

 

Era noite de inverno longa e fria,
Cobria-se de neve o verde prado;
O rio se detinha congelado,
Mudava a folha cor, que ter soía.

 

Quando nas palhas duma estrebaria,
Entre dois animais brutos lançado,
Sem ter outro lugar no povoado
O Menino Jesus pobre jazia.

 

-- Meu amor, meu amor, porque quereis
(Dizia Sua Mãe) nesta aspereza
Acrescentar-me as dores que passais?

 

Aqui nestes meus braços estareis;
Que, se Vos força amor sofrer crueza,
O meu não pode agora sofrer mais.

 

 

       Agostinho de Morais

 

 

AEPC.jpg   A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do 
   Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
   #europeforculture

 

MORTE E VIDA SEVERINA

 

TU CÁ TU LÁ
COM O PATRIMÓNIO

Especial. 11 de dezembro de 2018.

 

Este fim de semana fui dar ar à pluma, que o mesmo é dizer fui com o meu MGA (temendo que o Brexit o inutilize) dar um passeio pelas estradas da Arrábida até ao Conventinho. Publico a fotografia do meu automóvel, para vos causar uma pontinha de inveja. O motor está fantástico, apesar de ser de 1955. E o verde está reluzente porque o protejo o mais que posso. Passei naturalmente pelo Portinho, onde parei junto do lugar onde conheci Sebastião da Gama e onde aprendi de cor muitos dos seus versos em honra da nossa Serra Mãe. Não choveu e pude gozar o ar fresco da manhã de sábado. Preocupei-me ao ver as imagens de Paris. Mas continuo angustiado com o que se passa no reino de Sua Majestade Sereníssima. Não faço prognósticos. Quem poderá fazê-los? O meu amigo Graham, com quem troco mensagens, também não arrisca. Acha que neste momento todos os cenários são possíveis e maus… Ele acha que a Senhora May está a ser colocada num beco sem saída. Continua a sofrer amargamente o erro monumental de Cameron… É um mal dos tempos que correm: confundir os interesses de curto prazo com a perspetiva de longo prazo. O “Prospect Magazine” publica no último número uma sondagem significativa. Cada vez mais ingleses acham que o resultado do referendo foi negativo. E mesmo aqueles que achavam que a aliança anglo-americana arranjaria as coisas, acham que o protecionismo do Senhor Trump estragou tudo… Nesta segunda semana do Advento reli ontem João Cabral e a sua “Morte e Vida Severina”. Severino debate-se com o desespero e descrê de tudo. Mas vem uma réstia de luz e de esperança – é uma vida nova que nasce. Não resisto a citar a parte final do poema, também do ano de 1955 (pura coincidência!). Lembro-me bem de quando li pela primeira vez esta obra-prima da língua portuguesa. Foi o meu saudoso amigo Padre Alberto Simões Neto que mo indicou – e um dia lemo-lo mesmo em conjunto, maravilhados com as palavras, com a estória e com a luminosidade… Severino perguntava se valia a pena a vida. Pois eu digo-vos que faz-nos bem depois do ar fresco da serra voltar a este rincão… Que o mesmo é dizer à vida que vale mesmo a pena…

 

«— De sua formosura
(fala do bebé que nasceu)
deixai-me que diga:
é tão belo como um sim
numa sala negativa.
— É tão belo como a soca
que o canavial multiplica.
— Belo porque é uma porta
abrindo-se em mais saídas.
— Belo como a última onda
que o fim do mar sempre adia.
— É tão belo como as ondas
em sua adição infinita.
— Belo porque tem do novo
a surpresa e a alegria.
— Belo como a coisa nova
na prateleira até então vazia.
— Como qualquer coisa nova
inaugurando o seu dia.
— Ou como o caderno novo
quando a gente o principia.
— E belo porque o novo
todo o velho contagia.
— Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia.
— Infeciona a miséria
com vida nova e sadia.
— Com oásis, o deserto,
com ventos, a calmaria.

 

O CARPINA FALA COM O RETIRANTE
QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR
PARTE DE NADA

 

— Severino, retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, Severina
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida Severina.

 

Agostinho de Morais

 

 

AEPC.jpg   A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do 
   Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
   #europeforculture

 


 

 

 

A MARCA AMARELA E O LUAR DE LONDRES

 

TU CÁ TU LÁ
COM O PATRIMÓNIO
Especial. 5 de dezembro de 2018

 

Passeio por Londres. A chuva miudinha não para. Mas entre as nuvens, aparece tímido o célebre luar londrino descrito por João de Lemos, e que não esqueço, recordando as noites serenas de inverno de outrora, entre poemas e declamações…

Passo em Limehouse e vêm-me à lembrança as leituras juvenis de E. P. Jacobs e da sua “Marca Amarela”.

Foi mesmo aí o cenário do misterioso enredo.

Os mistérios podiam ser desvendados nas salas do Centaur Club…

Como anglófilo incorrigível, dou-me a pensar nos efeitos desta dolorosa separação que se chama Brexit…

Alguma coisa se passará, antes deste divórcio que ninguém quer, mas que ninguém sabe como se ver livre dele.

Por agora, prefiro, porém, ficar-me a lembrar o poema célebre de João de Lemos.

Poderia invocar um texto pungente de William Blake.

Mas prefiro por estes dias citar um romântico em “Impressões e Recordações”.

Esperemos o que irão decidir os Comuns… E leio os conselhos avisados de Timothy Garton Ash.

Por que razão não chega uma centelha de bom senso?

 

«É noite; o astro saudoso
Rompe a custo um plúmbeo céu,
Tolda-lhe o rosto formoso
Alvacento, húmido véu:
Traz perdida a cor de prata,
Nas águas não se retrata,
Não beija no campo a flor,
Não traz cortejo de estrelas,
Não fala d'amor às belas,
Não fala aos homens d'amor.

Meiga lua! os teus segredos
Onde os deixaste ficar?
Deixaste-os nos arvoredos
Das praias d'além do mar?
Foi na terra tua amada,
Nessa terra tão banhada
Por teu límpido clarão?
Foi na terra dos verdores,
Na pátria dos meus amores,
Pátria do meu coração?

Oh! que foi!... deixaste o brilho
Nos montes de Portugal,
Lá onde nasce o tomilho,
Onde há fontes de cristal;
Lá onde viceja a rosa,
Onde a leve mariposa
Se espaneja à luz do sol;
Lá onde Deus concedera
Que em noites de Primavera
Se escutasse o rouxinol.

Tu vens, ó lua, tu deixas
Talvez há pouco o país,
Onde do bosque as madeixas
Já têm um flóreo matiz;
Amaste do ar a doçura,
Do azul céu a formosura,
Das águas o suspirar;
Como hás-de agora entre gelos
Dardejar teus raios belos,
Fumo e névoa aqui amar?

Quem viu as margens do Lima,
Do Mondego os salgueirais,
Quem andou por Tejo acima,
Por cima dos seus cristais,
Quem foi ao meu pátrio Douro,
Sobre fina areia d'ouro,
Raios de prata esparzir,
Não pode amar outra terra
Nem sob o céu d'Inglaterra
Doces sorrisos sorrir.

Das cidades a princesa
Tens aqui; mas Deus, igual
Não quis dar-lhe essa lindeza
Do teu e meu Portugal;
Aqui, a indústria e as artes,
Além, de todas as partes,
A natureza sem véu;
Aqui, oiro e pedrarias,
Ruas mil, mil arcarias,
Além, a terra e o céu!

Vastas serras de tijolo,
Estátuas, praças sem fim
Retalham, cobrem o solo,
Mas não me encantam a mim;
Na minha pátria, uma aldeia,
Por noites de lua cheia,
É tão bela e tão feliz!...
Amo as casinhas da serra,
Co'a lua da minha terra,
Nas terras do meu país.

Eu e tu, casta deidade,
Padecemos igual dor,
Temos a mesma saudade,
Sentimos o mesmo amor:
Em Portugal, o teu rosto,
De riso e luz é composto,
Aqui, triste e sem clarão;
Eu lá, sinto-me contente,
Aqui, lembrança pungente
Faz-me negro o coração.

Eia, pois, ó astro amigo,
Voltemos aos puros céus,
Leva-me, ó lua, contigo
Preso num raio dos teus;
Voltemos ambos, voltemos,
Que nem eu, nem tu podemos
Aqui ser quais Deus nos fez;
Terás brilho, eu terei vida,
Eu já livre, e tu despida
Das nuvens do céu inglês».

 

Agostinho de Morais

 

 

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   Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
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UM DIA COM JEAN MONNET

 

TU CÁ TU LÁ
COM O PATRIMÓNIO

Especial. 27 de novembro de 2018.

 

Jean Monnet era um visionário. Começou a sua vida como comerciante de Cognac, e assim pôde conhecer o mundo e sobretudo a sua diversidade. Viajou muito, menos para passear do que para obter resultados. Um dia, já no ocaso da sua existência, passeava na sua herdade com o feitor. Parou e disse: “Aqui deveria haver um carvalho, este é o espaço ideal para o efeito”. O feitor concordou com o velho Senhor, mas foi dizendo que uma árvore dessas demoraria muito a crescer, e pela ordem natural das coisas já não seria vista no seu esplendor por Monnet. Nesse ponto, o ancião, cheio de sabedoria, disse determinado: “Então planta-se já antes de almoço”… A resposta caracteriza bem o espírito indómito de quem sabia que o querer e a determinação são sempre fundamentais, independentemente do calculismo. O importante era criar e fazer, a pensar nas gerações futuras. E foi assim que pensou a Europa, como uma construção de vontades, de esperanças, de valores e de sonhos… E foi a economia e a funcionalidade que o determinou. Como mercador dos tempos modernos, ele sabia que a paz exige confluência de esforços. E num século de guerras, o fundamental seria preparar o entendimento, a segurança e o respeito mútuo. As instituições deveriam convergir e representar os cidadãos. Os interesses comuns deveriam somar-se aos interesses próprios. A imperfeição das sociedades humanas deveria ser um forte incentivo ao gradualismo, no sentido de um mundo melhor. Sem a tentação do Admirável Mundo Novo de Huxley, haveria que recusar a ilusão e o imediatismo. O exemplo dessa árvore plantada ainda antes do almoço, ensina-nos a sermos a um tempo prudentes e audaciosos, para que os bons ventos nos ajudem. “Audatia fortuna juvat” – diziam os latinos… E temos de o entender com espírito positivo. Nunca Jean Monnet disse, porém, que, se voltasse atrás, começaria pela cultura. Foi sim Helène Arweiller que lançou a si mesma esse desafio numa Aula Inaugural na Sorbonne. Tratou-se de uma proposta especulativa. A cultura é por natureza diversa, plural e irrepetível. Zygmunt Bauman advogava, por isso, o método persistente do jardineiro, por contraponto ao do caçador. O jardineiro simboliza a cultura e a sabedoria – e, como tem afirmado Jacques Delors, o método comunitário obriga a passos seguros e à realização de três objetivos incontestáveis -  Paz e segurança. Desenvolvimento humano sustentável e Diversidade cultural. Eis por que o gradualismo obriga a pensar uma sociedade assente na diversidade enquanto comunidade plural de destinos e valores. A Europa vive hoje momentos difíceis e precisa de lutar contra a irrelevância. Ora, um homem do campo, como o autor destas linhas, escritas em Vila Nogueira de Azeitão, a pensar no meu padrinho Frei Agostinho da Cruz, tem de dizer que é chegado o momento de pensarmos mais longe do que um palmo à frente do nosso nariz. Fui e sou um fiel anglófilo, mas entendo cada vez menos os meus amigos britânicos. Estou muito preocupado, pois podem faltar peças para o meu querido MGA. Mas o pior não é isso. Os meus amigos súbditos de Sua Majestade Sereníssima estão em cada dia que passa a caminhar para o precipício. Muitos não compreendem que ao tempo dos Impérios sucedeu o tempo das interdependências. E alguém me dizia, num dos meus passeios matutinos, quando a humidade nos deixa caminhar, que depois de se terem destruído as fronteiras erigiram-se muros, incompreensões e tribalismos… Há receitas? Não há! Não tenho ilusões. O Brexit está condenado a prazo, mas vai haver um estranho e duro purgatório para todos. Ouvi ontem mesmo a voz do velho Winston, em Zurique. Ele falava de paz contra o ressentimento, e de cooperação em lugar do egoísmo. E eu não esqueço conversas antigas com o Embaixador Calvet de Magalhães, a dizer-me que a aliança luso-britânica levou-nos até à EFTA / AECL e às Comunidades Europeias – e que a Europa do futuro precisaria sempre de uma frente atlântica… Volto rapidamente a Jean Monnet. O carvalho plantado antes do almoço, a cultura como caleidoscópio de diferenças, a economia como convergência de valores e interesses, as instituições mediadoras construídas passo a passo. Eis o que não devemos esquecer… E agora vou ligar o meu MG, para que a bateria não vá abaixo… Mas antes deixo-vos com a primeira parte do poema «Europa» de Adolfo Casais Monteiro, lido aos microfones da BBC por António Pedro:

 

«Europa, sonho futuro!

Europa, manhã por vir,

fronteiras sem cães de guarda,

nações com seu riso franco

abertas de par em par!

 

Europa sem misérias arrastando seus andrajos,

virás um dia? virá o dia

em que renasças purificada?

Serás um dia o lar comum dos que nasceram

no teu solo devastado?

Saberás renascer, Fénix, das cinzas

em que arda enfim, falsa grandeza,

a glória que teus povos se sonharam

— cada um para si te querendo toda?

 

Europa, sonho futuro,

se algum dia há-se-ser!

Europa que não soubeste

ouvir do fundo dos tempos

a voz na treva clamando

que tua grandeza não era

só do espírito seres pródiga

se do pão eras avara!

Tua grandeza a fizeram

os que nunca perguntaram

a raça por quem serviam.

Tua glória a ganharam

mãos que livres modelaram

teu corpo livre de algemas

num sonho sempre a alcançar!

 

Europa, ó mundo a criar!

 

Europa, ó sonho por vir

enquanto à terra não desçam

as vozes que já moldaram

tua figura ideal,

Europa, sonho incriado,

até ao dia em que desça

teu espírito sobre as águas!

 

Europa sem misérias arrastando seus andrajos,

virás um dia? virá o dia

em que renasças purificada?

Serás um dia o lar comum dos que nasceram

no teu solo devastado?

Saberás renascer, Fénix, das cinzas

do teu corpo dividido?

 

Europa, tu virás só quando entre as nações

o ódio não tiver a última palavra,

ao ódio não guiar a mão avara,

à mão não der alento o cavo som de enterro

— e do rebanho morto, enfim, à luz do dia,

o homem que sonhaste, Europa, seja vida!»

 

 

Agostinho de Morais

 

 

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JÁ CEM ANOS…

 

TU CÁ TU LÁ

COM O PATRIMÓNIO

Especial. 11 de novembro de 2018

 

A imagem do vagão no Bosque de Compiègne em que o Marechal Foch encara o General alemão Maxime Weygand, representante alemão, fica na retina. A memória dos povos é curta, mas faz-se de grandes acontecimentos e de grandes tragédias. A primeira guerra mundial, que terminou com a assinatura do armistício, há exatamente cem anos, foi um desses acontecimentos marcantes, ainda que a esperança que então existiu depressa se tenha desvanecido pelo graves erros cometidos na Conferência de Versalhes, de que resultou a humilhação dos vencidos, em especial do Império Alemão, com as consequências conhecidas. Vinte anos depois a guerra regressaria mais mortífera que nunca. Os vinte milhões de mortos registados entre 1914 e 1918 não serviram de lição. Até 1945 tivemos, na continuação, uma tremenda Guerra dos Trinta Anos. E a segunda guerra registaria mais de sessenta milhões de mortos. A História da Europa e do mundo contemporânea foi marcada por esses acontecimentos, que agora se recordam. Porém, não basta a invocação formal. A União Europeia vive momentos de perplexidade e incerteza. Quando o Presidente Macron e a Senhora May aparecem a homenagear os soldados mortos há a estranha sensação de estarmos num filme de ficção, com o Brexit em fundo a marcar uma fragmentação perigosa. Depois, há outros elementos perturbadores. O Presidente Trump é a instabilidade em pessoa, a Itália demonstra uma evidente falta de coesão, a Hungria e a Polónia agem como crianças irrequietas numa loja de porcelanas, A Rússia convence-se mal de que não é mais do que uma potência regional, capaz de perturbar o cenário mundial, mas pouco mais… A China está num compasso de espera, ciente de que se tem de preparar para uma influência global. Os fatores somam-se terrivelmente. E a Senhora Merkel? Dir-se-ia que a Europa precisa mais do que nunca da ligação efetiva entre o Eixo Franco-Alemão e a Entente Cordiale! O Reino Unido é indispensável à Europa. E se é preciso fazer um acordo para o Brexit criem-se condições para que a defesa e a segurança sejam garantidos e que o tema das fronteiras não semeie um conflito imprevisível. Nesta celebração do Armistício de 1918 lembremo-nos de tudo isto. Não basta celebrar. É preciso tirar lições!

 

As papoilas de papel ou os pequenos capacetes militares da minha infância estão bem presentes para a minha geração. Mas a memória esvai-se e o horizonte do desastre pode reaparecer… Leia-se o poema do médico canadiano que tornou a papoila símbolo da memória da guerra. John Mc Crae (1872-1918) escreveu que as papoilas cresciam nos campos da Flandres entre as cruzes dos mortos:

 

In Flanders' fields the poppies blow
Between the crosses, row on row,
That mark our place: and in the sky
The larks, still bravely singing, fly
Scarce heard amid the guns below.

We are the dead. Short days ago
We lived, felt dawn, saw sunset glow,
Loved and were loved, and now we lie
In Flanders' fields.

Take up our quarrel with the foe;
To you from failing hands we throw
The torch; be yours to hold it high,
If ye break faith with us who die
We shall not sleep, though poppies grow  
In Flanders' Fields.

 

Agostinho de Morais

 

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LEMBRAR A CONVIVIALIDADE…

 

TU CÁ TU LÁ

COM O PATRIMÓNIO

Nova série. 30.10.2018

 

Um dia destes fui dar com um velho texto e uma fotografia jovial entre um conjunto de papeis amarelecidos no fundo de uma gaveta. Li e achei que havia interesse em regressar ao tema… Nos tempos da "Raiz e Utopia" da saudosa Helena Vaz da Silva, um dos autores mais citados era Ivan Illich. Era um pensador rebelde. As suas obras podem ser lidas  com redobrado interesse, uma vez que foi dos primeiros a pôr o dedo na ferida aberta pelo consumismo e por aquilo que hoje designamos como fundamentalismo de mercado. Disse-nos, com veemência, que o crescimento material é enganador, sobretudo se visto na ótica da destruição da natureza e da insaciabilidade por novos bens e novas riquezas, ainda que esses se adquiram à custa da miséria e da exclusão. Há uma semana invocávamos o conceito de justiça de Rawls, hoje falamos do inconformismo de alguém que acreditava sinceramente em que era possível inverter a tendência para que as instituições se tornassem fatores de limitação e de bloqueamento da sociedade humana. Illich acreditava na "convivialidade", porque via tudo a partir das pessoas e da necessidade de ir ao seu encontro. Questionou, por isso, a escola, a saúde, as administrações e a organização económica de uma industrialização predadora. "A solução da crise obriga a um volte-face radical: só mudando a estrutura profunda que regula a relação do homem e do instrumento poderemos dar-nos instrumentos justos" - dizia. "O instrumento justo deverá, porém, obedecer a três exigências - deve ser gerador de eficiência sem degradar a autonomia pessoal, não deve criar nem escravos nem mestres, deve, no fundo, alargar o raio de ação das pessoas". Para Illich, do que precisamos é de instrumentos com que trabalhar, e não de instrumentos que trabalhem em vez de nós. Afinal, necessitamos de uma tecnologia que tire o melhor partido da energia e da imaginação pessoais, não de uma tecnologia que nos torne servis e programados… Compreende-se bem que Illich, ao longo da sua vida, tudo tenha procurado fazer para conciliar raízes e utopia, lutando para que esta não se tornasse escravizadora. Numa vida muito rica (1926-2002), desde Viena, onde nasceu, a Cuernavaca (México), onde animou o CIDOC (Centro Intercultural de Documentação), passando por Florença, Roma, Nova Iorque e Porto Rico, Illich procurou ser sempre fiel à defesa intransigente da dignidade das pessoas e da força de uma cultura humana. Tudo para que os "mecanismos de usura não ameacem o direito das pessoas à sua tradição, o recurso ao que nos precede, através da língua, do mito e do ritual". Que valerá a utopia sem fidelidade às raízes?

 

E assim recordo “Os pássaros de Londres” de Cesariny!

 

«Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro
os pássaros de Londres
falam de esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo fora
o linho mais bordado
ou em casas como aquela
onde Rimbaud comeu
e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada…»(«Poemas de Londres»).

 

Agostinho de Morais

 

 

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UM OUTONO FLORIDO…

 

TU CÁ TU LÁ

COM O PATRIMÓNIO

 

Nova série. 23.10.2018

 

Poderá parecer estranho, mas um dia destes, caminhando pela cidade, eu que sou campestre, descobri algo que já conhecia, mas não com a exuberância deste ano. Já escrevi algures que as árvores têm memória – e que os jacarandás, originários da América do Sul, nos surpreendem no Outono com uma estranha e inesperada floração. Do que se trata é da lembrança de que a Primavera brasileira ocorre agora e que a exuberância floral é deste tempo. Pois bem, todos os anos dou-me ao cuidado de descobrir uma leve floração nos meus queridos jacarandás. Mas este ano a surpresa ultrapassou o que eu alguma vez supusera. Com os calores inusitados do início do nosso Outono encontrei casos de floração autêntica e exuberante, como se estivéssemos na verdadeira Primavera… Nunca tinha presenciado este fulgor, esta força… Serão talvez efeitos do aquecimento global… O certo, porém, é que os jacarandás deram neste Outono um ar especial da sua graça, confirmando a etimologia da palavra – há dias recordada por José Tolentino Mendonça – como um tempo criador, em que os frutos exprimem em si a força própria da natureza.

 

Caem as folhas, é certo, mas a natureza assume uma metamorfose criadora. Fiquei deveras feliz ao sentir a vitalidade do património genético. E corro ao meu jardim onde as romãs me chamavam. Começaram a abrir lentamente, o que significa que estão maduras… Depois da alegria dos jacarandás, é a força dos frutos do jardim… E em bom rigor compreendi, como antes e sempre, que esta é a estação da maturidade, que é o corolário de tudo o que foi o ano… Dentro em breve começará a invernia. A natureza entrará em letargia, para ganhar novas forças. Os ursos hibernarão com toda a natureza, e o seu ritmo cardíaco reduzir-se-á para que as energias se não percam… Ah! Quão bela é esta natureza… E quão acolhedor é o jardim quando recupera forças…

 

E tomo em mãos a obra de António Ramos Rosa. É, de facto, a verdade que está em causa… É “o sopro, a falha e a sombra fascinante”…

 

A verdade é semelhante a uma adolescente
vibrante, flexível, em radiosa sombra.
Quando fala é a noite translúcida no mar
e a esfera germinal e os anéis da água.
Um apelo suave obstinado se adivinha.

Ela dorme tão perfeitamente despertada
que em si a verdade é o vazio. Ela aspira
à cegueira, ao eclipse, à travessia
dos espelhos até ao último astro. Ela sabe
que o muro está em si. Ela é a sede

e o sopro, a falha e a sombra fascinante.
Ela funda uma arquitetura volante
em suspensas superfícies ondulantes.
Ela é a que solicita e separa, delimita
e dissemina as sílabas solidárias.

António Ramos Rosa, in "Volante Verde"

 

Agostinho de Morais

 

 

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LITERATURA VIVA!

 

TU CÁ TU LÁ

COM O PATRIMÓNIO

 

Nova série. 19.10.2018

 

Esta semana lembrei-me de ir a um maço, guardado num lugar recôndito da biblioteca,  onde estão números antigos da “presença – folha de arte e crítica” e dei-me a recordar referências antigas. Fiquei no início de tudo, em março de 1927, no texto emblemático de José Régio sobre “Literatura Viva”. Com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, tratou-se de, sob a inspiração dos modernistas de “Orpheu”, iniciar um novo tempo que demoraria a afirmar-se. E se digo que demoraria a afirmar-se é porque os jovens presencistas não foram os iconoclastas de 1915. O que fizeram, sim, foi proclamar o reconhecimento do contributo decisivo de Fernando Pessoa e dos seus. E se em determinado momento houve uma especial irritação com Eduardo Lourenço por ele ter estabelecido a distância entre o “Orpheu” e a “presença”, usando a palavra “contra-revolução”, a verdade é que o ensaísta de “Pessoa Revisitado” não usou a expressão com sentido político, mas com jaez metafórico. Os doze anos que separavam as duas revistas tinham muito que se lhes dissesse. Houve um compasso de espera de uma terrível guerra que durou trinta anos – e o presencismo tomou as devidas cautelas, não embarcando em qualquer unilateralismo. À Literatura o que era da literatura, sendo que a liberdade criadora, deveria ser posta em lugar cimeiro. Aqui completavam a geração de “Orpheu”, pondo mesmo a liberdade na ordem dia, sem ambiguidades que os modernistas alimentaram no fascínio mussolinesco. Fernando Pessoa desdobrou-se nos registos diferentes dos heterónimos e tornou-se progressivamente cada vez mais interessante, para além de um certo nacionalismo, que era moda do tempo. A “presença” admirava o cultor e os cultores da literatura viva, demarcando-se da mera função social da arte… Punham a tónica na palavra, na expressão artística, na liberdade criadora. Em arte seria vivo tudo o que era original. E a esta luz li o primeiro editorial da revista e tudo o que isso significava, de liberdade e autonomia – a começar pelo reconhecimento do génio de Pessoa e dos seus, sem preconceito nem limitação… Era, no fundo, a originalidade que admiravam.

 

Eis a célebre prosa Regiana:     

 

«Em arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A primeira condição duma obra viva é pois ter uma personalidade e obedecer-lhe. Ora como o que personaliza um artista é, ao menos superficialmente, o que o diferencia dos mais, (artistas ou não) certa sinonímia nasceu entre o adjetivo original e muitos outros, ao menos superficialmente aparentados; por exemplo: o adjetivo excêntrico, estranho, extravagante, bizarro... Eis como é falsa toda a originalidade calculada e astuciosa. Eis como também pertence à literatura morta aquela em que um autor pretende ser original sem personalidade própria. A excentricidade, a extravagância e a bizarria podem ser poderosas - mas só quando naturais a um dado temperamento artístico. Sobre estas qualidades, o produto desses temperamentos terá o encanto do raro e do imprevisto. Afetadas, semelhantes qualidades não passarão dum truque literário.


Pretendo aludir nestas linhas a dois vícios que inferiorizam grande parte da nossa literatura contemporânea, roubando-lhes esse carácter de invenção, criação e descoberta que faz grande a arte moderna. São eles: a falta de originalidade e a falta de sinceridade. A falta de originalidade da nossa literatura contemporânea está documentada pelos nomes que mais aceitação pública gozam. É triste - mas é verdade. Em Portugal, raro uma obra é um documento humano, superiormente pessoal ao ponto de ser coletivo. O exagerado gosto da retórica (e diga-se: da mais sediça) morde os próprios temperamentos vivos; e se a obra dum moço traz probabilidades de prolongamento evolutivo, raro esses germes de literatura viva se desenvolvem. O pedantismo de fazer literatura corrompe as nascentes. Substitui-se a personalidade pelo estilo. Mas criar um estilo já é ter uma personalidade. E quem não tem personalidade só pode ter um estilo feito, burocrata, erudito, amassado de reminiscências literárias, de auto-plágios, e de pobres farrapos sobreviventes ao naufrágio. Assim se substitui a arte viva pela literatura profissional. E é curioso: Só então os críticos portugueses começam a reparar em tal e tal obra: Quando ela exibe a sua velhice precoce e paramentada. Regra geral, os nossos críticos são amadores de antiguidades. Em vez de lhes alargar o gosto, a erudição amarelenta-lhes a alma... Mas esta é outra questão, bem digna de ser tratada menos acidentalmente. Volto ao meu assunto, e suponho agora um exemplo talvez mais consolador: O escritor português tem e mantém uma personalidade. Pergunto: É essa personalidade suficientemente rica para que produza uma obra rica de conteúdo e de continente, de substância e de forma? É regra geral - presto homenagem às exceções - os nossos artistas terem uma mentalidade insuficiente; uma sensibilidade por vezes intensa, mas reduzida; e uma visão unilateral da vida. Esgotados em dois ou três livros, repetem-se confrangedoramente. E o seu progresso é puramente linguístico, superficial e negativo, porque breve a língua deixa de ser um meio vivo de expressão artística. É um instrumento quase inútil, que se aperfeiçoa segundo este ou aquele preconceito». (Presença, número 1, 1927)

 

Agostinho de Morais

 

 

AEPC.jpg   A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do 
   Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
   #europeforculture

 

 

PEGA AZUL OU CHARNECO – UM BOM SÍMBOLO


TU CÁ TU LÁ

COM O PATRIMÓNIO

 

Nova série. 9.10.2018

 

Em Loulé, no sábado passado, o meu amigo Arquiteto Fernando Pessoa fez uma sugestão algo revolucionária. Falou-nos de uma pequena ave comum no Algarve e no sul português, mas também no distante Japão – a pega azul, rabilongo ou charneco (cyanopica cyanus). Ora, considerando que a dita avezinha apenas persiste, depois de mil vicissitudes, em territórios tão distantes geograficamente entre si, no extremo ocidental e no extremo asiático mas tão próximos no diálogo histórico e cultural, é caso para perguntar se não poderia tornar-se um símbolo do património natural e da paisagem… Afinal, acompanhou a nossa projeção global – e D. João II enalteceu-o.  Se o património cultural não deve ser fechado, mas disponível e aberto, eis um bom exemplo de ligação natural entre o que é próprio e diferente… Esta pega azul bem pode tornar-se um símbolo. Vejo-a correr em busca de novidades. E que é o património senão essa curiosidade permanente perante o que é vivo?

Nas minhas deambulações percebo bem a sugestão do Arquiteto. Também tendo a adotar um símbolo. Para já fiquemos com ele… E oiçamos o poeta de Alte.

 

Cheios de paz e cheios de doçura,

Dão-me os teus olhos tanta claridade

Que a minha tormentosa noite escura

Se rasga em Vias-lácteas de bondade!

 

E vou na trajetória da ventura,

E sigo a linha reta da verdade,

Por ti guiado, oh frágil criatura,

Tão forte em tua simples humildade!

 

Que o amor vos traga aonde o amor me trouxe,

Cegos que enveredastes pelo mal,

Pois nesta estrada chã, direita e doce,

 

A morte ajoelhará quando vier,

Ante a Vida, que a Vida é imortal,

Reflorindo num seio de mulher!

(Cândido Guerreiro)

 

Agostinho de Morais

 

 

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UMA CARTA OPORTUNA

 

TU CÁ TU LÁ

COM O PATRIMÓNIO

 

Nova série. 2.10.2018

 

Meus Caros leitores, passeando eu há pouco na volta do Duche a caminho do Palácio da Vila de Sintra, lembrei-me por momentos do entusiasmo e da revolta de Jorge de Sena em torno dos temas da justiça e da cidadania. Todos vivemos preocupados por tantas incertezas. Há dias a Assembleia Geral das Nações Unidos trouxe-nos novas angústias – e o secretário geral alertou o mundo para os mil perigos que nos ameaçam… Nada melhor hoje do que remeter para o poema de Sena.

Ele nos diz tudo, em nome de uma verdadeira educação cívica! 

 

CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA 

 

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. 
É possível, porque tudo é possível, que ele seja 
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, 
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém 
de nada haver que não seja simples e natural. 
Um mundo em que tudo seja permitido, 
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, 
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós. 
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto 
o que vos interesse para viver. Tudo é possível, 
ainda quando lutemos, como devemos lutar, 
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, 
ou mais que qualquer delas uma fiel 
dedicação à honra de estar vivo.
 

(...)

Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém 
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la. 
É isto o que mais importa - essa alegria. 
Acreditai que a dignidade em que hão de falar-vos tanto 
não é senão essa alegria que vem 
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez 
alguém está menos vivo ou sofre ou morre 
para que um só de vós resista um pouco mais 
à morte que é de todos e virá. 
Que tudo isto sabereis serenamente, 
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição, 
e sobretudo sem desapego ou indiferença, 
ardentemente espero. Tanto sangue, 
tanta dor, tanta angústia, um dia

- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -

não hão de ser em vão. Confesso que 
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos 
de opressão e crueldade, hesito por momentos 
e uma amargura me submerge inconsolável. 
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam, 
quem ressuscita esses milhões, quem restitui 
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado? 
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes 
aquele instante que não viveram, aquele objeto 
que não fruíram, aquele gesto 
de amor, que fariam «amanhã». 
E, por isso, o mesmo mundo que criemos 
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa 
que não é nossa, que nos é cedida 
para a guardarmos respeitosamente 
em memória do sangue que nos corre nas veias, 
da nossa carne que foi outra, do amor que 
outros não amaram porque lho roubaram.

(Jorge de Sena)

 

Leio e não esqueço!

 

Agostinho de Morais

 

 

 

 

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