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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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RELIGIÃO A MAIS? DEUS E DIGNIDADE

 

1. O filósofo Henri Bergson, na obra famosa As Duas Fontes da Moral e da Religião, mostrou a distinção entre dois tipos de religiosidade. A primeira - a religiosidade estática - tem a sua base na angústia da morte e no sentimento de abandono perante uma Natureza tantas vezes cruel, e, a partir do instinto de sobrevivência, procura protecção divina para a pequenez humana. A outra - a religiosidade dinâmica - assenta na intuição do Mistério Último experienciado como amor. Esta exprime a grandeza do ser humano e apoia-se na experiência de pessoas excepcionais - os místicos. Mas a mística autêntica e completa é acção, pois o místico verdadeiro, "através de Deus, por Deus, ama a Humanidade inteira com um amor divino".


Não há corte radical entre as duas formas, mas é necessário reconhecer que há vivências mais e menos perfeitas da religião e uma consciência de nível mais alto neste domínio. Quando o núcleo da religião é vivido no amor, não só termina a intolerância como se impõe a compreeensão entre as pessoas, independentemente da sua confissão religiosa. Foi assim que, por exemplo, no sufismo, corrente mística do islão, houve a visão clara de que, insistindo no aspecto amoroso da religião, se dava a aproximação com Jesus, sem necessidade de abandonar a profissão islâmica. Kamil Hussein escreveu: "Se sentes no profundo de ti mesmo / que isso que te incita ao bem é o teu amor por Deus / e o teu amor pelos homens que Deus ama; / se pensas que o mal consiste em afastar-se dos homens / porque Deus os ama, como te ama a ti, / e que perdes o teu amor a Deus se causas dano àqueles que Ele ama, / isto é, a todos os homens, / tu és discípulo de Jesus, seja qual for a religião que professes".


Há um tremendo equívoco na afirmação corrente "católico não praticante", referida só à prática dos rituais religiosos. De facto, como escreveu Nietzsche, "só uma vida como a dAquele que morreu na cruz é cristã". No Juízo Final, não se pergunta se se foi à Missa ou a Fátima, mas se se foi ao encontro dos mais necessitados: deste-me de comer, de beber, de vestir, foste ver-me ao hospital, na cadeia... Os primeiros cristãos tiveram de defender-se da acusação de ateísmo: de facto, não só recusaram o culto oficial romano como não tinham aqueles sinais que aparentemente fazem parte da essência da religião: templos, altares para o sacrifício... Mas amavam Deus e Jesus e o seu sinal distintivo era o amor: “Vede como eles se amam”, diziam os pagãos. E celebravam com alegria o memorial que Jesus deixara na Última Ceia, a Eucaristia.


Na perspectiva cristã pode-se e deve-se perguntar: para quê o culto oficial, em ordem a aplacar a divindade e propiciar a sua benevolência, se Deus se revelou definitivamente como amor? Só quando for vivida adequadamente no “templo” do mundo a religião verdadeira da justiça e do amor, terá sentido pleno celebrar nos templos a alegria gozosa da vida e da fraternidade em Deus. Por isso, enquanto "a prática cristã" a que se referia Nietzsche for anémica, poder-se-á dizer com razão que no sentido corrente de ritos e cerimónias até há religião a mais.


2. Nestes tempos conturbados, é urgente insistir na questão da religião e da dignidade. De facto, tantos homens e mulheres e crianças que foram escravizados, humilhados, torturados, física e espiritualmente, com base na religião! Pense-se na Inquisição, na tragédia dos abusos de menores ... E ainda se degola gente da forma mais bárbara, argumentando com o Alcorão...


Houve, e há ainda, homens e mulheres para quem teria sido preferível nunca ter ouvido falar em Deus, melhor: não ter tido contacto com certas formas de religião. De facto, a religião foi muitas vezes para muitos causa de desgraça, de infelicidade, de tortura física e interior: pense-se nas guerras de base religiosa, na queima das bruxas, nos escrúpulos, nos traumas sexuais...


Mas, depois desta constatação, é preciso também proclamar bem alto: o Deus em nome do qual se humilhou, se torturou, se escravizou, não é Deus. É apenas um ídolo que os seres humanos criam para satisfazer as suas loucuras, afugentar os seus medos e legitimar a sua ânsia de dominação. Uma religião que conduz à menoridade mental, que escraviza, que faz andar de rastos, das duas uma: ou é uma religião falsa ou os crentes interpretam-na mal. A razão é simples: Deus tem de ser, repito constantemente, pelo menos, melhor do que nós. Ora, um ser humano sadio não pode querer a menoridade de ninguém, não pode tolerar a humilhação, a injustiça, a escravatura, a indignidade...


Por isso, é preferível não acreditar em Deus a acreditar num Deus que humilha o Homem, o escraviza, o torna menor... Se o crente, pelo facto de o ser, não se sente mais humano, mais livre, mais digno, com uma obrigação acrescentada de lutar por mais dignidade, por mais liberdade, por mais fraternidade, por mais alegria, só tem uma coisa a fazer: deixar de acreditar.


Nisto, os ateus, não os ateus vulgares, mas os que sabem o que isso quer dizer, vêem por vezes mais claro que os próprios crentes. Ernst Bloch, por exemplo, viu bem, quando, aliás na linha de Hegel, escreveu que na religião autêntica se exprime a infinita dignidade de ser Homem. Foi ele também que disse que até ele se inclinaria perante um cardeal ou bispo que dissesse e praticasse aquela palavra de Jesus, referente ao Juízo Final: “Aquilo que fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos foi a mim que o fizestes”.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 27 de novembro de 2021

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

68. DIGNITATIS HUMANAE


A dignidade não tem preço. Ninguém a pode comprar.   

É pessoal, inalienável e intransmissível.

Ao falarmos em dignidade humana falamos em direitos humanos, sendo estes a concretização efetiva do que é denominado como “dignidade da pessoa humana”.

Assumir os direitos humanos como um mínimo ético existencial que é expressão da dignidade humana, é tornar acessível ao ser humano todas as coisas de que necessita para ter uma vida digna: alimentação, vestuário, habitação, constituir família, direito ao trabalho, à educação, à saúde, à liberdade de informação, de religião, igualdade essencial entre todos, sem distinção de cor, raça, sexo, condição económica ou social.

Esta titularidade de direitos inalienáveis, positivados e reconhecidos como uma exigência de respeito pela dignidade da pessoa humana, tem deveres correspondentes.

Preocuparmo-nos só com a consagração de direitos, convencendo-nos de que a nossa dignidade nos obriga a reclamar sempre mais, é esquecer que a efetiva realização do Direito e dos direitos humanos passa, em grande medida, pelo cumprimento significativo de deveres. 

Por exemplo, o direito à vida tem, como correlativo, o dever de respeito pela vida nas suas mais variadas formas, o que implica, em especial, o dever de não matar, incluindo o de não destruir as plantas e de matar os animais sem causas de justificação. 

Refira-se, em especial nesta data natalícia, o reconhecimento a todos os seres humanos, pelo cristianismo, de uma inabalável dignidade, como filhos de Deus, extensiva a todos em igual medida, chamando a atenção para a “dignidade de cada homem concreto como filho de Deus” e para a “unidade do género humano”.   

E se é verdade que a doutrina cristã dignificou o Homem, estando igualmente na base da tomada de consciência da dignidade inviolável da pessoa humana, também é verdade que não conseguiu uma verdadeira igualdade entre os filhos de Deus, pois esse reconhecimento irredutível de dignidade não significou o reconhecimento de direitos, sendo a pessoa mais um beneficiário dessa dignidade do que um verdadeiro sujeito de direitos. Iguais perante Deus, os seres humanos mantiveram-se separados em razão do “berço”, o que é mais um privilégio para alguns do que um verdadeiro direito para todos.   

O que não é novidade, pois é destino das doutrinas, sendo fundamental a sua permanência e intemporalidade, resistindo e sobrevivendo às contingências, guerras, ruturas e revoluções, como sucedeu com o cristianismo.   

Mas a mensagem cristã perdura, com caraterísticas intemporais, deixando vigente um critério de identidade centrado na dignidade humana, referida pela Declaração Dignitatis Humanae, do Concílio Vaticano II: “Os homens de hoje tornam-se cada vez mais conscientes da dignidade da pessoa humana e, cada vez em maior número, reivindicam a capacidade de agir segundo a própria convicção e com liberdade responsável, não forçados por coação mas levados pela consciência do dever. Requerem também que o poder público seja delimitado juridicamente, a fim de que a honesta liberdade das pessoas e das associações não seja restringida mais do que é devido”.

Dignidade humana que o Natal também intenta recuperar, a que acresce o respeito pelos animais, na versão franciscana do presépio, por confronto com o apelo a um consumismo compulsivo, antítese de uma sã dignidade, a que muitos não resistem e, infelizmente, só assim se sentem “dignos”, em “dignidade”. 

Iguais perante Deus e não separados em razão do “berço”, um fim e não um meio ao serviço de interesses estamentais instituídos, eis o núcleo central de uma permanente mensagem natalícia que anseia por realização. 
 

Um feliz Natal, neste Natal pandémico.

 

24.12.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício