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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ESPERAR O INESPERADO

  


É sempre uma festa o reencontro com Edgar Morin, na bonita idade de 102 anos. E é oportunidade para lembrarmos os amigos comuns, que já nos deixaram, mas que estão bem presentes nas nossas memórias, num fecundo caminho em prol da liberdade – António Alçada Baptista, Helena e Alberto Vaz da Silva ou Mário Soares. Há dias, tive a honra de abrir a sessão na Fundação Oriente, durante a qual o mestre encantou uma plateia fascinada pelo seu brilhantismo e oportunidade. Lembrei os sete pilares que propõe para a educação contemporânea, e ainda há pouco subscreveu com Elisabeth Badinter, Tahar Ben Jelloun e Pierre Nora um grito de alerta sobre a falta de qualidade da escola, afirmando que saber escrever não se reduz a alinhar frases, mas a dar sentido ao que escrevemos. De um modo singularmente acessível, falou-nos da complexidade, usando ideias claras e distintas – em nome das cabeças bem feitas de Montaigne. Há pouco, publicou De Guerre en Guerre – de 1940 à l’Ukranie (Aube, 2023) e compreendemos que “navegamos num imenso oceano de incertezas, onde existem apenas pequenas ilhas para nos irmos reabastecendo”. A sua vida, desde as origens sefarditas, é o percurso de um intelectual comprometido com a liberdade e a dignidade humana, ao lado de Alain Touraine e de Paul Ricoeur (como salientou Teresa de Sousa). Presenciou conflitos e guerras, tomou posição, denunciou a degradação ambiental, como exigência humana, antes de se tornar moda. Lembrou-nos o relatório do Clube de Roma (1972) sobre “Os Limites do Conhecimento”, salientando a tendência para o rápido esgotamento dos recursos naturais e a lentidão na tomada de medidas. Agora, falou-nos de uma nova carta do humanismo, a propósito da experiência dos países de língua portuguesa e do Atlântico Sul. E pôs a tónica no risco do que designou como trans-humanismo, que leva a sociedade a pensar-se imortal, perante os avanços científicos e técnicos, idolatrando a inteligência artificial, em lugar de a pôr ao serviço das pessoas e da natureza. A sociedade ilusória, baseada numa elite do dinheiro e do poder, esquece os milhões de seres humanos que vivem na pobreza e na precariedade. “O humanismo significa o respeito e a consideração que qualquer ser humano merece. E temos de reconhecer a humanidade na sua unidade e na imensa diversidade”. Vivemos, na nossa aventura coletiva, diversas crises: ambiental, económica, democrática e da mundialização. As democracias têm perdido força. Um país como a China dispõe de meios tecnológicos que controlam os indivíduos e a sua vida, mercê das tecnologias de informação e comunicação e do reconhecimento facial, numa lógica de submissão neototalitária. Países como a Rússia, em parte a Turquia e na América do Sul cultivam o despotismo com fachada democrática. A mundialização, sobretudo económica, levou ao surgimento do racismo, da intolerância, do medo das diferenças e dos novos nacionalismos – até ao que acontece na Ucrânia – o que não tem permitido tornar uma comunidade de destino em fator de solidariedade. “Esta guerra comporta perigos enormes, para além dos massacres em todos os campos e do risco da destruição de recursos alimentares e agrícolas”. Há uma escalada que pode degenerar num novo tipo de conflito mundial, para o qual poderemos a estar a ser arrastados. Se ninguém previu o início da guerra em 1914, bem com a invasão da Ucrânia ou a pandemia, isso significa que temos de saber esperar o inesperado e preparar-nos para tal. Edgar Morin afirma que temos de saber escolher entre a barbárie e a solidariedade, compreendendo o diálogo entre “polemos”, o debate de ideias, “eros”, a importância do amor, e “tanatos”, a consciência da morte. Temendo o risco da regressão, o pensador acredita nas ideias e na esperança que representam. E esperar o inesperado é acreditar na prevalência da dignidade humana como fator de paz.  


GOM

LIBERDADE E DIGNIDADE HUMANA

 

1. A diferença entre o Homem e os outros animais não é meramente de grau, quantitativa. Ela é a qualitativa, essencial.


A razão dessa diferença está fundamentalmente no facto de o Homem não se encontrar na simples continuidade da vida no sentido biológico. Como escreveu o filósofo Max Scheler, o Homem é “o asceta da vida”, pois é capaz de dizer não aos impulsos instintivos. Por exemplo, ao contrário dos animais, o ser humano, mesmo com fome, perante um petisco, é capaz de renunciar, por razões de ascese, de generosidade para com um necessitado ou pura e simplesmente para provar a si mesmo que é senhor de si e das suas acções. Precisamente nesta sua capacidade vê o célebre biólogo Francisco J. Ayala “a base biológica da conduta moral da espécie humana, nota essencialmente específica dela.” Porque é capaz de renunciar, abster-se, deliberar, optar, o Homem é um animal livre e moral.


Os outros animais também comunicam, mas o Homem tem linguagem duplamente articulada. Aristóteles viu bem, ao definir o Homem como animal que tem logos (razão e linguagem), e, assim, como “animal político”. “Só o Homem, entre os animais, possui fala. A voz é uma indicação da dor e do prazer: por isso, têm-na também os outros animais. Pelo contrário, a palavra existe para manifestar o conveniente e o inconveniente bem como o justo e o injusto. E isto é o próprio dos humanos frente aos outros animais: possuir, de modo exclusivo, o sentido do bem e do mal, do justo e do injusto e das demais apreciações. A participação comunitária nesta funda a casa familiar e a pólis”, o Homem é “animal político”.


Quando lemos os clássicos como Aristóteles é que nos apercebemos como a política anda tão longe desta apreciação do bem e do mal, do justo e do injusto, do conveniente e do inconveniente, de tal modo é presa da fama ridícula, de interesses egoístas, do poder pelo poder, do dinheiro tantas vezes à custa da corrupção...


2. Mas seremos realmente livres? Se sempre se colocou esta pergunta, hoje, concretamente, quando as descobertas da genética e das neurociências mostram uma conexão entre os genes, o cérebro e os comportamentos, há a tentação da dúvida. Não estaremos, afinal, totalmente submetidos aos mecanismos da natureza e da sociedade?


É, no entanto, claro que sem liberdade não há dignidade. De facto, ser ser humano e ser livre identificam-se. Também para o cristianismo há um vínculo indisssolúvel entre o Homem e a liberdade: como escreveu São Paulo, onde está a liberdade aí está o Espírito de Cristo e onde está o Espírito de Cristo aí está a liberdade. A liberdade mostra-se numa experiência transcendental: por paradoxal que pareça, não seria sequer possível discutir a questão da liberdade, se tudo estivesse sujeito ao determinismo. A pessoa livre é aquela que faz a experiência de ser dona de si mesma e das suas acções segundo o dever-ser. Somos dados a nós mesmos e, assim, senhores de nós e do que fazemos.  A dignidade funda-se nesta autoposse: só porque me possuo a mim mesmo é que me posso dar a alguém, entregar-me a uma causa.


Ao contrário do animal, que vem ao mundo já feito e age no quadro de uma rede de instintos, o Homem vem ao mundo praticamente desarmado de instintos, tendo de fazer-se a si mesmo no mundo com os outros. Pode escolher entre esta e aquela possibilidade, até ppode escolher não escolher, mas também esta é uma escolha, com todas as consequências. O Homem é capaz de erguer-se a si mesmo acima do simplesmente agradável ou útil, do que dá prazer, e colocar-se no lugar do outro. É capaz de transcender os interesses particulares da natureza e enquanto ser racional dá a si mesmo a lei moral universal que é a lei da liberdade. O filósofo I. Kant formulou-a nestes termos: “Age segundo uma lei que queiras ao mesmo tempo que se transforme em lei universal de acção”, e: “Trata a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de todos os outros sempre como fim nunca como simples meio”. Note-se que este “simples meio” é importante, pois também nos tratamos como meios, na medida em que nos servimos dos serviços de alguém e até lhe pagamos por isso; por exemplo, vamos ao restaurante e pagamos a quem nos serve, mas aquela pessoa continua pessoa, não redutível a empregado no restaurante; por isso, é fim e não simples meio, tem dignidade: as coisas têm um preço, a pessoa não é simples meio, é fim e, por isso, não tem preço, tem dignidade.


Sem capacidade moral e liberdade — a liberdade é a condição de possibilidade da moralidade e, consequentemente, da responsabilidade: cada um responde por si, pelos seus actos e pelo que faz de si. O que é que andamos a fazer no mundo? Resposta: fazendo o que fazemos, andamos a fazer-nos a nós próprios, e, no fim, o resultado será uma  obra de arte ou uma vergonha —, o Homem não seria digno de louvor nem estaria sujeito à censura, ao prémio ou ao castigo, e não haveria distinção entre o bem e o mal moral. Como escreveu o filósofo Luc Ferry, que já foi Ministro da Educação em França, “um materialismo consequente deveria limitar-se, sempre, a uma ‘etologia’, sem nunca falar de moral a não ser como ilusão mais ou menos necessária, fazendo parte do real, mas enganadora.” Embora sempre condicionado, só porque não é completametne subordinado nem guiado pela natureza é que o ser humano “pode cometer excessos, quer no mal (o ódio e a maldade), quer no bem (o amor e a generosidade)”.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 3 JULHO 2021

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

68. DIGNITATIS HUMANAE


A dignidade não tem preço. Ninguém a pode comprar.   

É pessoal, inalienável e intransmissível.

Ao falarmos em dignidade humana falamos em direitos humanos, sendo estes a concretização efetiva do que é denominado como “dignidade da pessoa humana”.

Assumir os direitos humanos como um mínimo ético existencial que é expressão da dignidade humana, é tornar acessível ao ser humano todas as coisas de que necessita para ter uma vida digna: alimentação, vestuário, habitação, constituir família, direito ao trabalho, à educação, à saúde, à liberdade de informação, de religião, igualdade essencial entre todos, sem distinção de cor, raça, sexo, condição económica ou social.

Esta titularidade de direitos inalienáveis, positivados e reconhecidos como uma exigência de respeito pela dignidade da pessoa humana, tem deveres correspondentes.

Preocuparmo-nos só com a consagração de direitos, convencendo-nos de que a nossa dignidade nos obriga a reclamar sempre mais, é esquecer que a efetiva realização do Direito e dos direitos humanos passa, em grande medida, pelo cumprimento significativo de deveres. 

Por exemplo, o direito à vida tem, como correlativo, o dever de respeito pela vida nas suas mais variadas formas, o que implica, em especial, o dever de não matar, incluindo o de não destruir as plantas e de matar os animais sem causas de justificação. 

Refira-se, em especial nesta data natalícia, o reconhecimento a todos os seres humanos, pelo cristianismo, de uma inabalável dignidade, como filhos de Deus, extensiva a todos em igual medida, chamando a atenção para a “dignidade de cada homem concreto como filho de Deus” e para a “unidade do género humano”.   

E se é verdade que a doutrina cristã dignificou o Homem, estando igualmente na base da tomada de consciência da dignidade inviolável da pessoa humana, também é verdade que não conseguiu uma verdadeira igualdade entre os filhos de Deus, pois esse reconhecimento irredutível de dignidade não significou o reconhecimento de direitos, sendo a pessoa mais um beneficiário dessa dignidade do que um verdadeiro sujeito de direitos. Iguais perante Deus, os seres humanos mantiveram-se separados em razão do “berço”, o que é mais um privilégio para alguns do que um verdadeiro direito para todos.   

O que não é novidade, pois é destino das doutrinas, sendo fundamental a sua permanência e intemporalidade, resistindo e sobrevivendo às contingências, guerras, ruturas e revoluções, como sucedeu com o cristianismo.   

Mas a mensagem cristã perdura, com caraterísticas intemporais, deixando vigente um critério de identidade centrado na dignidade humana, referida pela Declaração Dignitatis Humanae, do Concílio Vaticano II: “Os homens de hoje tornam-se cada vez mais conscientes da dignidade da pessoa humana e, cada vez em maior número, reivindicam a capacidade de agir segundo a própria convicção e com liberdade responsável, não forçados por coação mas levados pela consciência do dever. Requerem também que o poder público seja delimitado juridicamente, a fim de que a honesta liberdade das pessoas e das associações não seja restringida mais do que é devido”.

Dignidade humana que o Natal também intenta recuperar, a que acresce o respeito pelos animais, na versão franciscana do presépio, por confronto com o apelo a um consumismo compulsivo, antítese de uma sã dignidade, a que muitos não resistem e, infelizmente, só assim se sentem “dignos”, em “dignidade”. 

Iguais perante Deus e não separados em razão do “berço”, um fim e não um meio ao serviço de interesses estamentais instituídos, eis o núcleo central de uma permanente mensagem natalícia que anseia por realização. 
 

Um feliz Natal, neste Natal pandémico.

 

24.12.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

A VIDA DOS LIVROS

 

De 19 a 25 de junho de 2017.

 

Pico della Mirandola (1463-1494) foi o mais célebre erudito do seu tempo e o maior cultor das Humanidades e escreveu “Discurso sobre a Dignidade Humana” (1480), traduzido em português pelas Edições 70 (2011).

 

APRENDER A DIGNIDADE
Falar de Humanidades, hoje e sempre, é reportarmo-nos a uma aprendizagem ligada à dignidade humana. Quando tomamos contacto com um texto clássico, vindo da tradição oral da civilização grega, como a «Ilíada» ou a «Odisseia», ou com um antigo diálogo filosófico, estamos no cerne das Humanidades. Do mesmo modo, quando nos deparamos com o património imaterial da humanidade – a gastronomia, as línguas, as tradições, os costumes - ou com a cultura científica e as técnicas ancestrais e novas. É de Humanidades que falamos – muito mais do que de cultura geral, ou de ideias genéricas. Muitas vezes, julga-se que o alargamento das fronteiras da Humanidades visa diluir os limites entre saberes e enfraquecer as ciências sociais e humanas. Puro engano. Lembre-se os exemplos de Pedro Nunes, Garcia de Orta e D. João de Castro. É de Humanidades que falamos para qualquer um deles, como procura e encontro de saberes e conhecimentos, que permitam melhor compreender a humanidade. E as modernas neurociências têm permitido salientar a importância da capacidade criadora das sociedades humanas e das pessoas – o poeta e o cientista encontram novos caminhos quanto ao conhecer e à criatividade em processos semelhantes. Por isso, estamos a abandonar o otimismo da autossuficiência, percebendo-se que a ciência económica ou a sociologia, a história ou a biologia, a arte e a física não podem viver separadamente, na ignorância umas das outras. Para tanto, impõe-se um caminho de partilha e de complementaridade. Dê-se dois exemplos recentes: o progresso das novas tecnologias de informação e comunicação não pode fazer esquecer que se impõe reforçar a relevância das relações interpessoais (a robótica deve facilitar a qualidade de vida e a integração das pessoas); do mesmo modo, quando vemos a evolução da ciência económica, facilmente percebemos que a recente crise financeira obrigou a articular cada vez mais o risco e a incerteza como fatores de análise, o que determina que a complexidade e a partilha de experiências entre equipas se tenham tornado elementos cruciais que permitem superar as limitações das explicações unívocas ou centradas em projeções lineares do crescimento económico… A desvalorização das Humanidades tem correspondido, assim, à subalternização da complexidade como método científico transversal – capaz de favorecer a especialização (e não a fragmentação), o espírito de equipa e de compreender que o desenvolvimento humano obriga à articulação das duas culturas de C. P. Snow, sem subalternizações nem complexos de superioridade e inferioridade. Como salienta a Professora Isabel Capeloa Gil: “Sem enveredar pelo género da jeremiada da crise, pretendo (…) pensar a importância das humanidades e ciências sociais como macroárea e propor que, apesar de constituída como saber próprio e disciplinarmente organizado, esta é afinal a base conceptual transversal necessária a qualquer trabalho em ciência. (…) Interessa-me propor uma reflexão sobre a importância social de um discurso sobre a falta de impacto, de utilidade, na verdade, de falta de valor das humanidades e ciências sociais” (in Humanidade(s) – Considerações radicalmente contemporâneas, Universidade Católica Portuguesa, 2016, pp. 12-13). E é daqui que devemos partir, de modo a assegurar a compreensão do fenómeno complexo da criação e de garantir um progresso partilhado de métodos em nome de uma autêntica e profícua cultura científica. E não se pense que o problema é meramente teórico, porque não é, já que está em causa a mobilização de recursos, a definição de prioridades e a existência de condições concretas para o progresso das ciências – com todas as implicações sociais, económicas, políticas, educativas…

 

BASE DE UM PROJETO EPISTEMOLÓGICO
Importa, no fundo, assumir, como faz Isabel Gil, que as humanidades constituem a base de qualquer projeto epistemológico. Toda a ciência é, no fundo, uma ciência humana. Cabe às Humanidades levantar questões e exercer uma função crítica – pondo na ordem do dia o espanto, donde resulta o pensamento, como origem e impulso da investigação. E assim as Humanidades são definidoras de uma matriz societal, a começar na Europa. Uma ciência de excelência não pode desenvolver-se sem considerar essa força criadora. Mais do que falarmos dos critérios gerais para financiamento de projetos, por exemplo, no âmbito da União Europeia e do Programa Horizonte 2020, no qual se tem verificado uma subalternização das Humanidades (em sentido estrito) e das Ciências Sociais, importa definir com muita clareza a articulação transversal dos diversos campos do conhecimento. E é na transdisciplinaridade que as Humanidades devem ganhar maior importância. De facto, o futuro dos saberes e da investigação científica depende do cultivo das ciências sociais e humanidades. Os Principia de Newton, Electricity de Franklin ou o Tratado de Química de Lavoisier foram a um tempo obras científicas e literárias – e são monumentos da cultura científica e das Humanidades. Longe de uma separação, há uma natural ligação. Condorcet defendeu a harmonização das artes com as ciências e Rousseau no célebre Discurso sobre as ciências e as artes afirmou que as ciências da natureza não poderiam separar-se das artes, sob pena de contribuírem para o atraso moral da humanidade. Quando F. R. Leaves respondeu a C. P. Snow, dizendo que o apelo deste para que os académicos da literatura se familiarizassem com a segunda lei da termodinâmica era um exemplo de diletantismo académico, não tinha razão, uma vez que a cultura científica tende a atenuar as fronteiras tradicionais entre o método explanatório das ciências naturais e o método interpretativo ou hermenêutico das ciências humanas. Do que se trata é de encontrar no diálogo científico novas pistas que permitam compreender melhor o mundo. Como tem defendido Martha Nussbaum, importa considerar o regresso à educação de valores, segundo um conhecimento não padronizado e uma visão transversal do saber assente num novo senso comum… É a democracia que está em causa, que exige a criação de uma cultura universal decente. Não se trata, pois, de fazer uma análise estática, dentro do pressuposto de que prevalecem os critérios tradicionais de permanência das circunstâncias conhecidas – “a universidade deve transmitir conhecimentos sólidos, competências sociais, culturais e técnicas robustas que permitam aos licenciados adaptar-se às transformações, e não a agir simplesmente como instituição que se adapta ao mercado” (p.55). Pico della Mirandola continua a ser o melhor esteio neste tema difícil das Humanidades. É necessário o diálogo de saberes e o fim do divórcio entre as duas culturas. Saber lidar com as leis da física, com os computadores, com as novas tecnologias, mas também com as artes tradicionais, será tão importante como conhecer o grego e o latim e ler os grandes textos e os grandes autores. Afinal, as Humanidades são “as guardiãs da república, fonte de memória nacional e vigor cívico, da compreensão cultural e comunicação, da realização individual e das ideias que partilhamos em comum” – como disse John Hennessy, presidente da Universidade de Stanford.   

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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