Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Eleanor Roosevelt, presidente da Comissão dos Direitos Humanos na ONU (1946-1950), a segurar a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
189. EM BUSCA DA POSIÇÃO MAIS FAVORÁVEL E EFICAZ AOS DIREITOS HUMANOS
Em primeiro lugar, todos somos humanos: somo-lo antes de sermos africanos, americanos, asiáticos, brancos, negros, mestiços, budistas, cristãos, muçulmanos, latinos, lusófonos, cidadãos do mundo.
Daqui decorre que todo o ser humano, pelo simples facto de ter nascido pessoa, em igualdade de circunstâncias com os demais, é igual, com todos, em dignidade, independentemente das suas caraterísticas pessoais, dos seus méritos ou deméritos. Além desta dignidade ontológica (que pressupõe, como primado, que todos os humanos são iguais), há a dignidade existencial, moral e social, entre outras. A dignidade dessas pessoas é delas por absoluto, por inteiro e por natureza, não lhe podendo ser negada ou retirada, porque não lhe foi conferida por quem governa, pelos detentores do poder estadual ou por quaisquer outros indivíduos.
A dignidade vale mais que a identidade, antecipando-se-lhe, pois antes de sermos portugueses e europeus, por exemplo, somos seres humanos.
Não admira que o ser humano seja portador de direitos humanos universais (de todos), pessoais (intransmissíveis), indisponíveis (inalienáveis), iguais (nenhum é inferior ou superior aos restantes), permanentes (só se extinguem com a morte), não patrimoniais (não expropriáveis e não suscetíveis de avaliação pecuniária) e interdependentes (o uso e fruição de qualquer um afeta o dos demais).
Pergunta-se: como compatibilizar esta conceção dos direitos humanos com a do Direito num Estado moderno, em que o Direito decorre de um ato de vontade do poder estadual, garantido pela coação colocada pelo Estado ao seu dispor para impor a sua imperatividade através da lei?
Sendo o Direito, na civilização ocidental, essencialmente positivista, onde sobressai o laicismo, o tecnicismo e a sua relatividade espácio-temporal, impondo-se pela força da sua positivação, onde a lei, os costumes, a jurisprudência e a prática dos tribunais predominam, considerou-se não ser, sob esta perspetiva, suficiente, dado não poder alhear-se do seu fim, que é o ideal de Justiça.
A um Direito predominantemente mecanicista, tecnicista, purista, sem alma, à disposição do Estado para que dele se sirva como mais um meio ou instrumento de poder, junta-se um conjunto de várias doutrinas (jusnaturalistas) que têm como denominador comum que o direito positivo deve ser objeto de uma valoração, atentas os princípios do direito natural e o aspeto ético do Direito.
Tendo o direito natural, por natureza, como um direito superior ao direito positivo instituído, não necessitaria de ser reconhecido por lei, ao invés do direito artificial, feito e positivado pelos humanos. Quando se diz, exemplificando, que a lei que defende a pena de morte viola o direito à vida, defende-se uma realidade que não depende de estar ou não reconhecida na lei positiva, apesar de nada impedir que se positive o direito à vida, dado que, ao fazê-lo, deve excluir-se a pena de morte tornando eficaz a defesa e proteção dos direitos humanos.
Assim, embora a posição mais favorável aos direitos humanos seja a que reivindica a sua desnecessidade de positivação, a mais eficaz e procedente, em termos de defesa e proteção, é a que defende a sua positivação, por maioria de razão após o Holocausto e outras formas de tirania cometidas a coberto de irrepreensíveis legalidades, fazendo renascer, como reação, a intervenção da dimensão axiológica no estudo científico do jurídico.
Interpretação desse ideal é a exigência e positivação da dignidade da pessoa humana, pressuposto e fundamento básico dos direitos humanos.
Eleanor Roosevelt, presidente da Comissão dos Direitos Humanos na ONU (1946-1950), a segurar a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
186. ESCRUTÍNIOS ÉTICOS E LEGAIS
Antes das leis positivas, feitas pelos humanos, de natureza imperativa e coativa, há as normas éticas, tidas como leis-comandos, naturais ou inerentes à razão humana. Representam, algumas delas, valores éticos permanentes convertidos em lei, como o não matarás, um dos dez mandamentos das tábuas de Moisés.
Também há direitos humanos e fundamentais, consagrados da Declaração Universal dos Direitos Humanos e textos constitucionais, como o direito à vida, à integridade física, à saúde e à habitação, inspirados nas mais antigas preocupações éticas.
O que não surpreende, dado que sendo a ética uma consciência filosófica permanentemente crítica e dinâmica (ao invés da moral, mais conservadora e estática), adapta-se continuamente à exigência de descoberta e apresentação dos comportamentos sociais obrigatórios, sendo uma filosofia de evolução.
Mas o que é ético não é forçosamente legal, porque a legalidade tem a ver com a conformidade com a lei, o que pode não coincidir com uma avaliação ética.
É legal vender uma casa ou um veículo automóvel em mau estado de conservação pelo preço que valem, embora seja eticamente censurável esconder do comprador o seu estado. Sendo também condenável, em termos éticos, não pagar uma dívida prescrita, que subsiste, apesar de extinta e não exigível judicialmente.
A ética é mais restritiva que a lei, nem aceita que os meios justifiquem os fins, pois a natureza ética de um ato não advém de este produzir ou não resultados positivos.
E há cada vez mais, com especial incidência nos regimes democráticos mais evoluídos, mecanismos de avaliação ou de fiscalização de integridade pessoal, mais conhecidos pelo termo inglês vetting (ou fit and proper test), que servem para escrutinar o percurso de certas pessoas que são candidatas a um determinado cargo político ou de elevado grau de confiança pública, onde a avaliação ética é fundamental.
Indagando para que servem e provando a dificuldade de escrutinar e decidir questões éticas, via regras fechadas, num determinado contexto, dá-se o exemplo de alguém que se candidata ao exercício de certas funções numa organização internacional, de elevado grau de confiança pública, que foi condenado por crimes e cumpriu pena de prisão vários anos, e que é liminarmente excluído, tomando como referência a regra geral, o que faz sentido. Exclusão sem cabimento se esse condenado for alguém como Mandela ou outro preso político, nas mesmas circunstâncias, por delitos similares. Por um lado, nenhuma lei consegue prever todas as circunstâncias, por outro, a condenação e/ou a prisão podem ter acontecido por motivos que confirmam a integridade pessoal (ética e legal) do candidato, em vez de o colocar em questão.
Este juízo ético informado ou sistema de avaliação ética de fiscalização prévia de uma pessoa ao exercício de certas funções, escrutinando o seu percurso e avaliando a sua integridade, reforça a confiança pública nos detentores desses cargos, desde que os cidadãos confiem nessa avaliação, o que nem sempre sucede havendo, com regularidade, uma mera censura ética que é insuficiente por confronto com a regra legal, categórica e abstrata, emanada de uma autoridade soberana que impõe aos seus destinatários uma obrigação de submissão, sob pena de serem sancionados.
E se é verdade que nenhum sistema legal e de vetting consegue evitar todos os problemas legais e de ética, também qualquer sistema de avaliação tem de ser concebido para reforçar o escrutínio público (não o substituindo) detetando, por exemplo, eventuais conflitos de interesses que possam antecipadamente ser regulados ou aclarados, tornando público o que foi feito. E à medida que o escrutínio dos cidadãos aumenta, através dos meios de comunicação social, mais exigível será o escrutínio ético, contribuindo para um maior escrutínio legal, incluindo o político, de modo a garantir a defesa do bem comum.
Foi longo o meu conhecimento de Joana Marques Vidal e sempre tivemos uma cooperação muito profícua. Em tudo o que se envolveu, foi uma cidadã e uma profissional sempre empenhada na realização da justiça como concretização dos direitos humanos e da dignidade pessoal de todos. Com inteligência, considerava que mais importante do que as declarações bombásticas sobre qualquer tema, importava sobretudo ponderar as consequências sociais e humanas de qualquer fenómeno. Nenhum acontecimento poderia ser encarado apenas na sua aparência. A complexidade obriga à ponderação de razões em presença e a imperfeição humana tem de estar presente em qualquer interpretação e nas suas consequências. Não é a sociedade perfeita que visamos, mas a capacidade de podermos ser amanhã melhores do que hoje.
Desde que nos conhecemos, encontrei em Joana Marques Vidal uma atitude de grande humanidade e de consciência firme da justiça como séria ponderação ética – compreendendo, prevenindo, combatendo a mentira e a ilusão. Por isso, desde sempre foi uma defensora da especificidade das difíceis questões ligadas à família e aos menores, como salientou Pedro Strecht na última homenagem que lhe prestou. Ainda antes de trabalharmos juntos, foi no âmbito do apoio às vítimas na APAV que primeiro nos encontrámos. Perante tão complexo tema, deparei-me com a preocupação permanente da cidadã e da magistrada em estudar as situações mais difíceis, em antecipar os riscos, garantindo a denúncia atempada das situações e a proteção das pessoas atingidas ou em perigo de morte.
Todos nascem e devem viver livres e iguais em dignidade e direitos, eis o que permanentemente estava presente na sua ação. Depois, como Procuradora Geral Adjunta no Tribunal de Contas nos Açores, testemunhei diretamente a entrega plena ao serviço público, que reforçou os laços de amizade e admiração, que se prolongaram, quando assumiu a função de Procuradora-Geral da República, numa cooperação muito forte no reforço da jurisdição e das contas e no apoio ao Conselho de Prevenção da Corrupção, em especial com a criação dos planos de prevenção de riscos. Conversámos longamente em especial sobre a preocupação de recusar uma conceção demagógica do fenómeno da corrupção, como se a sociedade não fosse toda vulnerável a algo que começa num favor e acaba num crime. Daí a exigência da prevenção e de uma atenção especial a todos os indícios, privilegiando as decisões colegiais, combatendo os conflitos de interesses e apostando na boa e exigente prestação de contas. Do mesmo modo, concordámos na necessidade de restringir a figura do enriquecimento ilícito ao dinheiro público, para impedir a inconstitucionalidade sobre o ónus da prova, privilegiando a figura do responsável público como fiel depositário… Com grande serenidade, Joana Marques Vidal sabia bem que eficiência e justiça são inimigas da espetacularidade. E tive o gosto de trabalhar com ela até ao fim, na Universidade do Minho, nas presidências do Conselho Geral e do Conselho de Curadores. Mantivemos a convergência de preocupações e de métodos. E foi com grande desgosto que tomei conhecimento da doença e do seu tremendo desenlace. É, pois, uma saudade profundamente sentida que aqui exprimo, lembrando trinta anos de conhecimento, com experiências comuns que jamais esquecerei, pelos ensinamentos recebidos e pelo exemplo inesquecível.
No passado dia 10 de Dezembro celebrou-se o 75.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. De facto, ela foi adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 10 de Dezembro de 1948, em Paris: “A Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objectivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito por esses direitos e liberdades, e, pela adopção de medidas progressivas de carácter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e efectiva.” Nos artigos 1 e 2 lê-se: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” e podem invocar os direitos e liberdades desta Declaração, “sem distinção alguma de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social, fortuna, nascimento ou qualquer outra situação...”
Lembrando precisamente a Declaração e os seus 75 anos, permito-me retomar uma síntese de outra Declaração, infelizmente menos conhecida e invocada: a Declaração Universal dos Deveres Humanos, de que há tradução em português — tomo a liberdade de referir que o último contacto de Maria Barroso comigo foi precisamente para me lembrar isso. Para superar a crise e para que a esperança não seja mera ilusão, wishfull thinking, precisamos todos de ser fiéis às nossas responsabilidades e cumprir os nossos deveres.
Já na discussão do Parlamento revolucionário de Paris sobre os direitos humanos, em 1789, se tinha visto que "direitos e deveres têm de estar vinculados", pois "a tendência para fixar-se nos direitos e esquecer os deveres" tem "consequências devastadoras".
Foi assim que, em 1997 e após debates durante dez anos, o Interaction Council (Conselho Interacção) de antigos chefes de Estado e de Governo, como Maria de Lourdes Pintasilgo, V. Giscard d'Estaing, Kenneth Kaunda, Felipe González, Mikhail Gorbachev, Shimon Peres, fundado em 1983 pelo primeiro-ministro japonês Takeo Fukuda, sob a presidência do antigo chanceler alemão Helmut Schmidt, propôs a Declaração Universal dos Deveres Humanos. Na sua redacção, teve lugar o famoso teólogo Hans Küng.
O Preâmbulo sublinha que: o reconhecimento da dignidade e dos direitos iguais e inalienáveis de todos implica obrigações e deveres; a insistência exclusiva nos direitos pode acarretar conflitos, divisões e litígios intermináveis, e o desrespeito pelos deveres humanos pode levar à ilegalidade e ao caos; os problemas globais exigem soluções globais, que só podem ser alcançadas mediante ideias, valores e normas respeitados por todas as culturas e sociedades; todos têm o dever de promover uma ordem social melhor, tanto no seu país como globalmente, mas este objectivo não pode ser alcançado apenas com leis, prescrições e convenções. Nestes termos, a Assembleia Geral proclama esta Declaração, a que está subjacente "a plena aceitação da dignidade de todas as pessoas, a sua liberdade e igualdade inalienáveis, e a solidariedade de todos", seguindo-se os seus 19 artigos, de que se apresenta uma síntese.
1. Princípios fundamentais para a humanidade
Cada um/a e todos têm o dever de tratar todas as pessoas de modo humano, lutar pela dignidade e auto-estima de todos os outros, promover o bem e evitar o mal em todas as ocasiões, assumir os deveres para com cada um/a e todos, para com as famílias e comunidades, raças, nações e religiões, num espírito de solidariedade: não faças aos outros o que não queres que te façam a ti.
2. Não violência e respeito pela vida
Todos têm o dever de respeitar a vida. Todo o cidadão e toda a autoridade pública têm o dever de agir de forma pacífica e não violenta. Todas as pessoas têm o dever de proteger o ar, a água e o solo da Terra para bem dos habitantes actuais e das gerações futuras.
3. Justiça e solidariedade
Todos têm o dever de comportar-se com integridade, honestidade e equidade. Dispondo dos meios necessários, todos têm o dever de fazer esforços sérios para vencer a pobreza, a subnutrição, a ignorância e a desigualdade, e prestar apoio aos necessitados, aos desfavorecidos, aos deficientes e às vítimas de discriminação. Todos os bens e riquezas devem ser usados de modo responsável, de acordo com a justiça e para o progresso da raça humana.
4. Verdade e tolerância
Todos têm o dever de falar e agir com verdade. Os códigos profissionais e outros códigos de ética devem reflectir a prioridade de padrões gerais como a verdade e a justiça. A liberdade dos média acarreta o dever especial de uma informação precisa e verdadeira. Os representantes das religiões têm o dever especial de evitar manifestações de preconceito e actos de discriminação contra as pessoas de outras crenças.
5. Respeito mútuo e companheirismo
Todos os homens e todas mulheres têm o dever de demonstrar respeito uns para com os outros e compreensão no seu relacionamento. Em todas as suas variedades culturais e religiosas, o casamento requer amor, lealdade e perdão e deve procurar garantir segurança e apoio mútuo. O planeamento familiar é um dever de todos os casais. O relacionamento entre os pais e os filhos deve reflectir o amor mútuo, o respeito, a consideração e o cuidado.
Bom ano 2024!
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 30 de dezembro de 2023
A Cultura como Enigma procura, num conjunto de crónicas e ensaios, salientar a importância das Humanidades como aprendizagem do ser, do conhecimento, do saber fazer e do viver com os outros, ligando cultura e ciência e visando superar a indiferença e o relativismo que subalternizam a memória, que absolutizam os contextos e os mercados e que põem em causa a dimensão emancipadora e universal da dignidade da pessoa humana e a salvaguarda da liberdade e dos direitos humanos.
UM MOMENTO ESPECIAL Num momento em que o Direito e a Cultura da Paz são menosprezados e desrespeitados, importa recuperar as virtualidades do universalismo humanista, longe da separação e da fragmentação de um formalismo que pode tornar os seres humanos súbditos ou instrumentos de novas idolatrias. O elogio do livro e da leitura significa, assim, a procura de uma emancipação baseada na autonomia, na liberdade e no sentido crítico. O enigma da cultura está, assim, no misterioso diálogo com as gerações que nos antecederam e com os pensadores, artistas, cientistas, criadores, que podemos encontrar na leitura ou no usufruto das mais diversas formas de arte e de conhecimento. É esta a pergunta fundamental da esfinge na porta de Tebas.
Eis o introito desse conjunto de reflexões: «Gosto das casas com livros e da alma que eles alimentam. E falar de livros é lembrar a sua presença a ocupar amigavelmente todos os cantos das casas onde eles existem. Não concebo a hospitalidade de uma casa sem a omnipresença dos livros. E não há prazer maior do que ir à estante e folhear um livro, que já não recordamos, do qual temos uma lembrança vaga ou que julgamos ter bem presente. No fundo, os livros fazem parte dos nossos afetos. No entanto, porque os livros vivem, ou não fossem a projeção permanente dos seus autores nas nossas vidas, é normal que quando os relemos, e julgamos conhecê-los, descubramos novas ideias, novas perspetivas, cambiantes diferentes, com se fossem eternamente novos. As bibliotecas são sempre lugares iniciáticos, misteriosos, labirintos autênticos e inesgotáveis.
ENCRUZILHADAS, BIFURCAÇÕES Os contos de Jorge Luís Borges têm a ver com esses caminhos, encruzilhadas, bifurcações, becos, saídas que nos entusiasmam ou exasperam. As minhas primeiras recordações da biblioteca fantástica de meu avô têm a ver com as Enciclopédias e os Dicionários. Foi por aí que comecei, na tentativa, sei hoje que vã, de procurar as saídas dos labirintos. E lembro-me bem dos sábados, passados até que a luz se desvanecesse, a correr de Herodes para Pilatos nas várias entradas do velho “Dicionário de Portugal”, a descobrir os vultos do nosso oitocentismo, a desvendar uma gigantesca Enciclopédia espanhola ou o “Larousse Illustré”, a folhear os Atlas e os livros imponentes e pesados com as reproduções já um pouco desmaiadas das grandes obras de arte do mundo, nos grandes Museus, desde o Louvre aos Ofícios de Florença, passando pelo misterioso Hermitage…
Eram horas esquecidas, em companhia da multidão de mortos que povoavam essa encruzilhada única que era a livraria de meu Avô (biblioteca e livraria eram sinónimos no vocabulário lá de casa). Penso que o vício dos livros veio no meu código genético. Nunca me senti bem sem eles. E quando há o vício de lidar com livros, tudo o que vem à rede é peixe. E, a pouco e pouco, depois da História, que havia para todos os gostos (o meu Avô era professor de História e Geografia), vinha o território da poesia e dos romances - dos romances, inevitavelmente. Entre duas revoltas e quatro viagens virtuais ou imaginárias (Odisseia, Ilíada, Eneida, Gulliver, Robinson e Júlio Verne) ia à poesia (Camões, Garrett, Antero, Cesário, Pessanha…) e aos romances, às coleções completas de Camilo e de Eça, sem restrições. Lá estavam todos. E rapidamente pude perceber por que razão Tolstoi era o romancista preferido dessa livraria ordenada e silente. Em frente de um antigo Atlas, perante a trajetória audaciosa e suicida do Imperador, jamais esquecerei as descrições épicas de “Guerra e Paz”.
Aos mortos das enciclopédias juntava-se a outra multidão das personagens romanescas: Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, Zé Fernandes, Jacinto, Carlos, Maria Eduarda, Basílio, Luísa… Stendhal confundia-se com Julien Sorel, com Fabrice del Dongo, com Clélia ou Sanseverina. Só Flaubert permitia compreender a ascensão e a queda de Cartago, através de Salammbô… E fica uma enorme saudade dessas aventuras e de quando minha Mãe vinha dizer serenamente que era chegada a hora de voltar».
A desumanização é a falta de compromisso com o próximo
Art. 1 Declaração Universal dos Direitos Humanos Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.
A 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas publicava a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) como resposta às brutalidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial.
A DUDH foi um archote de luz, no foco à dignidade humana.
Constatamos, contudo, o quanto as palavras não atingiram o seu objetivo. O quanto até o simbólico do bem, deixou de ser objeto de alerta.
Para nossa perplexidade, nenhum país signatário se sente absolutamente constrangido face ao incumprir do que na DUDH convencionou.
A atualidade do conteúdo dos termos da DUDH é terrífica e elucidativa de tudo o que permanece em sede de desumanização.
Basta pensarmos na fome que anula qualquer possibilidade de vida digna, e representa uma troça que deveria envergonhar a nossa existência.
A alimentação é elemento basilar da condição humana. Como é possível que uns comam e desperdicem e outros morram na falta de um alimento?
Como é possível que haja um grupo que come e um grupo dos que não comem?
Com ou sem DUDH, ninguém deveria passar fome. A verdade, é que não há quem desconheça que o flagelo da fome acarreta terríveis consequências físicas e psíquicas.
Desapareceu o sentido real dos traços humanos, nesta e noutras guerras.
E como é possível que as autoridades políticas se encontrem num divórcio permanente às realidades do sofrer?
A desumanização é, afinal, algo despido de características humanas.
A desumanização é um processo que impede o ser humano de tudo o que a sua espécie identifica.
A perda de valores éticos e de sensibilidade, tornou as gentes indiferentes à dor dos outros.
Se refletirmos que há umas décadas largas, o ser humano começou a isolar-se para se entregar aos laços virtuais, como não esperar que o seu caminho de agir se tenha tornado numa engrenagem dentro de um sistema?
A falta de compromisso com o próximo, base da desumanização, coloca-nos a questão de saber, como se desumaniza o que é humano sem que se destrua o ser por completo?
A diversidade no mundo, liga-se de modo complementar, tão complementar que a paz e o amor, começam sempre no interior de cada pessoa, e na ligação que cada um é capaz de estabelecer com os outros.
O próprio terrorismo é feito de gente abandonada, de gente mal-amada, de gente para quem o sentido de comunidade em solidariedade é lacunar na consciência do bem.
Só acordaremos para os valores da liberdade e da paz se transmitirmos o respeito pelo outro e por nós mesmos.
Se o grito de humanidade se não ouvir em todos os cantos deste mundo, falar de humanização, será afirmação que não nos faz pessoa.
Em rigor, o sofrer invadiu as almas que, à solta dos seres, se arrepiaram.
A razão iluminista tinha como desígnio a reconciliação e emancipação plena do Homem. Mas, de facto, sem esquecer evidentemente conquistas irrecusáveis, como, por exemplo, as Declarações dos direitos humanos nas suas várias gerações, deparamos com duas guerras mundiais e as suas muitas dezenas de milhões de mortos, o comunismo mundial e também os seus milhões e milhões de vítimas, deparamos com Auschwitz e o Goulag, o fosso cada vez mais fundo entre a riqueza e a miséria, a Natureza ferida, a desorientação e o vazio de sentido...
E, desgraçadamente, sabemos que o número das vítimas não cessará de aumentar, de tal modo que frequentemente a História nos aparece, como temia Walter Benjamin, à maneira de um montão de ruínas que não deixa de crescer. Mas, mesmo que fosse possível realizar no futuro uma sociedade totalmente emancipada e reconciliada, nem assim, desde que iluminada pela memória, a razão poderia dar-se por satisfeita, pois continuariam a ouvir-se os gritos das vítimas inocentes, cujos direitos estão pendentes, pois não prescrevem.
O teólogo Johann Baptist Metz não se cansou de repetir, com razão, que só conhecia uma categoria universal por excelência: a memoria passionis, isto é, a memória do sofrimento. Se a História não há-de ser pura e simplesmente a história dos vencedores, se a esperança tem de incluir a todos, quem dará razão aos vencidos?
A autoridade do sofrimento dos humilhados, dos destroçados, de todos aqueles e aquelas a quem foi negada qualquer possibilidade é ineliminável. Trata-se de uma autoridade que nada nem ninguém pode apagar, a não ser que o sofrimento não passe de uma função ou preço a pagar para o triunfo de uma totalidade impessoal. Mas precisamente o sofrimento, que é sempre omeu sofrimento, oteu sofrimento, como a morte é sempre a minha morte, a tua morte, é que nos individualiza, dando-nos a consciência de sermos únicos, de tal modo que nenhum ser humano pode ser dissolvido ou subsumido numa totalidade anónima, seja ela a espécie, a história, uma classe, o Estado, a evolução... O sofrimento revela o outro na sua alteridade, que nos interpela sem limites.
Assim, se as vítimas têm razão - a razão dos vencidos, como escreveu o filósofo Reyes Mate -, com direitos vigentes que devem ser reconhecidos, não se poderá deixar de colocar a questão de Deus, um Deus que as recorde uma a uma, pelo nome, chamando-as à plenitude da Sua vida. "Essa é a pergunta da filosofia", dizia Max Horkheimer, da Escola Crítica de Frankfurt. Mas é claro que para essa pergunta só a fé e a teologia têm resposta. Ele próprio o reconheceu, ansiando pelo “totalmente Outro”.
Se a História do mundo tem uma orientação, ela só pode ser a liberdade. Ser Homem, ser livre e ser digno identificam-se. Com razão, I. Kant não se cansou de repetir que o respeito que devo aos outros ou que os outros podem exigir de mim é o reconhecimento de uma dignidade, isto é, de um valor que não tem preço. O que tem preço pode ser trocado: é meio. O Homem não tem preço, mas dignidade, porque é fim em si mesmo.
Quando nos interrogamos sobre o fundamento da dignidade do Homem, encontramo-lo no seu ser pessoa. Pela liberdade, a pessoa está aberta ao Infinito. Se se reflectir até à raiz, concluir-se-á que o fundamento último dos direitos humanos é nesse estar referido estrutural do Homem ao Infinito que reside: nessa relação constitutiva à questão do Infinito, à questão de Deus precisamente enquanto questão (independentemente da resposta, positiva ou negativa, que se lhe dê), o Homem aparece como fim e já não como simples meio.
O Homem é senhor de si, autopossui-se, e é capaz de entregar-se generosamente a si próprio a alguém e por alguém. A Humanidade faz a experiência de si como história de libertação para mais humanidade, portanto, para mais liberdade. O Homem indigna-se desde o mais profundo de si contra a indignidade, revolta-se contra toda a violação arbitrária e impune da justiça e do direito, e é capaz de dar a vida pela dignidade da humanidade em si próprio e nos outros seres humanos.
Houve muitos homens e mulheres que, ao longo da História, livremente, morreram por essa dignidade. Mas mesmo que tivesse havido apenas um a fazê-lo, seria inevitável perguntar: o que é isso que vale mais do que a vida física?
Precisamente aqui, nesta experiência-limite, deparamos com o intolerável: como é que pode ser moralmente admissível que quem é sumamente digno, pois se entrega até ao sacrifício de si pela dignidade, morra, desapareça e apodreça, vencido para sempre? Por isso, neste acto de suma dignidade, encontramos um dos lugares em que a questão de Deus enquanto questão é irrenunciável e irrecusável.
A experiência do Deus bíblico surge essencialmente da experiência do intolerável de as vítimas inocentes serem entregues para sempre à injustiça. O Deus bíblico é definitivamente um Deus moral: é o Deus que não esquece os vencidos.
Por isso, a História não é um continuum, onde a razão estaria permanentemente do lado dos vencedores. A História está aberta ao salto último da meta-história, à Palavra definitiva que só Deus pode pronunciar, Palavra que ressuscita os mortos e reconhece para sempre às vítimas os seus direitos. Sem esse reconhecimento definitivo da dignidade de todos, bem e mal, justiça e injustiça, honra e cinismo, verdade e mentira, dignidade e indignidade, tudo é igual, pois, como escreveu Bernhard Welte, tudo seria para nada, já que irá ser engolido pelo nada para sempre.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 12 de fevereiro de 2022
Antes de sermos portugueses, europeus, africanos, americanos, asiáticos, somos todos, em primeiro lugar, seres humanos.
Daí o ser humano, pelo facto de ser pessoa, ter direitos inalienáveis e indisponíveis, pessoais e intransmissíveis.
São direitos que a ninguém podem ser negados, inatos e intrínsecos a qualquer pessoa, antepondo-se e antecedendo o Estado, limitando o poder estadual (ou outro) e os abusos de quem o exerce.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10.12.1948, há 73 anos, é o ponto de chegada e de partida de um longo e promissor processo civilizacional.
Transitou-se de nobres princípios tidos como utópicos para a consagração de direitos. Como acatá-los e assegurá-los sem sanção?
Ter-se-á dito, à época, que a DUDH era mais uma Declaração, uma utopia, tão inofensiva como outras que a antecederam.
Parecia ineficiente, foi amadurecendo e está presente nos tempos que vivemos, qual “novo evangelho” ou “boa nova” a ter sempre como um fim alcançável e exequível, apesar das violações e “pecados” aos direitos e “valores sagrados” que proclama.
Considera a UNESCO que “os Direitos do Homem não são uma nova moral nem uma religião laica; são muito mais que uma língua comum a todos os homens”.
Se é verdade que são algo de comum, transversal e universal a todos os humanos e se, formalmente e no rigor dos conceitos, não são nem uma nova moral ou religião laica, comportam-se factualmente como se o fossem, via influência que exercem sobre as convicções e condutas, incluindo dissidentes e refugiados que os defendem, e se exilam e fogem de países que os não sancionam.
Já atingiu suficiente maturidade e consolidação, ameaçando paulatinamente tiranetes, ditadores, ditaduras e totalitarismos, o que era impensável há décadas, embora os perigos da sua não aceitação e do seu não reconhecimento subsistam em permanência, por imperativos ideológicos, culturais e de poder, a começar pelo seu pecado original: a sua génese ocidental.
A DUDH tem uma missão utópica e inacabada a cumprir, qual “nova bíblia” de valores perenes que permanentemente nos orientam para um bem comum supremo que permanece sempre quimericamente por atingir.
Tem a fraqueza de não consagrar deveres com a mesma força impositiva com que contempla direitos.
Tem a longevidade de 73 anos, numa escala temporal de várias décadas, infinitamente pouco em termos cósmicos, mas já significativa confrontando-a com a durabilidade da vida humana.
81. POSITIVISMO, JUSNATURALISMO E DIREITOS HUMANOS (II)
Embora continue a ser predominantemente positivista o ensino e a prática do Direito nas universidades e nos tribunais, há um conjunto variado de doutrinas, com especial enfoque para os jusnaturalistas, que recusam uma redução do Direito às suas manifestações empíricas, tendo como denominador comum que o direito “positivo” deve ser objeto duma valoração superior com referência a um sistema superior de normas e princípios.
Para os jusnaturalistas o Direito perdeu a “alma”, tornou-se demasiado técnico, determinista e rigoroso, despiu-se e descarnou-se do ideal de justiça decorrente da natureza humana e das coisas, facilmente manipulável pela razão, pela vontade política e estadual, pela prática dos juristas, sendo insuficiente um direito legal ou jurisprudencial juspositivado.
Preocupa-os que o direito fosse confiado e disponibilizado no essencial ao Estado, servindo-se dele como mais um meio de acesso ou de perpetuação do poder, querendo opor à lei humana injusta as leis naturais da consciência, defendendo que o Direito justo (natural), vale por força da sua justiça, e não por força da sua “positivação”, gozando de uma validade suprapositiva, havendo valores e princípios jurídicos que se antepõem e antecipam ao Estado ou qualquer poder, mesmo que legitimamente aceite e instituído. As suas preocupações foram confirmadas e corroboradas por vários tiranos e formas de tirania exercidas e justificadas a coberto da legalidade, a começar pelos horrores do holocausto nazi, agudizados pela derrota do nazismo, que na sua qualidade de vencido fez sobressair iniquidades tão calculadas, malignas e devastadoras, que a nossa civilização entendeu não poderem ser ignoradas, sob pena de sobreviver a sua repetição. Exemplo desse ideal é o imperativo e exigência de respeito pela dignidade da pessoa humana, princípio e fim do Direito, titular de direitos inalienáveis, que se antepõem a todo e qualquer Estado, e centro de todo e qualquer sistema jurídico.
Justifica-se, assim, após as duas grandes guerras mundiais, a necessidade de estabelecer novos mecanismos de tutela dos direitos humanos, não meramente dependentes da sua consagração pelos ordenamentos jurídico-internos e constitucionais, mas de alcance mais vasto, dada a sua dimensão internacional.
Surge a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral da ONU, em 10.12.1948.
Acusada, por uns, de ser uma consagração e imposição ocidental dos direitos humanos, relativizados ou universalizados, para outros é um contributo decisivo, a ser atualizado, da crescente inevitabilidade de serem acordados valores e regras que sejam comuns a toda a humanidade.
80. POSITIVISMO, JUSNATURALISMO E DIREITOS HUMANOS (I)
A natureza messiânica da ciência e da técnica submeteram a realidade cognoscível à sua lógica e regras particulares, A realidade tinha de se apresentar como empiricamente observável e sujeita ao método da experimentação.
Sendo este o espírito do tempo, os juristas defenderam não existir outro Direito que não fosse o direito positivo, baseado no cientismo, que tinha como única metodologia válida a das ciências empírico-naturais. As leis, os costumes, a prática dos tribunais, tudo o que se prestasse a uma observação empírica e fosse passível de repetir-se por meio de experimentação, eram o Direito. Ideias como o bem e o mal, o belo e o feio, o justo e o injusto, existência de uma dimensão axiológica do jurídico, foram afastadas, porque ideologias, fora do plano da ciência e não suscetíveis de serem objeto de conhecimento.
Pretendendo expurgar a filosofia, o positivismo jurídico acabava por não a negar, dado ser o resultado por uma opção de filosofia: a positivista ou antimetafísica.
A atitude positivista é o Direito entendido como um sistema de normas, e nada mais do que isso, onde aqueles que o aplicam procedem a aplicações mecânicas silogísticas, onde figura como premissa maior o normativo legal geral e abstrato, que tem de subsumir-se a uma premissa menor que agarra mais de perto o caso concreto.
Escreve Angel Latorre, em Introdução ao Direito: “O jurista pode e deve realizar a crítica do direito positivo, e esforçar-se por promover a sua reforma quando a considere oportuna, mas considera essa perspetiva fora do seu campo de ação como “cientista do Direito”. Um físico estuda o átomo ainda que condene totalmente os usos violentos da energia atómica e ainda mesmo que, como cidadão, lute para os impedir. Um jurista analisa objetivamente as leis, ainda que se esforce para que o direito do seu país se ajuste aos conceitos éticos mais perfeitos, tal como ele os concebe. A atitude positivista não pressupõe tão pouco negar a importância dos estudos de sociologia jurídica, isto é, das indagações sobre a atuação do Direito na realidade social, mas simplesmente afasta da ciência jurídica e da análise das normas este tipo de considerações”.
O Direito como ordem vigente numa determinada sociedade, decorre de um ato de poder e vontade estadual, garantido por um aparelho repressivo, em que o primado da lei é garantia de certeza jurídica e salvaguarda dos destinatários contra a arbitrariedade, imperando a impessoalidade e a generalidade da lei.
Mas, e sempre, um Direito datado, entendido e interpretado na medida das suas manifestações empíricas.
Contra esta orientação, têm vindo a manifestar-se sobretudo (mas não só) os autores ou defensores jusnaturalistas.