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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

      Para melhor sentirmos o ambiente condicionante da produção literária da era Heian, é preciosa ajuda a leitura não só do Genjimonogatari como de diários coevos, donde destaco o da mesma Murasaki Shikibu. Para não me lembrar apenas do tão apreciado papel da poesia, ou de flores primaveris ou folhas outonais, como correio amoroso - numa sociedade em que as damas nobres, quando recolhidas, de homens só podiam ser vistas por seus maridos - e insistindo na liberdade de criação literária que a prática da escrita em hiragana trouxe às mulheres, transcrevo um trecho do diário da Murasaki: Quando meu irmão Nobunori (o que hoje está no Conselho dos Ritos) era rapaz, nosso pai ansiava por torná-lo num bom letrado chinês, e vinha ele mesmo muitas vezes ouvir o Nobunori ler as lições. Nessas ocasiões eu estava sempre presente, e era tão rápida a apanhar a língua, que em breve ajudava o meu irmão quando ele se atrapalhava. Perante isso, meu pai costumava suspirar e dizer-me: "Se ao menos fosses um rapaz, como eu ficaria orgulhoso e feliz!" Mas não se passaria muito tempo sem que eu me arrependesse de assim me ter feito notar. Porque várias pessoas me foram dizendo que mesmo os rapazes se tornavam muito mal vistos quando se descobria que queriam muito aos livros. Claro que, se se tratasse de uma rapariga, seria bem pior! Doravante, fui muito cuidadosa em esconder que sabia escrever caracteres chineses. Por isso ganhei pouca prática de caligrafia, e hoje sou bastante aselha com o pincel. Assim se explica que a escrita da genial Murasaki se fosse fazendo em hiragana, o que, evidentemente, por melhor servir as características da língua japonesa, ajudou o processo de emancipação da sua escrita e o surto de nova literatura.

 

   Tenho diante de mim uma edição francesa do Dit du Genji, em três grossos volumes, profusamente ilustrados por reproduções da pintura tradicional japonesa, que ao longo dos séculos foi sempre acompanhando publicações do romance. Esta é a de Diane de Selliers, Paris, 2008. Os originais das pinturas reproduzidas vêm do século XII ao XVII, a tradução é a de René Sieffert, originalmente editada pelas Publications Orientalistes de France, Paris, 1988. Diz o tradutor: Nem sequer por um só instante tive o sentimento de alheamento, nem no tempo, nem no espaço, mas antes pelo contrário me perseguia a impressão constante de ter entrado numa aventura intelectual ou, melhor, mental, espantosamente moderna. E já muito antes Marguerite Yourcenar dissera "Il ne s´est jamais rien écrit de mieux", quiçá confirmando o assombro do imperador Juntoku (sec. XIII): O Genji Monogatari é uma coisa inexplicável, não pode ser obra de pessoa vulgar. Pessoalmente, já li o que, em português, gosto de intitular Os Contos de Genji, nesta presente versão francesa, na inglesa de Arthur Waley (Charles E. Tuttle Company, Inc., Tokyo, 1970) e até em manga (banda desenhada japonesa), numa adaptação e ilustração de Tsuboi Koh editada pela Shinjibutsu Oraisha, Tokyo, 1989! O romance original compõe-se de 54 livros com múltiplas histórias em que evoluem umas 59 personagens principais e surgem uns 800 waka. Alguns dos livros têm títulos evocativos de poesia: a bela da noite, a flor de que se colhe a ponta, a festa com flores de outono, a estadia em que flores ao vento se dispersam, o vento nos pinhais, essa fina nuvem, a bela da manhã, o ramo de ameixeira, a folhagem da glicínia, o nevoeiro da noite, o príncipe perfumado, o damasqueiro vermelho, a ribeira dos bambus, os sarmentos de vinha virgem, a barca ao sabor das ondas, o efémero, a ponte flutuante dos sonhos... Na verdade, mais do que o acerto e subtileza da descrição de ambientes e cenas, ou dos perfis certeiros das personagens, ou da construção de enredos e intrigas - à sua leitura me prende o encanto lírico e a delicadeza poética do texto... Não vou contar-te, Princesa de mim, nada do que li, apenas te resumo o livro XXV, Os Pirilampos, pela graça inesperada que lhe achei:

 

   Haverá alguns anos, falei-te por carta na princesa Tamakazura, ou Precioso Enfeite, creio mesmo que lhe dediquei um soneto. Tal personagem dos Contos do Genji, e protegida deste, é filha do Ministro do Interior, To no Chujo, e da Bela da Noite, Yugao. Esta, que também fora amante de Genji, já falecera quando decorre este conto. Tamakazura, sua filha, vive no palácio do Genji, na 6ª avenida de Heian, a cinco quarteirões do palácio imperial, onde ocupa, com a Dama da Estadia em que as Flores ao Vento se dispersam (Hana Chiru Sato) os pavilhões de Verão. O seu protetor, com o fito de atrair a sua casa visitas de senhores da melhor linhagem, vai frequentemente vê-la em seus aposentos, incitando-a a recebê-los. Entre os aspirantes, distingue-se Hotaru no miya (príncipe diretor dos assuntos militares), conhecido pelo seu nome de pena: Príncipe dos Pirilampos. Perante a reserva ou aborrecimento de Tamakazura, o Príncipe Brilhante (Hikaru Genji) decide ditar a uma aia daquela (a dama Saisho) uma mensagem encorajadora que, em nome da Precioso Enfeite, será endereçada a Hotaru no Miya... que, aliás, é meio irmão do Genji! Assim consegue que aquele apareça no palácio da 6ª avenida, e do lado de fora do pavilhão espreite para dentro para poder, enfim, ver Tamakazura e contemplar a sua beleza. Esta está à conversa com Genji, escondida de outros olhares, como mandam as regras, por uma cortina. Fingindo ter de dar um toque ao cortinado, o Príncipe Brilhante solta uns pirilampos que, com as suas luzes iluminam a beleza de Precioso Enfeite ao olhar escondido de Hotaru. Fulmina-o assombrosa paixão. Mas, perante o embaraço súbito de Tamakazura, os dois príncipes retiram-se. E só no dia seguinte o Príncipe dos Pirilampos enviará à linda Precioso Enfeite um poema de amor. Para apreciares um pouco melhor o conto, deixo-te tradução de alguns trechos. Mas este livro XXV diz muito mais, nas entrelinhas e pela subtileza. Não te direi o quê, espero que leias os Contos, pois só a leitura nos traz esse inefável gosto das descobertas secretas... Agora, agarro no texto de Murasaki Shikibu, quando o Genji exorta a sua protegida a falar diretamente com o Príncipe Hotaru, ainda que concedendo que ela se mantenha fora da vista deste, escondida por uma cortina de vários estores, num compartimento assim separado do exterior. Precioso Enfeite ali se queda, sem ligar muito ao que o aspirante, do lado de fora, lhe vai dizendo, receosa ainda de que ele ouse entrar na casa. É então que o Genji se aproxima e levanta um dos estores da cortina; nesse instante, como que uma luz se acende. Alguém terá aceso uma candeia? - pensa ela, aterrada. Mas eram os pirilampos que ele tinha, numerosos, encerrado no leve tecido, dobrando-o de forma a ocultar as luzinhas, e que agora soltara, fingindo arrumar a cortina. Confusa por assim se ver subitamente iluminada, ela ocultara o rosto com um leque, oferecendo à luz um perfil de delicada graça. Aproveitando a surpresa da iluminação, o Príncipe também lhe lançara um olhar; ora, todas as suas declarações tinham até então sido feitas confiadamente, pensando que ela fosse filha do Genji; nunca sequer imaginara que ela fosse tão maravilhosamente bela; resumindo: toda aquela maquinação tivera por objetivo lançar a perturbação num espírito prestes a inflamar-se. Mas se ela fosse mesmo filha dele, o Genji certamente a não teria posto em tal embaraço. Que volta dera agora! Tudo feito, saiu sem ruído e voltou para os seus aposentos.

 

   O Príncipe calculara a distância que o separava dela e, vendo-a tão próxima, olhava-a, com o coração aos pulos, pelos interstícios da frágil cortina; o espaço que se lhe abria à vista teria uns dois braços de profundidade, vagamente iluminado por esse inesperado luar que lhe revelava tão agradável espetáculo. Mas desde logo as mulheres diligenciaram restabelecer a escuridão que lho iria esconder. A indistinta claridade, todavia, parecia querer facultar-lhe tema brilhante de conversa. Não se cansava de evocar a beleza daquela forma reclinada, ainda que apenas entrevista. Na verdade, tal como o Genji previra, ficara cativo o seu coração!

 

                                  os fogos deste inseto

                                  demasiado discreto

                                  para à pressa dizer amor

                                  será que dela o pudor

                                  docemente os possa extinguir

                                  sem o seu calor sentir?

 

   - disse ele.

   Se demais refletisse na resposta a dar em tal caso, essa talvez tortuosa saísse, pelo que ela de rompante disse, como  se não lhe desse importância:

 

                                  o pirilampo

                                  que sem erguer a voz

                                  se consume

                                  bem mais do que o palrador

                                  em seu amor acende o lume

 

   E como, isto dito, ela se retirara, ele lamentou a crueldade que assim o mantinha a distância. Insistir parecia-lhe libertino, por isso resolveu não ficar até de madrugada e, encharcado pela chuva que gotejava do beiral e pelas próprias lágrimas do seu desapontamento, pela noite avançada abalou. Algum cuco, como é de regra, terá cantado. Mas sigamos adiante, que não quero aborrecer-vos!

 

   Na edição que tenho nas mãos, este livro XXV publica-se no segundo volume, e vem ilustrado por belíssimas reproduções de pinturas a ouro e tintas de cores sobre papel, feitas na era Edo ou Tokugawa, por volta de 1611-1612, por Tosa Mitsuyoshi, da escola com o mesmo apelido de família (Tosa). E que bem essas imagens nos contam a história, nos revelam os lugares e as suas disposições, nos falam das personagens e dos seus sentimentos! Mas termino esta carta, Princesa de mim, traduzindo o tal poema que o Príncipe dos Pirilampos enviou no dia seguinte e a resposta de Tamakazura. Este waka vinha numa carta que acompanhava um lírio, flor de raiz inusitadamente longa:

 

                                     mesmo neste dia de hoje

                                     porque ninguém trata

                                     de o arrancar

                                     o lírio langoroso mergulha

                                     em águas as suas raízes

 

   Resposta de Precioso Enfeite:

 

                                      à luz do dia

                                      bem curtas à vista

                                      me parecem as raízes

                                      e obscuro o desígnio

                                      dos langores desse lírio

 

                                      Deixe-se de criancices!

 

   Este texto é hoje milenar, foi escrito, na viragem do século X para o XI, por uma jovem mulher. O trecho do capítulo que aqui te deixo diz-me ainda muito sobre uma sociedade cortesã obcecada pela beleza física (feminina e masculina), pela paixão exaltada dos sentidos e, simultaneamente, pelo pudor e a busca poética da sua expressão, pela delicadeza quase silenciosa das suas mensagens, como se eros fosse uma aragem soprando pelos interstícios de portas de correr, biombos, cortinas de pregas e estores laminados... Mas assim também a sua lírica me lembra a das nossas cantigas de amigo, que tanto revelam e tanto escondem, tanto gritam e tanto silenciam, pois tantas vezes, nas voltas dos amores, a nossa natureza é ela e a sua disciplina. 

 

Camilo Maria 

  

Camilo Martins de Oliveira