Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Quando lembramos as datas fundamentais do constitucionalismo português (1820, 1834, 1910 e 1974), verificamos que correspondem à necessidade de concretizar a democracia como permanente atenção à liberdade, à responsabilidade e à participação, enquanto cidadania ativa, como respeito mútuo e defesa dos valores éticos. Em 1820 e na Constituição de 1822 o absolutismo cedeu lugar à soberania dos cidadãos e à separação, interdependência e limitação dos poderes. Depois da guerra civil, a causa de D. Pedro e de D. Maria da Glória viu reconhecida a vitória da liberdade em Évora Monte e a Carta Constitucional de 1826 pôde renovar o caminho para o Estado liberal, graças à Constituição de 1838 e ao Ato Adicional à Carta de 1852, que permitiram à Regeneração modernizar o País, aproximá-lo da Europa e pôr a tónica no primado da lei e na liberdade de opinião, sendo a proibição ocorrida nas Conferências do Casino de 1871 uma singular exceção, que levou à solidariedade entre os jovens amigos de Antero de Quental e a primeira geração romântica, representada por Alexandre Herculano. A República de 1910 e o republicanismo, de que foi símbolo a “Renascença Portuguesa”, representou a procura de um novo alento para os valores democráticos. Daí a necessidade de compreendermos o que Jaime Cortesão afirma sobre a importância dos fatores democráticos na formação de Portugal (envolvendo a independência da nação, a legitimidade das Cortes de Coimbra de 1385, a aclamação de D. João I, o municipalismo, os descobrimentos, a Restauração e a proclamação da liberdade) – consumados no constitucionalismo.
Após a ditadura (1926-1974), ao chegarmos a 25 de abril de 1974, tratou-se de fazer renascer a democracia em toda a sua vitalidade num contexto europeu e no concerto das nações, pela autodeterminação e independência dos países de língua oficial portuguesa. Em 1820, com todas as vicissitudes conhecidas, renovou-se a tradição portuguesa, a um tempo fiel ao espírito de independência de D. Afonso Henriques e de D. Dinis, e à audácia de 1383-1385 e da Ínclita Geração e dos Altos Infantes, mas também às tradições do povo e à expansão da língua portuguesa em todos os continentes. A democracia e o constitucionalismo não são obra do acaso, mas de trabalho persistente e de grandes responsabilidades. A opção europeia, a “Europa Connosco” de Mário Soares (1976), com a adesão de pleno direito a partir de 1986 às Comunidades Europeias, hoje União Europeia, e a entrada na moeda europeia, o Euro, depois de 2001 fazem pleno sentido no âmbito da afirmação da identidade democrática de Portugal no âmbito da cooperação entre Estados e cidadãos soberanos e livres, para quem a cultura é um fator de emancipação e desenvolvimento. Fiel às raízes históricas de uma identidade de nove séculos, Portugal, a cultura e a língua afirmam-se como realidades abertas e acolhedoras, em nome da diversidade matricial de um cadinho de várias influências. Língua de várias culturas, cultura de várias línguas – eis a chave desta convergência de fatores. Nas artes e na literatura, na educação, na cultura e na ciência, Portugal afirma-se através de nomes como Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro, Miguel Torga, Vitorino Nemésio, Vergílio Ferreira, José Régio, Alves Redol, José Cardoso Pires, António Ramos Rosa, Herberto Helder, Manuel Alegre, Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade, Ruy Belo, Eduardo Lourenço, David Mourão-Ferreira, Augusto Abelaira, José Saramago, António Lobo Antunes, Manuel António Pina, Lídia Jorge, Nuno Júdice ou de artistas como Maria Helena Vieira da Silva, Paula Rego, Júlio Pomar, Ângelo de Sousa, Graça Morais, Siza Vieira, mas também Agustina Bessa-Luís, Maria Judite de Carvalho, Fernanda Botelho, Isabel da Nóbrega, Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. A atribuição a José Saramago do Prémio Nobel da Literatura em 1998 é corolário da afirmação da cultura da língua portuguesa como marca do Portugal democrático.
As marcas da contemporaneidade portuguesa são a abertura e a liberdade. O primado da lei, a legitimidade do voto, a legitimidade do exercício e a justiça como valor ético – distributiva e intergeracional – constituem os elementos cruciais de uma cultura de respeito mútuo, de solidariedade e de proximidade, centrada na dignidade da pessoa humana.
Sempre houve intelectuais, pensadores, ideólogos e cientistas que deram caução a totalitarismos e ditaduras de vária índole.
Hitler, Mussolini, Lenine, Estaline, Mao, tiveram legiões a elogiá-los e a justificá-los.
Há os que sempre denunciaram totalitarismos e ditaduras, não abdicando das suas ideias em favor da liberdade, extensiva a todas as manifestações artísticas e científicas.
Outros colocaram a experiência e a observação empírica à frente da teoria, para provarem se tinham ou não razão.
E há os que fizeram um percurso não linear, de reservas, instruído de simpatias totalitárias rumo a uma não aprovação.
Ernst Junger, famoso escritor, foi um deles.
Viveu na atmosfera asfixiante e belicista das duas guerras mundiais, foi ferido várias vezes na primeira, condecorado, um herói arquetípico germânico, reunindo todas as condições para ser uma referência do nacionalismo alemão, autor de escritos nacionalistas e figura da extrema direita alemã.
Simpatizou com a ascensão do nacional-socialismo, foi antissemita, mas quando Hitler tomou o poder resguardou-se e não assumiu qualquer compromisso. Recusou entrar na academia alemã de poesia, submetida ao controlo de Goebbels, apaixonou-se por uma judia, aplacando gradualmente o seu antissemitismo. Deixou Berlim depois de desacreditada e espancada Else Lasker-Schuler, alemã e judia, galardoada com um prémio literário (poesia), em 1932. Convivia com o pacifista alemão, de origem judaica, Ernst Toller, que emigrou para os Estados Unidos, após a tomada de poder pelos nazis. Foi vigiado pela Gestapo, teve benevolências, cedências, afastamentos, suspensões e proibições. Quando da detenção do filho Ernstel, por se manifestar contra Hitler, ativou conhecimentos e o seu prestígio, libertando-o e perdendo-o na guerra. Quando chamado, fez parte do exército alemão, que ocupou Paris, em 1940.
Antes de alistado, de novo, escreveu Sobre as Falésias de Mármore, romance alegórico e profético, que ganhou fama além-fronteiras, denunciando regimes ditatoriais, incluindo o nazismo, e testemunho, para alguns, de algo que ao mesmo tempo superava e limitava as intenções do autor. Avisado Hitler do perigo que representava, ordenou que o deixassem em paz, pela sua audácia e heroísmo.
No livro é protagonista o Senhor da Floresta:
“Tal como, em plena montanha, um espesso nevoeiro precede a tempestade, também uma atmosfera de insegurança precedeu o Senhor da Floresta. (…)
Tal como a erupção vulcânica que estoura, desaparece e surge de novo, assim os dias de tempestade e de calma se misturavam e sucediam.
Era uma manifestação da sagacidade do Senhor da Floresta.
Lançar o medo pouco a pouco, em pequenas porções que iam aumentando até que toda a resistência tivesse sucumbido. Também ele tinha um papel a representar (…) de defensor da ordem que se propunha acabar com a anarquia reinante. E enquanto os seus agentes inferiores engrossavam a massa de desordeiros, os iniciados penetravam na magistratura e nas igrejas e o povo via neles espíritos enérgicos que o chamavam à razão.
O Senhor da Floresta era como um médico louco que provoca o mal para depois tratar a doença com os novos remédios que criou”.
Em Paris o círculo de hostilidades apertou-se, por se relacionar com os oficiais alemães insatisfeitos com Hitler, que compreenderam a inevitabilidade da derrota, tentando derrubar o regime nazi (operação Valquíria), tentativa frustrada saldada com a execução de amigos, sendo EJ afastado do serviço por conduta indigna, sem provas da sua cumplicidade ou participação ativa.
Após a derrota nazi, frustrou-se a intenção de o querer julgar por colaboracionismo com o nazismo (fala-se da intervenção de Brecht, com quem se dava). Foi-lhe proposta uma declaração de arrependimento (processo de desnazificação), que recusou, alegando não ter sido nazi, nada tendo de que se arrepender ou renegar, tendo tido obras proibidas.
Viveu flutuando com a corda ao pescoço, no fio da navalha, oscilando na corda-bamba, numa tensão permanente, presa em dois pontos onde os equilíbrios representavam uma vida perigosa e instável, insegura, por um triz, sem se ter exilado ou emigrado, antes procurando uma paz interior, ameaçada e corrompida pelo Senhor da Floresta.
Perguntaram-lhe, um dia, dezenas de anos após o fim da guerra, se o Senhor da Floresta era o retrato de Hitler. Respondeu:
“A propósito do Senhor da Floresta, houve um amigo que me disse: “Este sapato serve em muitos pés”. Se é verdade que o modelo podia assentar bem a Hitler, a História mostrou que também assentava a uma personagem de ainda maior envergadura: Estaline. E pode assentar a muitos outros homens. O que todos estes Senhores da Floresta têm em comum é o ódio à cultura digna desse nome. É ela que perturba, que desvia a linha de ação que eles traçaram. O homem para quem a cultura existe é um homem que perturba, pela sua simples existência, porque lhe repugnam a violência, o fanatismo, a barbárie. Há de haver sempre um limiar que ele se recusa a ultrapassar, um ato, um crime que ele se recusa a cometer…quanto mais não seja por razões estéticas”.
Ganhou o prémio Goethe, em 1982, finou em 1998, com 102 anos.