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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Noites insones me vão oferecendo tempos de leitura que, deixando-me cair na tentação de viajar no tempo e no espaço, vou cedendo à novelística e poesia japonesa. Há um qualquer mistério de mim, mesmo para mim, nessa contemplação, ou espiritual comprazimento, de visões nipónicas... Por estranhas e distantes que sejam as suas origens, misturam-se-me cá dentro, sinto-me assim como o lado de lá daquele pântano japonês de que fala o Shusako Endo e tudo digere e recria... Nesta noite de longa vigília que tarde acabou, muito longamente penseissenti este haiku de Yamaguchi  Seishi, poeta nascido no início do século passado (1901), primeiro de uma série inspirada por visita aos túmulos imperiais de Mukden:

 

                     Ryo samuku
                     Jitsugetsu sora ni
                     Terashiau

 

   Versos de 5, 7, 5 sílabas que, a meu livre jeito, assim traduzo:

 

                     Gélidas tumbas:
                     no alto céu, sol e lua 
                     se contemplam

 

   Inexorável, a morte de humanos deixa indiferentes os astros. De nada valerão, a reis e imperadores, os monumentais túmulos que pretendiam abriga-los. Mas, ao recordar nestes dias tantos familiares e amigos que, há bem pouco, repentinamente, deixei de poder ver fora da saudade, e ainda tanta, tanta, gente que, só por andar na rua e falar a outros, é surpreendida pela morte, reencontro a sageza de São João Evangelista neste trecho do seu evangelho que segue o sinal deixado pela ressurreição de Lázaro:

 

   Então, os príncipes dos sacerdotes e os fariseus reuniram conselho e disseram: «Que havemos de fazer, uma vez que este homem realiza tantos milagres? Se o deixarmos continuar assim, todos acreditarão nele, e virão os romanos destruir o nosso lugar santo e toda a nação.» Então, Caifás, que era sumo sacerdote naquele ano, disse-lhes: «Vós não sabeis nada: não compreendeis que é melhor morrer um só homem pelo povo do que perecer a nação inteira?» Não disse isto por si próprio, mas, porque era sumo sacerdote nesse ano, profetizou que Jesus havia de morrer pela nação, e não só pela nação, mas também para congregar na unidade todos os filhos de Deus que andavam dispersos. A partir desse dia, decidiram matar Jesus.

 

   Já por várias vezes te disse, e escrevi em cartas anteriores, que nenhum de nós - dos que por cá vamos andando - tem qualquer experiência da morte. Nem pode ter. A morte de cada um é sua própria, única, inexorável e irrepetível. Apenas podemos ter - e tantas vezes temos - a experiência da dor que a morte de outros nos causa. Até o evangelho nos diz que, ainda que consciente da sua própria morte, e ciente do modo e circunstância em que ela lhe viria, o mesmo Jesus, pouco antes, choraria sentidamente a morte de Lázaro, seu amigo. E todavia  sabia que o iria ressuscitar, em sinal inequívoco do poder de Deus Pai. Mas em sinal, também, de que a sua misericórdia não é o entreolhar do sol e da lua, nem se comove pela monumentalidade dos depósitos fúnebres. Antes será movida pela dor verdadeira de que perde um amigo.

 

   A narrativa da ressurreição de Lázaro e sua circunstância, feita no Evangelho segundo João, mexe nesse ponto tão misterioso e profundo da nossa humanidade. O trecho do capítulo 11, que acima te transcrevo, dá-lhe outra continuidade: a justificação que dá Caifás para que Jesus seja sacrificado (impõe-se que um homem só morra pelo povo) é mais do que simples argumento de uma razão de Estado. De certo modo, afinal, leva facetas gnósticas daquele evangelista a mergulhar as suas raízes na tradição profética do judaísmo, destituindo ainda esta de carácter nacionalista, para lhe conferir uma vocação universal. A morte e ressurreição de Jesus Cristo não salvará apenas a nação de Israel, mas redimirá a humanidade inteira. Deus Pai não é indiferente ao destino de todos nós.

  

   Talvez para nos levar a meditar sobre isto, a liturgia da Igreja Católica nos proponha a proclamação desse passo do evangelho no 5.º sábado da quaresma, na véspera de Domingo de Ramos, festa da aclamação triunfal de Jesus pelo povo de Jerusalém, a abrir a Semana Maior, ou Santa, esta que terminará no silêncio sepulcral de Sábado Santo, dia de luto absoluto e sem celebrações, depois da memória da Paixão e Morte do Senhor, celebrada em Quinta e Sexta-Feira Santa, e já anunciada e relatada pelo texto de um dos evangelhos sinópticos em Domingo de Ramos. Este ano coube a vez a São Mateus, o que me serviu de convite para uma comovida e atenta escuta do correspondente auto musical de Johann Sebastian Bach. [E sempre me lembro da primeira vez que ouvi a peça, que coincidiu com a minha primeira ida ao Teatro de S. Carlos, em Lisboa, teria eu uns nove ou de anos... Desde então, repito a sua audição anual, seguida, no silêncio de Sábado próximo, da Paixão Segundo São João, do mesmo compositor. E fica-me uma impressão de visita onírica a uma história e um mundo reais, com alguns apontamentos psicológicos que me fazem refletir no paradoxo da nossa condição humana, como, por exemplo, nas diferentes formas de cobardia, de autoavaliação, de arrependimento, de justificação ou de desespero, como nos dramas pessoais de Pedro-que-negou-três-vezes, Pilatos-que-lavou-as-mãos, Judas-que-se-enforcou.]

 

   O que se chama de Mistério Pascal seduz-me desde a infância, quiçá não tanto pela irrupção de um poder divino, como muito mais pela humanidade do encontro de Deus. E não só frequentemente me ocorrem imagens do acolhimento do Pai ao filho pródigo - até já te escrevi um dia que, ao contemplá-las, tanto vejo o filho arrependido como o Pai que também pede perdão- mas calam-se-me bem no fundo do coração essas palavras de São Paulo aos filipenses que lemos na missa de Ramos: Cristo Jesusque era de condição divina, não se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo. Assumindo a condição de servo, tornou-se semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-se ainda mais, obedecendo até à morte, e morte na cruz.

 

   [A versão portuguesa deste passo do evangelho que consta dos lecionários e missais em uso, tal como a das traduções diretas do grego, quer a de Frederico Lourenço, quer a do cónego José Falcão, dizem todas morte de cruz. Arrepio-me sempre que assim leio ou ouço, ocorre-me a expressão assinar de cruz. Bem sei que se trata da versão literal do genitivo grego que, aliás, na vulgata latina reza assim: Humiliavit semetipsum, factos obediens usque ad mortem, mortem autem crucis. E nessas línguas clássicas, tal genitivo não me surpreende nem aborrece. Mas em português, não só me soa muito mal, como nunca entendo porque não hão de tais textos recordar que sempre dizemos: Jesus Cristo morreu na cruz. Qualquer tradução deve encontrar a forma idiomática mais autêntica, isto é, procurar comunicar, mais do que reproduzir literalmente um original.]

 

   Os textos evangélicos buscam, afinal, o verdadeiro pensarsentir de cada um de nós. As suas narrativas trazem-nos a perceção de acontecimentos históricos conservada e cultivada nas memórias e pelas sensibilidades diversas de comunidades coevas ou próximas do tempo de Jesus. Por isso mesmo nos levam sempre a comunhões na esperança e no amor e, simultaneamente à renovação perene, interrogativa e incansavelmente descobridora da fé alimentada por sucessivas gerações de crentes. A cristandade é, tal como o Filho do Pai, que lhe deu o seu nome de Cristo, uma humanidade histórica. O cristianismo não é alguma abstração: é a procura incessante da prática do amor fraterno.

 

   Dizemos que é tácito algo que não se manifesta e permanece calado. Tácito era o nome de um historiador romano do tempo do imperador Tibério e dos primeiros cristãos, que muito pouco ou quase nada escreveu dos mesmos cristãos. Dele te falarei, Princesa de mim, na próxima carta. 

 

Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

tumulo de cristo vazio.jpg

 

                    Minha Princesa de mim:

 

   Ao ler hoje, como é meu hábito diário, pela manhã nascente, o trecho do Evangelho proposto para o dia, comovi-me profundamente, como quase sempre me acontece ao silenciosamente entrar no texto de São João, pois que assim se nomeia o suposto autor do quarto evangelho, bem distinto dos três sinópticos, escrito provavelmente já na primeira década do século segundo, por alguém que não se cruzou pessoalmente com Jesus Nazareno. Este magnífico testemunho da vida adulta e do ensino, paixão, morte e ressurreição de Cristo aponta assim, nos dois últimos versículos (24 e 25) do seu capítulo final, o seu autor : Este é o discípulo que testemunhou estas coisas e as escreveu. E sabemos que o testemunho dele é verdadeiro. São muitas as outras coisas que Jesus fez, que, se fossem escritas uma a uma, não penso que o mundo tivesse espaço para tantos livros escritos. Mas, mais do que concluir daí a sua atribuição a redator contemporâneo de Jesus, designadamente João, filho de Zebedeu e pescador quiçá analfabeto e certamente ignorante da língua grega escrita, poderá talvez deduzir-se que o texto é, de facto, o registo posterior de memórias de uma comunidade cristã formada à volta de um João. Registo tal que, aliás, se terá elaborado por uma construção teológica dessa tradição de fé. Mas, Princesa de mim, remeto-te para a consulta da nota introdutória ao Evangelho de João, incluída pelo Prof. Frederico Lourenço na edição da sua tradução portuguesa (que aqui utilizamos) pela Quetzal (Lisboa, 2016). Nesta carta, só quero reproduzir o trecho que tanto me comoveu:

   Depois de ter lavado os pés deles, pegou na sua roupa e voltou a reclinar-se à mesa. Disse-lhes: «Compreendeis o que vos fiz? Vós chamais-me "o Mestre" e "o Senhor" e dizeis bem. Sou de facto. Se eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós vos deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos um exemplo para que, tal como eu fiz, façais vós também. Amém, Amém vos digo, o escravo não é maior do que o amo dele, nem um apóstolo é maior do que Aquele que o enviou. Se sabeis estas coisas, bem aventurados sois se as fizerdes.
   Este trecho do capítulo 13 é como um prefácio à maravilhosa súmula da verdade cristã, que Jesus amorosamente nos dá, como João regista nos versículos 9 a 17 do capítulo 14, passo marcante do seu discurso de despedida, antes de partir, pela via crucis, a caminho da Paixão que o aguarda e lemos descrita pelo mesmo João em Sexta Feira Santa :

   Tal como me amou o Pai, assim eu vos amei. Permanecei no meu amor. Se observardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, tal como eu observo os mandamentos de meu Pai e permaneço no amor d´Ele. Disse-vos estas coisas para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria se complete. Este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros tal como eu vos amei. Ninguém possui maior amor do que este, que alguém dê a vida pelos seus amigos. Vós sois meus amigos se fizerdes as coisas que vos mando. Nunca vos chamo escravos, porque o escravo não sabe o que faz o seu amo. Chamo-vos amigos, porque todas as coisas que ouvi do meu Pai vos dei a conhecer. Não fostes vós que me escolheste mas eu que vos escolhi e vos estabeleci, para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneça, para que aquilo que pedirdes ao Pai em meu nome ele vos dê. As coisas que vos mando são que vos ameis uns aos outros.

   Mas foi hoje mais funda a minha emoção, pela circunstância difícil que estamos vivendo, e sobretudo pelo muito que ela tem movido o meu modo de pensarsentir a realidade humana, não só dos que muito sofrem, mas também de tantos e tantos que, generosamente, se vão oferecendo e esforçando para a todos trazerem um apoio, um alívio, um amigo, um aconchego, a nossa humanidade comum. Nem todos, talvez nem muitos, sejam cristãos confessos ou sequer crentes simplesmente. São apenas seres humanos livres que, pela singela consciência do ser antiquíssimo que todos somos na comunhão da nossa condição, vão distribuindo essa graça de frutos que em cada um permanecem, como lembrança, esperança e promessa de comunidade em amor. 

   A leitura que qualquer cristão faça dos capítulos 13 a 17 do evangelho de João nunca poderá ser sectária, nem sequer clubista. A mensagem ali contida só pode ser entendida à luz do versículo que afirma: Na casa de meu Pai há muitas moradas (Jo.14, 2). No seu Christian Beginnings: from Nazareth to Nicea, 30 a 325 DC (Penguin, 2013) Geza Vermes, professor de Estudos Judaicos na Universidade de Oxford, judeu de origem húngara, que estudou em Budapeste e Lovaina e passou por um período católico (creio que até foi padre jesuíta), falando do cristianismo joanino, escreve: Jesus o Filho, ou o Filho de Deus: é o título de Filho e não o de Messias que mais acertadamente descreve o Jesus joanino. E mais adiante diz: Na perspetiva religiosa do Quarto Evangelho, o Filho é enviado por Deus Pai, não como juiz final, mas como dispensador de vida. E o próprio Geza Vermes faz questão em recordar de que vida se trata, citando outro passo de João (17, 22-24): E eu dei-lhes a glória que Tu me deste para que sejam um, tal como nós somos um. Eu estou neles e Tu em mim, para que eles atinjam a completude em um, para que o mundo saiba que Tu me enviaste e os amaste tal como me amaste a mim. Pai, aqueles que me deste, quero que estejam também comigo onde eu estiver, para que contemplem a minha glória, que Tu me deste, porque me amaste antes da fundação do mundo... Daí que o professor oxoniano ouse dizer que, além da redenção da humanidade do pecado, o propósito da Incarnação do Filho é a deificação dos humanos.

   Em Sexta e Sábado Santos, fui sobretudo escutando, a meditar nos textos, as "Paixões" segundo Bach (S. Mateus, S. João e... S. Marcos, sim, quase desconhecida). A última estrofe cantada pelo coro de Marcos reza assim:

 

               Bei deinem Grab und Leichenstein,
               Will Ich mich stetes, mein Jesu, weiden,
               Und über dein verdienstlich Leiden
               Von Herzen froh un dankbar sein.

 

   Traduzo assim, acrescentando também os últimos quatro versos: "Junto da tua tumba e sua pedra
                                                                                                              para sempre quero ficar, ó meu Jesus!
                                                                                                              E graças à tua admirável Paixão
                                                                                                              estar de coração alegre e reconhecido
                                                                                                              e teu será este epitáfio:
                                                                                                              Da tua morte nasce a minha vida,
                                                                                                              aqui jaz a angústia dos meus pecados,
                                                                                                              que com Jesus aqui mesmo sepultei".

 

   Sobre a noite que vai caindo em dia de Sábado Santo se ergue a luz alegre das vestes de um anjo do Senhor que, rolando a pedra que fechava o túmulo, se senta em cima dela, diz às mulheres: Não temais. Sei que procurais Jesus, o crucificado. Não está aqui, pois ressuscitou, tal como afirmou.

   E em comunhão com todos, sobretudo aqueles que com pandemias se defrontam, pensossinto comigo que um dia será completa a nossa alegria. Seja já nossa essa semente da Páscoa de hoje.

 

            Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira