Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Um dos fantasmas mais perturbadores da nossa história cultural é António José da Silva, o Judeu (1705-1739), nascido no engenho do avô materno, Baltazar Rodrigues Coutinho, no bairro da Covanca, em São João de Meriti, no Rio de Janeiro. Seu pai era João Mendes da Silva, advogado e poeta. Ainda muito jovem foi viver para a freguesia da Candelária. Cristão-novo, sendo vítima da perseguição que dizimou a comunidade do Rio em 1712. Contudo, conseguiu manter a fé judaica secretamente. Sua mãe, Lourença Coutinho, foi deportada para Portugal, acusada de judaísmo pela Inquisição. Seu Pai veio para Portugal para acompanhar o processo da mulher, exercendo a atividade de advogado. António José estuda, provavelmente, no Colégio de Santo Antão e, em 1722, inscreve-se para estudar Leis e Cânones na Universidade de Coimbra. Em 1726, interrompe os estudos, regressando a Lisboa onde é acusado num primeiro processo inquisitorial. Também sua mãe, Lourença Coutinho, e os seus dois irmãos, André e Baltasar, são acusados de práticas judaizantes e condenados à abjuração. Em 13 de outubro, António é preso nos Estaus. Apesar de amigo do influente diplomata Alexandre de Gusmão, Conselheiro de D. João V, foi barbaramente torturado, tendo ficado inválido durante algumas semanas, sendo obrigado a abjurar no Auto-de-fé de outubro desse ano. Foi posto em liberdade, o que não aconteceu com sua mãe, libertada em 1729, depois de ter sido torturada e de ser considerada penitente num auto-de-fé. António José tem os seus bens confiscados e é condenado a pena de cárcere, hábito penitencial perpétuo e exigência de ser instruído nos mistérios da fé. Então voltou à dramaturgia depois de um curto período como causídico no escritório de seu pai com o irmão Baltasar. As suas sátiras têm grande sucesso, pela eficácia da crítica ao ridículo da sociedade, com referências frequentes à mitologia greco-latina. A única música operática que sobreviveu foi composta por António Teixeira. O sucesso artístico agravou, porém, a perseguição de que foi alvo. Nem a proteção do Conde da Ericeira impediu a perseguição.
Luís de Freitas Branco considerou António José da Silva o verdadeiro fundador da ópera nacional. Sem ele teriam decorrido trezentos anos da nossa história do Teatro, depois de Gil Vicente até Garrett, sem uma dramaturgia digna de registo. Pode dizer-se que António José da Silva simboliza no teatro português o período que corresponde ao reinado de D. João V, em pleno ideal barroco, envolvendo a luxúria e a ostentação de uma faustosa corte, beneficiária dos lucros do ouro do Brasil. Havia um chocante contraste entre a opulência e as misérias de uma sociedade frágil, pobre e atrasada e a Inquisição atuava impiedosamente, perseguindo judeus e cristãos-novos. Em 1733 representa no Teatro do Bairro Alto a sua primeira ópera, “A Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança”. Morava então no Socorro, próximo do Teatro do Pátio das Arcas, que funcionava onde hoje é a rua Augusta, fundado por Fernão Dias de La Torre cerca de 1590. O teatro ardera em 1697, mas fora reconstruído como importante pátio de comédias, cujas receitas revertiam a favor do Hospital de Todos os Santos. Sente-se a influência da comédia espanhola, nomeadamente de Lope de Vega e Calderon de la Barca, designadamente pelo espírito inconformista segundo os ideais barrocos e os cânones usados em Itália e nos palcos europeus. O artista vive o espírito do tempo segundo uma arte menos retórica e mais ocupada com o deleite dos sentidos. António José da Silva escreve sobretudo em prosa, sendo que “a prosa deixara de se usar no teatro desde Sá de Miranda, Camões e António Ferreira”; inserindo a música na intriga dramática, de acordo com o modelo de transição entre a comédia espanhola e o melodrama italiano. No Teatro do Bairro Alto, numa sala do Conde de Soure, na rua da Rosa, adaptada às lides teatrais, chamada Casa dos Bonecos, António José faz representar entre 1733 e 1739 as oito óperas que lhe são atribuídas: D. Quixote (1733), Vida de Esopo (1734), Os Encantos de Medeia (1735), Anfitrião ou Júpiter e Alcmena e O Labirinto de Creta (1736), Guerras do Alecrim e Manjerona e As Variedades de Proteu (1737), Precipício de Faetonte (1738), esta última quando o autor se encontrava encerrado nos cárceres da Inquisição. Em 1735, António José da Silva casa-se com Leonor Maria de Carvalho, antiga penitenciada em Valhadolid, de quem tem uma filha Lourença. As suas peças e representações obtêm grande sucesso de público e reconhecimento nos meios cultos. Após a morte do Conde da Ericeira foi denunciado à Inquisição. Em 1737 é preso com a mulher, a mãe, o irmão e a cunhada durante as cerimónias judaicas de Yom Kipur. Após um longo processo é condenado em 1739 de convicto, negativo e relapso, sendo relaxado em carne, garrotado e queimado. Em 1744, Francisco Luís Ameno publica “Teatro Cómico Português” (2 volumes) onde se incluem as oito obras de António José da Silva, sem menção de autoria. Trata-se do exemplo de quem representa a vitalidade da cultura portuguesa, impondo-se contra a cegueira da intolerância. Falando das extraordinárias guerras, com música de António Teixeira (1707-1774), estamos perante uma ópera joco-séria, na qual dois galantes, pinga-amores e caça-dotes, D. Fuas e D. Gilvaz procuram cair nas boas graças de duas irmãs ricas, D. Clóris e D. Nise, utilizando o criado de Gil, Semicúpio, cheio de graça, entusiasmo e genica. As meninas andam disfarçadas, mas revelam a sua identidade por levarem uma um ramo de alecrim, outra um ramo de manjerona. Semicúpio arma estratagemas para introduzir o patrão na casa da pretendida, mas acaba por se enamorar de Sevadilha, criada de Clóris. Se o avarento D. Lançarote, tio das meninas, deseja casá-las com seu sobrinho D. Tibúrcio não consegue graças às artimanhas de Semicúpio – e no final, desfeitos os equívocos da comédia de enganos, casam-se os namorados e Semicúpio com Sevadilha.
Aqui temos referido espaçadamente, como é óbvio, as ligações de José Régio à arte do Teatro, tendo bem presente a relatividade cénica da sua produção teatracional: um conjunto de textos diversos e dispersos que, entretanto, se valorizam pela própria criatividade e qualidade do autor. Mas mesmo assim há que ter presente a relatividade do teatro do conjunto admirável da sua obra em geral e mesmo na comparação e visão completa e complexa dessa criatividade global. Régio é de facto um grande autor, mas o teatro não significa a dimensão mais determinante da sua obra geral.
Não vamos aqui e agora repetir o que certa vezes escrevemos sobre a obra teatral de Régio e, no entanto, será sempre oportuno retomar o comentário que a qualidade, vastidão e heterogeneidade da sua obra amplamente justifica.
Em qualquer caso, importa invocar a doutrina constante neste conjunto de peças de teatro, ainda por cima contabilizadas com dois aspetos sempre citáveis na obra de Régio: de um lado a vastidão e qualidade do suporte literário subjacente, aliás adequado à atividade profissional; e por outro lado, o sentido do espetáculo que em si mesmas cada uma das peças comporta.
E tudo isto insista-se, numa qualidade literária, poética e de espetáculo que, em si mesma, sobrevaloriza cada uma das peças. Sendo certo que, se por um lado o conjunto da obra de José Régio tudo valoriza de forma coerente, por outro lado a conciliação com os aspetos complementares da restante e vastíssima obra marcam o sentido intuitivo da espetacularidade que o teatro exige!...
E de tal forma assim é, que o próprio Régio assim o consagra, numa vasta análise denominada rigorosamente “Vista sobre o Teatro”, incluída nos três ensaios sobre a Arte que editou em 1967.
Diz então José Régio: “fantasiemos o momento: a admitirmos a trindade o autor dramático, ator e encenador – três pessoas distintas e uma só verdadeira – diríamos que é essa única verdade que caberia ao cuidado do espetáculo teatral. Não passando isso de fantasia que viria a, lucidamente, sugerir o sentido dado aos extremos, regressemos à realidade: esse pensamento teatral, de que se tenta uma realização no palco, essa ideia central ou teia de ideias, em redor da qual é preciso criar uma espécie de personalidade coletiva realizadora; essa intenção profunda em foco, esse unitário que sustenta o espetáculo – não é ilusoriamente que desde sempre os atribui o bom senso comum, o autor dramático, criador do texto”.
Molière, o genial dramaturgo, nasceu há quatro séculos, e a sua fama chega aos nossos dias, quer pelas obras que deixou, quer pelas mudanças que introduziu na arte do teatro, desde os temas, encenações, regras de representação e relação com o público.
GRANDE DRAMATURGO Quem ler a nossa imprensa de há cem anos, verificará que as invocações do terceiro centenário do nascimento de Molière são bastantes, e que o mundo intelectual e do teatro não deixou passar em claro esse acontecimento. Molière (1622-1673) é a grande referência do teatro francês (e do teatro europeu) do século XVII, tendo tido um apoio muito especial de Luís XIV, que foi admirador das suas sátiras, comédias e tragédias, o que permitiu ao dramaturgo celebrizar-se e tornar-se organizador dos divertimentos da Corte. Molière era o nome artístico de Jean-Baptiste Poquelin, nascido em Paris a 15 de janeiro de 1622, filho de um artífice de tapeçarias da Corte. O pseudónimo escolhido por Molière procura uma identificação vagamente nobilitada. Estudou no Colégio de Clermont, de 1633 a 1639, mas depressa manifestou uma especial inclinação pela arte de Talma, em lugar de seguir a tradição profissional familiar. E assim começou cedo a frequentar os palcos de representação montados nas pontes sobre o rio Sena. O momento foi favorável às suas ambições, já que Luís XIV, bem como o Cardeal Richelieu, empenharam-se então em promover diversas atividades culturais, como modo de afirmação da influência francesa na Europa. E o teatro conheceu um momento de apogeu, tornando-se Paris um centro muito concorrido e prestigiado de atividades dramatúrgicas. No entanto, para contrariar a má fama dos atores e artistas, Luís XIV teve necessidade de assinar uma pragmática, promovendo a qualificação das profissões ligadas ao teatro. Além disso, o rei passou a financiar companhias e Richelieu inaugurou novos teatros.
OS PRIMEIROS PASSOS PARA O SUCESSO Associado aos irmãos Béjart, os primeiros tempos do jovem ator não foram de sucesso, sendo até condenado à prisão por dívidas. Com a ajuda do pai consegue ser libertado, e integra-se na companhia de "Charles Du Fresne", encenando e representando inúmeras peças na província, durante 14 anos. Essa experiência permitiu-lhe estudar o género humano, recebendo do escritor Boileau o apelido de "O Contemplador". Em 1658, obtém autorização para atuar diante do rei, levando à cena uma peça de Racine, que apenas obteve sucesso graças ao génio teatral de Molière, numa hábil ligação entre discurso e mímica. Se a peça não parecia vocacionada para o sucesso, a verdade é que o público tomou consciência de que Molière tinha qualidades excecionais e aplaudiu-o. E assim o duque Filipe de Orléans, irmão do rei, tomou o grupo sob sua proteção e, perante o grande êxito, sete anos mais tarde, o monarca deu à companhia o nome de “Troupe du Roi”. Em 1661, Molière passa a representar no Palais-Royal, onde apresenta 31 obras próprias e outras de diversos autores, enfrentando a acusação de imoralidade e de difamação, em face da crítica social que empreende. No entanto, a sua popularidade aumenta significativamente. Em 1662, casa-se com a jovem atriz Armande Béjart, vinte anos mais nova, o que motiva novo escândalo. Mas a atividade continua e encena, com grande sucesso, "Escola de Mulheres", que aborda problemas morais e retrata duramente a condição humana. Recebe do rei uma pensão e é declarado "excelente poeta cômico". Com encenação mista de música, bailado e teatro, estreia, com escândalo, a comédia “O Tartufo” (1664). Tartufo é um falso devoto que, usando a religião, se introduz numa família honesta, deixando a nu o pior da sociedade parisiense de então. Religiosos presentes sentem-se retratados e atingidos e forçam a proibição da peça.
UM ENCENADOR CONTROVERSO Molière encena ainda "Don Juan" e "O Misantropo" (1665), uma paródia sobre a absurda arrogância que caracteriza as classes dominantes da altura. Mas não desiste do “Tartufo”. Remodela a peça, levando-a à cena sob o nome de “Panulfo”. Mas é imediatamente proibida pelo arcebispo de Paris, que ameaça com excomunhão os espectadores. Em 1668, encena “O Avarento”, uma de suas obras-primas, denunciando a desumanidade da paixão pelo dinheiro e a tentação de comprar indignamente o respeito da sociedade. Não se trata, porém de uma farsa hilariante, mas de uma severa crítica em que o público percebe que é ele mesmo o alvo essencial da mesma. Entretanto, a produção continua. Leva à cena diversas comédias e tragédias, como “Psiché”, “Le Bourgeois Gentilhomme” (1670), “As Amantes Magníficas” e “As Mulheres Sábias” (1672), fazendo grande sucesso com o teatro de crítica social, na linha dos maiores dramaturgos desde a antiguidade. Quando representava o protagonista de sua última obra “Le Malade Imaginaire”, Molière sofreu um repentino colapso, que o ator procurou dissimular, mas que o levará morte, poucas horas depois, em sua casa em Paris, no dia 17 de fevereiro de 1673. Muito se tem discutido sobre as semelhanças entre “O Fidalgo Aprendiz” do nosso Francisco Manuel de Melo e “Le Bourgeois Gentilhomme” do celebrado dramaturgo francês. Se é verdade que “O Fidalgo” (1665) é anterior ao “Le Bourgeois Gentilhomme” (1670) de Molière, há pontos em comum entre Monsieur Jourdain e Gil Cogominho. Em ambos temos o pretensiosismo provinciano de arrivistas que desejam alcandorar-se socialmente através de uma série de estratagemas de uma comédia de enganos. É disso que se trata nos dois casos. Poderia, assim, ter acontecido que o dramaturgo francês fosse influenciado por D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), ou tivessem ambos falado numa das deambulações diplomáticas do autor português, no entanto, tal não parece ser a melhor explicação. O mais certo é que ambos, o português e o francês, tenham ido buscar inspiração a Pietro Aretino (1492-1556), na “Cortigiana”, num tema clássico, que Aristófanes também tratou nas “Nuvens” – o pelintra que se dá ares de grande senhor e que procura agir (recebendo lições para o efeito) para que o reconheçam numa qualidade que não tem. De facto, D. Francisco leu Aretino, Molière também, e ambos foram beber à mesma fonte, bem influente nesse tempo. A verdade é que há entre os dois textos evidentes pontos de contacto na produção artística e nos objetivos críticos em relação à sociedade e às suas fraquezas. No fundo, a sociedade europeia padecia de pecados comuns, que a melhor dramaturgia não podia deixar de tratar.
Nesta constante evocação histórica da dramaturgia portuguesa, será hoje oportuno referir a obra de Francisco Rodrigues Lobo, nascido em 1580 e falecido em 1622, o que de certo modo justifica esta citação tendo, entretanto, em vista a relevância e qualidade da sua aliás breve intervenção criacional no teatro.
São poucas peças, como veremos a seguir, mas são em si mesmas assinaláveis na qualidade. Merece, pois, esta referência, breve que seja, como aliás é breve e curta a sua produção teatral. Mas mesmo assim, a citação é adequada pois a verdade é que, numa obra breve como a que aqui hoje referimos, a qualidade acaba por se destacar… E no entanto, insista-se, a dramaturgia de Francisco Rodrigues Lobo deve ser evocada. E isto, não obstante a escassez de títulos por ele criados e ainda a circunstancia, aliás muito própria da época da influência marcante da cultura castelhana, mais significa neste caso específico, independentemente da dimensão reduzida da obra teatral em si.
Pois importa então ter presente que o teatro de Francisco Rodrigues Lobo merece referência, independentemente da expansão reduzida e da própria qualidade das peças em si e, no entanto, desde logo se diga que essas peças são poucas.
Em rigor chegaram até nós escassas peças de Francisco Rodrigues Lobo, ainda por cima adaptadas ou reescritas. E mais: por razões históricas, o recurso ao idioma castelhano era corrente.
Rodrigues Lobo é autor, designadamente, de uma peça em castelhano, o “Auto del Nascimento de Cristo y Edito del Emperador Augusto César” publicado em 1676. No mesmo ano, publica também uma peça escrita em português: “Entremez do Poeta”. E é de assinalar então que esta peça, retintamente gongórica, assinala curiosamente uma espécie de reação ao domínio cultural (e não só) castelhano.
E tal como escrevi na “História do Teatro Português”, é de assinalar que, não obstante a qualidade dos textos, na peça redigida em português é certa a troça bem vicentina do poeta, o qual, expressamente gongórico, revela um sentido de reação ao domínio cultural e político espanhol. E nesse aspeto, assinala-se então a referência feita por Luiz Francisco Rebello ao chamado Pátio do Borratem ou da Mouraria.
Esclarece que é “aquele de que há mais remota notícia, pois que já funcionava em 1588, ano em que Filipe II conferiu ao Hospital de Todos os Santos o privilégio de concessão de licença prévia para representação de comédias mediante a recolha de uma parte das respetivas receitas. Assim se procurava atenuar os «malefícios» que de tais representações advinham para as almas cristãs”.
E cita a iniciativa de Fernão Dias de Latorre, que criou o então relevante Pátio das Arcas!
Hoje citamos novamente António Ferreira como dramaturgo, na evocação dos 450 anos da sua morte, ocorrida pois em 1569.
Nascido em 1528, a sua obra dramatúrgica assume especial relevância na modernização epocal da tragédia então e ainda hoje moderna, a partir da evocação dramatúrgica da “Castro”, sobre Inês de Castro, escrita cerca de 1560: tema referencial, como bem sabemos, da história e da cultura portuguesa.
E desde já se evoque a relevância autonómica, assim se diga, pelo tema em si e da técnica dramatúrgica que assume a “Castro”: nesse aspeto é de facto uma obra especialmente relevante na dramaturgia portuguesa, inclusive na medida em que nunca os dois protagonistas centrais, Pedro e Inês, se cruzam na expressão dramatúrgica, em si mesma considerada. Basta ter presente, neste aspeto, que nunca na peça Pedro e Inês se cruzam ou surgem ao mesmo tempo em cena, o que não significa menor relevância da tragédia em si mesma considerada, mas envolve uma visão crítica pelo menos na época amplamente moderna do tema…
E o mais curioso, insista-se, na época em que a peça foi escrita, é o desencanto do próprio D. João IV no exercício do poder real, sendo certo que o então consagrado cognome do Rei era precisamente “O Bravo”: e no entanto, uma das cenas determinantes da peça é precisamente o longo monólogo que o Rei pronuncia e que revela a sua questionável “bravura”.
Pois vale a pena transcrever parte dessa longa fala que assume simultaneamente um significado histórico e uma expressão teatral:
“Rei: Oh ceptro rico, a quem te não conhece / Como és fermoso e belo! E que soubesse / Bem quam diferente és do que prometes, / Neste chão que te achasse, quereria / Pisar-te ante com os pés que levantar-te. / Não louvo os que se louvaram por impérios / A ferro, sangue e fogo destruírem / O seu próprio estendendo: Mas aqueles / (Ó grandeza espantosa e ânimo livre!) / Que tendo muito grandes os deixaram. / Mór alteza e mór ânimo é as grandezas / Desprezar que aceitar: e mais seguro / A si cada um reger que o mundo todo”…
Vale amplamente a pena citar parte dos diálogos entre o Rei, Pacheco e um Conselheiro, pois neles encontramos um sentido teatral que merece ser aqui e agora citado e reproduzido, pois revela o sentido teatral do texto em si e do dramaturgo que o escreveu. Veja então como mero exemplo:
“Rei: Ela que culpa tem? Pacheco: Dá ocasião. Rei: Oh que ela não a dá, o Infante a toma. Que lei há que a condene, ou que justiça? Conselheiro: O bem comum, Senhor, tem larguezas, com que justifica obras duvidosas. Rei: Assim assentais nisto? Conselheiro: Nisto. Morra. Pacheco: Morra Rei: Uma inocente? Conselheiro: Que nos mata! Rei: Não haverá outro meio? Pacheco: Não o temos. Rei: Metê-lo-ei num Mosteiro. Conselheiro: Ei-lo queimado. Rei: Mandá-lo-ei deste Reino Conselheiro: O amor voa. Esse fogo, Senhor, não morre logo.”
E terminamos esta breve referência com notáveis citações de personagens centrais da peça. Assim, o apelo de Inês ao Rei:
“Meu Senhor / esta é a mãe dos teus netos. Estes são / Filhos daquele filho que tanto amas. / Esta é aquela coitada mulher fraca / Contra quem vens armado de crueza. / Aqui me tens. Bastava teu mandado / Para eu segura e livre te esperar / Em ti e em minha inocência confiada”.
E finalmente, o pranto que reproduz a ira do Infante: “Chorem meu mal comigo quanto meu mal comigo quantos me ouvem. / Se achou tanta crueza. E tu, Coimbra, / cobre-te de tristeza para sempre / Não se ria em ti nem se ouça, senão prantos e lágrimas: em sangue / Se converta aquela água do Mondego”.
E a terminar, na “Breve História do Teatro Português”, Luiz Francisco Rebello distingue de forma justa e significativa a versão dramatúrgica desta história, citando não só os dramaturgos portugueses como também alguns estrangeiros, digamos assim, que dedicaram ao tema intervenções cénicas de inquestionável qualidade.
Começamos por assinalar que o historial das artes de letras e de espetáculos não impedem o uso literário de referências, vindas dos séculos XIX/XX, marcadas pela tradição histórica das respetivas designações: e assim, o dramaturgo D. João de Castro (1871-1955), nascido pois há cerca de século e meio, então como tal consagrado e hoje praticamente esquecido, marcou no entanto a época e de certo modo a produção dramatúrgica pós-romântica, o que em rigor significa uma transição, tantas vezes nem sequer como tal explícita, do teatro português.
E é interessante então relacionar estas evocações de autores, como tal mais ou menos esquecidos, com a estrutura histórico-artística da época e designadamente com a relevância que tem esta produção de espetáculos teatrais e a importância dos seus autores: nesse sentido, e por isso mesmo, esta série de artigos muitas vezes se destina a recordar nomes e obras que valorizam o teatro.
Fazemos e citamos então agora diversas referências à obra dramatúrgica deste João de Castro, a partir do que escrevemos na “História do Teatro Português”.
Aí referimos que na época o teatro histórico em verso marcou a cultura, a produção e mesmo o espetáculo. E esta opção, que em rigor dura até hoje, foi relevante da dramaturgia de autores na época consagrados e ainda evocáveis, desde logo Henrique Lopes de Mendonça ou Júlio Dantas, por exemplo: mas há que lembrar portanto a dramaturgia, hoje de facto praticamente esquecida, de João de Castro.
Ora, importa ter presente que D. João de Castro, como tal mesmo na época consagrado, é considerado um dos iniciantes do simbolismo, ou pelo menos Júlio Brandão assim o evoca. E será oportuno ainda referir que a dramaturgia de D. João de Castro comporta um díptico referido no conjunto como precisamente “O País da Quimera” que envolveria duas peças: “Via Dolorosa” (1898) e “Vida Eterna” que se perdeu.
Mas como já escrevemos, o chamado então “Teatro Heroico”, nada menos, envolveu peças como “Brasil” (1924) ou “Por Bem” (1931), peças hoje efetivamente esquecidas... e podemos ainda citar por exemplo peças como “Jesus”, “A Desonra”, ou “O Marquês de Carriche” (1927).
Finalmente Luiz Francisco Rebello na “História do Teatro Português” escreve: «Mas devem ainda citar-se D. João de Castro (1871-1955), o autor dos sonetos “neofilibatas” de “Alma Póstuma” e do romance “Os Malditos” que depois do poema-drama “Via Dolorosa” (1898), escreveria um drama naturalista que ousadamente punha em cena um caso de incesto filial (“A Desonra”, 1913) e peças de assunto histórico na linha do neo-realismo finissecular (“O Marquês de Carriche”, 1927; “Por Bem”, 1931)».
E seguem citações de autores que Rebello refere como relevantes dramaturgos da época (alguns ainda hoje, acrescente-se): designadamente Manuel da Silva Gaio, Júlio Dantas, Afonso Lopes Vieira...
Ora, independentemente de quaisquer outras apreciações, a referência à citação de Luiz Francisco Rebello sobre D. João da Câmara representa o interesse que significa a obra hoje injustamente esquecida deste dramaturgo!