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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA

  


ATORES, ENCENADORES (XXVI)
OS 140 ANOS DE PALMIRA BASTOS
por Duarte Ivo Cruz


Há meses, fiz aqui uma referência a Palmira Bastos, no contexto da evocação de atores e encenadores da transição do século. Sucede que no dia em que escrevo esta crónica (30 de maio de 2015) decorrem exatos 140 anos do nascimento de Palmira: e no passado dia 10 deste mesmo mês, decorreram 92 anos da sua morte. As datas são em si mesmas de assinalar, na perspetiva da referência a atores que marcaram pela sua qualidade o teatro português.

Mas neste caso concreto de Palmira, a evocação é ainda mais abrangente. Em primeiro lugar, pelo talento que, durante toda a longa carreira, sempre manifestou, a julgar pelas críticas de épocas sucessivas e pelo testemunho direto de sucessivas gerações, entre as quais me incluo: e isto porque, Palmira Bastos manteve-se em cena, é caso para assim dizer, desde 1890: estreou-se com efeito com 15 anos num pequeno papel da peça “O Reino das Mulheres” de Ernesto Blum, no então Teatro da Rua dos Condes, em 1 de julho de 1890. E manteve-se em cena até 15 de dezembro de 1966, no último espetáculo em que participou, agora no Teatro São Luis, com a peça “Ciclone” de Somerset Maugham, que tinha aliás estreado no Teatro Nacional de D. Maria II em 1932.

O incêndio do D. Maria, ocorrido em 1964, obrigou a empresa Rey Colaço-Robles Monteiro a mudanças: foi pois com o “Ciclone” no São Luís que Palmira Bastos se despediu do público - com 91 anos de idade e 76 anos de carreira, aliás devidamente assinalada em comemorações ocorridas quando completou 90 anos. E ainda ficaria em cena mais um ano, ou quase!

A colaboração de Palmira no Teatro Nacional  alternou com participações sucessivas nas grandes companhias do meio teatral português, e isto, tanto no teatro declamado como na revista e no teatro musicado, em quase  todos os palcos e companhias relevantes: assim, para além de Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro, com quem ficaria a partir do início dos  anos 30 com uma breve  interrupção,  Palmira Bastos integra elencos diversos e espetáculos dirigidos ou integrando os grandes nomes da  época: Augusto Rosa,  Eduardo Brazão, Taveira, Ilda Stichini, Luis Galhardo…

Mas vimos que Palmira se estreou no teatro musicado com “O Reino das Mulheres” de Blum. E no que respeita ao teatro musicado e à revista, Luis Francisco Rebello assinala ainda intervenções em “Tam-Tam” de Sousa Bastos, com quem Palmira viria a casar: e a esta intervenção na opereta e na revista seguiram-se “Fim de Século”, “O Sarilho”, e outras peças de teatro ligeiro, alguma de grandes autores, designadamente “O Burro do Senhor Alcaide” de D. João da Câmara e Gervásio Lobato ou, deste último, “O Solar dos Barrigas”. Cfr. l. F. Rebello, “História do Teatro de Revista em Portugal” vol. 1 - 1984).

E vem a propósito referir um comentário de D. João da Câmara acerca da então incipiente mas já notável carreira de Palmira Bastos: “Foi brilhante a sua aurora. Era atriz na idade em que outras mal começavam a balbuciar os papéis”. E Eduardo Schwalbach: “é uma grande atriz, sem sobra de dúvida, na opereta, na comédia, no drama” (in Sousa Bastos, “Diccionário do Theatro Português” 1908).

A longevidade fez com que Palmira Bastos surja ligada a numerosíssimas produções da grande dramaturgia portuguesa e mundial, em centenas de estreias em Portugal e no Brasil, revelando, ao longo de décadas, sucessivas peças e autores de destaque, desde clássicos (Gil Vicente, Shakespeare, Molière, Schiller, Garrett) até estreias de autores que à época constituíam verdadeiras revelações junto do público português. Lembro, entre centenas de nomes, autores na época pouco conhecidos entre nós, mas de qualidade hoje indiscutível: por exemplo Bernestein, O'Neill, Oscar Wilde, Lorca, Pirandello, Alexandre Casona, George Bernanos…

Mas no que diz respeito ao teatro português, encontramos um repertório que, ao longo de décadas, por mérito próprio ou dos responsáveis pelas companhias - e aí, é justo valorizar a Empresa Rey Colaço-Robles Monteiro no Teatro Nacional - revelou toda uma geração de dramaturgos que, a partir do início do século, constitui, com as oscilações que hoje se impõe reconhecer, muito do que de melhor se fez no teatro português.

E aí cito peças de Marcelino Mesquita, Henrique Lopes de Mendonça, Carlos Malheiro Dias, Julio Dantas, Ramada Curto, Alfredo Cortez, Olga Alves Guerra, Virgínia Vitorino, Vasco Mendonça Alves, Eduardo Schwalbach, Augusto de Castro, Joaquim Paço d'Arcos, Costa Ferreira, Leitão de Barros, Luis Francisco Rebello…

E tudo isto em 76 anos de carreira.


Duarte Ivo Cruz


Obs: Reposição de texto publicado em 03.06.15 neste blogue.

ANTOLOGIA

  


ATORES, ENCENADORES (XXV)
DAVID MOURÃO-FERREIRA ATOR
por Duarte Ivo Cruz


Temos alternado, nesta série, textos obedecendo a critérios distintos mas obviamente complementares: por um lado referências a atores e encenadores “profissionais” no sentido do exercício constante e dominante da atividade; por outro lado, referências a personalidades destacadas do meio artístico, literária e até politico, que marcaram também, na obra e no talento, a vida cultural-teatral e do espetáculo.

David Mourão-Ferreira é ainda hoje, quase 20 anos decorridos sobre a sua morte, um exemplo flagrante deste grupo escolhido de talentos multiformes. Escritor inconfundível e ímpar na obra, em extensão, variedade e qualidade, deixou escritos memoriais onde evoca a sua participação direta, como ator e como dirigente de iniciativas que marcaram a renovação cultural do teatro-espetáculo ao longo dos anos 50-60. Isto, conciliado, no que respeita ao teatro, com a escrita e a produção de algumas peças de notabilíssima qualidade, no ponto de vista poético-literário e no ponto de vista técnico-dramatúrgico.

Cito, nessa área específica da criação teatral, “Isolda”, estreado em 1948 no Teatro Estúdio do Salitre, grupo percursor da renovação modernizante do teatro português, como já aqui vimos, peça nunca publicada, mas à qual se seguiu “Contrabando”, (1956) e “O Irmão”, esta escrita originalmente em 1955 e sucessivamente ampliada e alterada, com sucessivos nomes, até à versão e edição definitiva em 1988.

E nesta dramaturgia breve conciliam-se aspetos estruturais da obra vasta e variada de David, no teatro, na poesia, na ficção e no ensaio e docência: designadamente, nos contextos dramáticos contemporâneos, uma referência permanente   a padrões e paráfrases que percorrem desde a tragédia grega ao realismo social dos dias de hoje. Tudo isto num termo de modernidade e qualidade ímpar da escrita: e não por acaso a vida e a obra surgem diretamente ligadas a versões cinematográficas da sua ficção – e uma vez pelo menos até como interveniente direto.

Mas voltemos ao teatro. Em 1997, a revista Colóquio/ Letras da FCG (nº145/146, julho - dezembro de 1997, dir. Joana Morais Varela) publicou um vasto memorial sobre David Mourão-Ferreira, em que tive o gosto de colaborar, e que abre com uma extensa entrevista de vida e obra concedida por David à escritora Graziana Somai. A edição inclui em destaque a reprodução fac-similada do manuscrito não datado mas claramente dos primeiros anos do autor David Ferreira, de uma pequena peça intitulada “O Intrujão - peça em dois atos” (8 páginas) com a seguinte anotação: “esta peça é dedicada à Exma. Srª Professora D. Carmen”.

E justamente: este escritor de obra imensa e variada, mas limitada no teatro a quatro textos, sendo um esquecido (“O Irmão)”, outro nunca publicado (“Isolda”) os outros publicados mas profundamente e sucessivamente alterados até às versões finais, foi ator no Teatro Estúdio de Lisboa, companhia referencial como já aqui lembramos, da renovação do teatro português – e foi ainda ator esporádico em outas produções e em outros espetáculos.

Ouçamos a esse respeito as suas recordações na entrevista citada:

“Comecei por participar num grupo de teatro da própria faculdade (…) Depois, em 1948, tinha vinte e um anos, comecei a representar (…) num grupo de teatro que teve grande importância nesses anos em Portugal, e que tem muito a ver com a Itália porque tinha a sede no Instituto Italiano de Cultura. Tratava-se do Teatro-Estúdio do Salitre dirigido por Gino Saviotti, também diretor do Instituto e que era uma figura muito interessante (…). O repertório de peças que nós representávamos era basicamente italiano e português mas levaram-se à cena autores portugueses que nunca tinham sido representados, alguns muito jovens como era o meu caso; representaram-se duas pequeninas peças minhas (…) Isolda e Contrabando. Entrei como ator em peças da Comedia dell Arte e dum autor do século XVII. (…) No começo dos anos 50 ainda tive uma certa atividade como ator”…(ob. cit,).

Em artigo que publiquei na revista Colóquio citada identifiquei pelo menos duas intervenções de David Mourão-Ferreira no TES: “Florina” de Angelo Beolco, e “O Rei Veado” de Carlo Gozzi.  

E mais uma nota pessoal: em conversas com David Mourão-Ferreira, a propósito de estudos que publiquei sobre o seu teatro, David referiu-me a intenção e escrever uma peça inspirada na vida e obra de Garrett. Ora, bem podemos dizer que há afinidades entre estas duas grandes figuras da cultura portuguesa – cada um na sua época, no seu estilo, na sua biografia pública, literária e até política – ambos integraram governos, ambos marcaram a cultura e a sociedade – há realmente paralelismos e convergências. 

Mas sobretudo ambos foram profundamente renovadores da época respetiva, e como tal continuam ambos profundamente modernos.

(cfr. “Infinito Pessoal – Homenagem a David Mourão-Ferreira” in “Colóquio Letras” cit.)


Duarte Ivo Cruz


Obs: Reposição de texto publicado em 27.05.15 neste blogue.

ANTOLOGIA

  
    Luzia Maria Martins e Helena Félix (in http://diasquevoam.blogspot.pt/)


ATORES, ENCENADORES (XXIV)

NOS 50 ANOS DO TEATRO ESTÚDIO DE LISBOA
por Duarte Ivo Cruz


Já evocamos aqui dois cinquentenários – o do Teatro Villaret, fundado e dirigido por Raul Solnado, e o da companhia do Teatro do Nosso Tempo, fundada e dirigida por Jacinto Ramos. Agora, também 50 anos decorridos, é oportuna uma referência à companhia do Teatro Estúdio de Lisboa (TEL), fundada e dirigida por Helena Félix e Luzia Maria Martins, no desaparecido Teatro Vasco Santana.

Mas não deixa de ser também oportuna a referência ao Teatro em si, hoje uma ruina situada em zona referencial de Lisboa mas que, há meio século e durante largos anos, valorizou o meio e a cultura teatral. Lá se instalou e se manteve, com efeito, o TEL, que se destacaria pela exigência de repertórios: e tanto mais de assinalar que a própria implantação do Teatro e da companhia no que era, na altura, a Feira Popular de Lisboa, de certo modo contrastava e valorizava, da melhor maneira, o teor especificamente popular do recinto e das suas atividades.

Evidentemente, a saudosa Feira Popular e as respetivas atividades, eram obviamente legítimas e de qualidade, e constituíram, durante dezenas de anos, uma faceta relevante da vida da cidade: mas não tão exigente, no ponto de vista artístico e cultural, como sempre foi o repertório e os elencos e encenações do TEL.

Basta recordar algumas marcas do repertório do TEL, mantidas, sempre com exigência, durante larguíssimos anos: peças de Luís Sttau Monteiro, Fernando Luso Soares, Prista Monteiro, da própria Luzia Maria Martins, para referir autores portugueses contemporâneos. E peças de Maxell Andersen, Arnold Wesker, Anton Tchekov, David Story, Terence Rattigan, Jean Giraudoux, John Osborne, Peter Shaffer, Roger Vitrac, Arthur Miller, Marguerite Duras, entre tantos mais.

Isto consubstância um repertório dominantemente contemporâneo, numa altura em que o teatro moderno enfrentava os problemas bem conhecidos.

Importa referir entretanto que as duas animadoras do TEL chegaram à Feira Popular com um currículo e uma preparação cultural notável pela abrangência e pela própria internacionalização. Assim, Helena Félix permaneceu mais de 10 anos na Companhia Rey Colaço – Robles Monteiro, o que implica um registo de qualidade que hoje já ninguém contesta.  E de 1961 a 1964 completou em Londres uma formação artística de grande qualidade.

E quanto às encenações de Luzia Maria Martins, que trabalhou em Londres e foi também dramaturga, apraz-me recuperar algumas das numerosas análises críticas que ao longo dos anos, fui fazendo.

 Assim em “A Nossa Cidade” de Thorton Wilder, salientei designadamente as soluções encontradas para as expressões de mímica, sempre difíceis; em “A Louca de Chaillot” de Jean Giraudoux, salientei a interpretação e o “muito feliz jogo de marcações”; ou “a marcação sempre correta, sempre engenhosa” na “Noite de Verão” de Ted Williams; ou a “interligação entre os diversos planos (de Vitor ou as Crianças no Poder de Roger Vitrac) menosprezando assim um pouco a heterogeneidade surrealista da obra”. E tantas mais.

Pois, como escrevi numa crítica à peça “Lar” de David Storey, “Helena Félix e Luzia Maria Martins, à frente do Teatro Estúdio de Lisboa, teimam prosseguir uma verdadeira obra de renovação cultural”.

E assim foi durante vários anos!


Duarte Ivo Cruz


Obs: Reposição de texto publicado em 20.05.15 neste blogue.

ANTOLOGIA


    Eça de Queiroz


ATORES, ENCENADORES (XXIII)
TRÊS MESTRES DA LITERATURA PORTUGUESA QUE FORAM ATORES
por Duarte Ivo Cruz


Refiro-me, no título, a Gil Vicente, Garrett e Eça de Queiroz, sendo certo que nesta série já nos ocupámos precisamente de Garrett como ator das suas próprias peças. Recordamos então as suas intervenções episódicas mas nem por isso menos assinaláveis na estreia do “Catão”, em 1821 e do “Frei Luis de Sousa” em 1843.  Referi na altura que Garrett, no “Frei Luis de Sousa”, interpretou nada menos do que o Telmo Pais, e em condições difíceis de saúde: convalescente de uma queda que o imobilizou durante semanas, terá feito um Telmo um pouco coxo, o que justificou elogios algo irónicos de Herculano.

Quatro séculos antes, concretamente em 8 de junho de 1502, Gil Vicente, transformado em pastor, entraria com estrondo, “aos arrepelões e à punhada” na câmara da infanta D. Maria, mulher de D. Manuel, que acabava de dar á luz o futuro D. João III. E bem se queixou das dificuldades, afinal óbvias: “se tal soubera/não viera: e vindo/ não entraria/e se entrasse eu olharia/ de maneira/ que nenhum me chagaria”!

E na Compilação efetuada em 1562 por Luis e Paula Vicente, filhos de Gil Vicente, é referido que “por ser coisa nova em Portugal gostou tanto a Rainha Velha desta representação que pediu ao autor que isto mesmo lhe representasse às matinas de Natal endereçado ao nascimento do Redentor”…

Mas a “estreia” diríamos hoje, passou-se em 1502, plausivelmente nos 47 anos do autor, que geralmente é dado como nascido em 1465: Teófilo Braga avança com 1470, mas em qualquer caso podemos aqui assinalar hoje algo como os 550 anos do nascimento de Gil Vicente e os 513 anos, não digo do “nascimento” mas, isso sim, da definição estética e dramatúrgica do teatro português.

Garrett e Gil Vicente “cruzam-se” em 1838, com o garretteano “Um Auto de Gil Vicente”, peça inicial do ciclo romântico. Cito aqui a lição de Marques Braga:

“Quando Almeida Garrett quis reatar a tradição dramática do seculo XVI com a renovação do romantismo (século XIX),  conseguindo restaurar o teatro português, teve de remontar à obra vicentina, engastando, no seu drama ”Um Auto de Gil Vicente”, a representação da D .Manuel da Tragicomédia Cortes de Júpiter. A idealização da corte e a representação da Tragicomédia deram a base para o belo drama de Garrett” (cfr. prefácio das Obras Completas de Gil Vicente, vol. I).

Recorde-se que a peça põe em cena e em confronto Paula Vicente, Bernardim Ribeiro e o próprio Gil Vicente, num registo de tolerância de D. Manuel e de independência do próprio Gil Vicente, o qual inclusivé declama a certa altura: “Nunca me escondi de priores e nem de cónegos mais… e no dia depois do Juiz da Beira jantei com dois desembargadores do agravo. Tudo pelo exemplo de tolerância e liberdade do Rei”.

E Bernardim: “Desgraçado de quem tocar nesta mão. São duques, são reis, são príncipes? Eu sou Bernardim Ribeiro, o trovador, o poeta, que tenho maior coroa que a sua”…

Isto é Garrett numa versão integral…

Ora bem: antes de Gil Vicente, já havia expressões dramáticas na cultura e na sociedade portuguesa: mas efetivamente o “trovador e mestre de balança”, cargo que aponta para a gestão financeira da Corte marca uma renovação que se prolongaria pelos séculos, até ao romantismo e ao ultrarromantismo teatral.

E para terminar, Eça de Queiroz. Aqui, como se sabe, o teatro perpassa pelos sucessivos romances numa expressão notabilíssima de espetáculo, no mais elevado sentido do termo. Referências a peças, a atores, a dramas e comédias, a personagens ligados ao miro teatral são recorrentes: por exemplo o Artur Corvelo de “A Capital”, o Ernestino de “O Primo Basílio”, o José Fernandes que se queixa de uma peça em “A Cidade e as Serras”, entre tantos outros mais…

Daí, a sucessão de filmes, peças e outras expressões de espetáculo extraídas dos romances de Eça –  desde por exemplo as peças “Os Maias” de Bruno Carreiro (1945) ou “Os Maias no Trindade” de António Torrado (2009) ou a “Madame” de  Lídia Jorge (1999) que evoca  Maria Eduarda da Maia, e a uma sucessão considerável de filmes, desde três “Primo(s) Basílio(s), até ao recente (2014) “Os Maias” de João Botelho.  

E no entanto, nas “Farpas” há muitas referências a espetáculos e a textos teatrais. E nas “Últimas Páginas” no texto denominado “O Francesismo”, Eça de Queiroz recorda que em Coimbra se interessou pelo teatro. Ouçamo-lo:

“Comecei por me fazer ator do Teatro Académico (em Coimbra). Era pai nobre. E durante três anos, como pai nobre, ora grave, opulento, de suíças grisalhas, ora aldeão trémulo, apoiado ao meu cajado, eu representei entre as palamas ardentes dos Académicos, toda a sorte de papéis de comédias, de dramas – tudo traduzido do francês (…) Um dia, porém, Teófilo Braga, farto da França, escreveu um drama conciso e violento, que se chamava Garção. Eu representei o Garção, com calções e cabeleira e fui sublime; mas o Garção foi acolhido com indiferença e secura (…) Imediatamente nos refugiamos no francês e em Scribe”...


Duarte Ivo Cruz


Obs: Reposição de texto publicado em 13.05.15 neste blogue.

ANTOLOGIA

  


ATORES, ENCENADORES (XXII)
EVOCAÇÃO DO CENTENÁRIO DE UM ESPETÁCULO: PEDRO FREITAS BRANCO ATOR
por Duarte Ivo Cruz


A cronologia justificaria evocação de duas efeméridas este ano assinaláveis: concretamente, o centenário de um espetáculo insólito pelos participantes e o cinquentenário da fundação de uma companhia sólida e referencial até hoje, neste panorama tão irregular do teatro português.

Ambas as efemérides têm como cena o Teatro Gil Vicente de Cascais. E vale a pena começar pela evocação desta magnífica sala – modelo dos pequenos teatros que, na sequência da fundação, em 1846, do Teatro de D. Maria II, foram sendo paulatinamente construídos, ao longo dos anos 800/ início de 900, um pouco por todo o país.  

O Teatro Gil Vicente de Cascais foi inaugurado em 1869 e deve-se à iniciativa algo insólita de um comandante da marinha mercante denominado Manuel Rodrigues de Lima. As obras foram dirigidas por José Vicente da Costa, aproveitando uma sala preexistente. Rambois e Cinatti, nomes dominantes da cenografia, terão colaborado: e o primeiro espetáculo muito ao gosto da época, constou de um drama, “O Ermitão da Cabana” e de uma comédia, “Mateus, o Braço de Ferro”, por um grupo de amadores locais.  

Mas o Teatro Gil Vicente em breve assumiu, também muito ao gosto da época, uma programação em que se alternavam os grandes nomes (profissionais) da cena portuguesa e grupos de amadores. E quanto aos atores e mais espetáculos profissionais, diz-nos Ferreira de Andrade, “pelo Gil Vicente passaram as maiores figuras do teatro de então, do grande ator Vale a Mercedes Blasco, às companhias do Ginásio, etc.” Ora as companhias do Ginásio eram na altura extremamente prestigiadas, como veremos mais tarde (cfr. Glória Bastos e Ana Isabel B. Teixeira de Vasconcellos “O Teatro em Lisboa no Tempo da Primeira Republica” ed. Museu Nacional do Teatro 2004 págs.45 e segs.)

Recorda ainda Ferreira de Andrade: “No dia 19 de setembro de 1899 representaram-se, pela companhia de que fazia parte, além de Mercedes Blasco, Laura Ferreira, Pedro Cabral e Pereira da Silva, as comédias “O Tio Torcato” e “Paris em Lisboa". (…) Dez dias depois, o teatro aplaudia o grande ator Vale e Beatriz Rente na (peça) "Lição Cruel de Pinheiro Chagas”. Eram grandes nomes do meio teatral - profissional da época. (cfr. Ferreira d’Andrade “Cascais Vila da Corte - Oito Seculos de História” 1964)

Mas o que quero agora evocar é, mais concretamente, o centenário de um espetáculo realizado no Gil Vicente em 1915, escrito, composto, produzido e representado por amadores que marcavam ou viriam a marcar a vida social, cultural e artística portuguesa. Trata-se de uma revista da autoria de José Paulo da Câmara, filho do grande dramaturgo D. João da Câmara, de João Vasconcelos e Sá e de Francisco Paes de Sande e Castro.

O mais curioso é que o autor da música e também intérprete ator e cantor foi Pedro de Freitas Branco, então com 21 anos de idade, e que viria, como bem sabemos, a desenvolver uma brilhantíssima carreira de maestro, designadamente nas sucessivas temporadas de ópera que dirigiu no Teatro de São Carlos e um pouco por toda a Europa, mas também na estreia e divulgação dos compositores contemporâneos, designadamente Ravel, que compôs obras propositadamente para serem estreadas por Freitas Branco.

Faço aqui duas transcrições bem elucidativas dessa projeção e colaboração de nível mundial:

Escreveu João de Freitas Branco. “Por esta altura (anos 20/30 do século passado) já Pedro de Freitas Branco tentava criar uma companhia portuguesa de ópera que chegou a apresentar-se em Lisboa e no Porto e organizava concertos no Tivoli, com a colaboração de artistas como Béla Bartók (…) em cujos programas incluiu muitas obras modernas desconhecidas do público” (in “História da Música Portuguesa” ed. Europa América pág.147).

E escreveu Manuel Ivo Cruz: “O maestro português foi internacionalmente considerado um dos maiores intérpretes da música do nosso tempo”. (…) Também a grande maioria dos compositores portugueses seus contemporâneos lhe mereceram cuidadas interpretações” (in - “O Teatro Nacional de S. Carlos” ed.  Lello e Irmão 1992).

E acrescentamos, para terminar, que no Teatro Gil Vicente se estreou em 1965 o Teatro Experimental de Cascais, dirigido por Carlos Avilez: mas disso falarei em breve.


Duarte Ivo Cruz


Obs: Reposição de texto publicado em 06.05.15 neste blogue.

ANTOLOGIA

  


ATORES, ENCENDORES (XXI)
EVOCAÇÃO DA CARREIRA DE CARMEN DOLORES
por Duarte Ivo Cruz


Evoco hoje uma atriz referencial no teatro, no cinema e na televisão, Carmen Dolores Com a particularidade de ter iniciado a carreira com 19 anos, não no teatro declamado mas no cinema em “Amor de Perdição” (1943) de António Lopes Ribeiro e, no mesmo ano, “Um Homem às Direitas” de Jorge Brum do Canto. Curiosamente, no “Amor de Perdição”, Carmen faz a personagem Teresa e Eunice Muñoz, na altura usando o nome de Eunice Colbert, faz a personagem Mariana.

Recordamos a carreira teatral de Carmen Dolores.

Em 1945, encontramos Carmen na Companhia dos Comediantes de Lisboa, dirigida por Francisco Ribeiro, com um repertório exigente: “Eletra” de Jean Giraudoux, “Pétrus” de Michel Achard e “O Cadáver Vivo” de Leon Tolstoi. Nada disto era fácil na época: mas em qualquer caso, esta estreia valeu a contratação para a Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, então em pleno prestígio e atividade cultural e cénica no Teatro Nacional de D. Maria II.

E sublinhamos o âmbito cultural e a exigência das interpretações, designadamente num repertório clássico: “Frei Luis de Sousa”, “Sonho de uma Noite de Verão, “As Astúcias de Scapin”… Mas também em autores contemporâneos na época pouco conhecidos e pouco representados em Portugal: Marcel Achard, Jean Anouille, Alexandre Casona, Luigi Pirandello e outros mais.

E também autores portugueses contemporâneos designadamente “O Casaco de Fogo” de Romeu Correia, ou “Alguém Terá de Morrer” de Luis Francisco Rebello.

Carmen Dolores voltaria mais tarde ao Teatro D. Maria II, em espetáculos dispersos mas relevantes, com destaque para “O Jardim Zoológico de Vidro” de Tenessee Williams e outros dispersos.

Porém, em 1958, encontramos Carmen no Teatro Avenida, como atriz principal da Companhia do Teatro de Sempre, dirigida por Gino Saviotti, que já referimos nesta série de evocações. Aí, há que destacar sobretudo duas grandes interpretações.

Em primeiro lugar, a Sofia de “O Gebo e a Sombra” de Raul Brandão. Já rotulei a dramaturgia de Brandão como a proto-história do teatro moderno português (in “História do Teatro Português” 2002): e precisamente, este “Gebo e a Sombra” constitui ainda hoje uma poderosa reflexão sobre a simbiose da pobreza material com uma pobreza espiritual que atinge os personagens e sobretudo descreve como que um destino de frustração que em muito transcende os aspetos materiais. Mas não só: a peça impõe uma profunda reflexão existencial. O Gebo, só tardiamente percebe ou consciencializa que está errado quando julga que “a felicidade, na vida, é não acontecer nada” e degrada-se moralmente – de tal forma que “Tudo foi inútil”, derradeira frase da peça, proferida pela Sofia, interpretada primorosamente por Carmen Dolores.

E Carmen Dolores, na mesma companhia e na mesma temporada, marcaria a carreira e o meio teatral da época com outra interpretação notável, agora no papel da enteada nas “Seis Personagens à Procura de Autor” de Pirandello.

Carmen transitaria, no ano seguinte, para o Teatro Nacional Popular, dirigido no Trindade por Francisco Ribeiro. Aí interpretou a protagonista de “Lucy Crown” texto adaptado por Jean Pierre Aumont de um romance de Irwin Shaw, e a “aleluia erótica” assim mesmo designada pelo autor, Lorca, intitulada “Amores de Dom Perlimplim com Belisa no seu Jardim”, texto de uma poética difícil.

De 1961 a 1965, integra o Teatro Moderno de Lisboa, cooperativa de atores a funcionar no Cinema Império. Já aqui referimos (in “Atores e Encenadores” X – 11.02.15) esta inesperada, para a época, incursão num repertório (e num horário, pelas 18 horas!…) bem pouco habitual entre nós: sobretudo, a encenação de “O Render dos Heróis” de José Cardoso Pires constituiu uma abordagem inesperada e plenamente conseguida do teatro moderno português - a da renovação da perspetiva histórico-politica na época habitual.

Em 1969 assinalo em duas produções em teatros diversos: “A Dança da Morte” de Strindberg, onde, dirá Luís Francisco Rebello, “atingirá o ponto mais alto da sua carreira de comediante” (in “Dicionário do Teatro Português” pág. 249) e a “Forja” de Alves Redol encenada por Jorge Listopad. Miguel Falcão recorda os incidentes que marcaram a estreia desta peça, provocados por uma nota da empresa sobre censura, no mínimo pouco clara, incluída no programa (cfr. Miguel Falcão - “Espelho de Ver por Dentro – O Percurso Teatral de Alves Redol” ed. INCM 2009).

Por essa época, trabalhou na Casa da Comédia soba direção de Jorge Listopad em peças de Strindberg (“Dança da Morte” 1969), Durremmatt (“A Dança da Morte em 12 Assaltos”) e Romain Weingarten (“Alice nos Jardins do Luxemburgo” (ambos em 1972).

E assinala-se, a partir de 1974, uma colaboração regular com João Lourenço, que se prolongaria até pelo menos 2006, com interrupções, uma delas aliás de mais de 7 anos em que Carmen Dolores viveu em Paris: de qualquer modo, no Teatro Aberto e no Novo Grupo de João Lourenço participou numa renovação do repertório, designadamente a partir de diversas peças de Bertold Brecht, antes proibidas: cito “As Espingardas da Mãe Carrar” ou, mais tarde “O Circulo de Giz Caucasiano”. E com João Lourenço trabalhou ainda ao longo dos anos 2000.

Carmen mantem-se assim em cena ou em colaborações de recitais poéticos até aos nossos dias.

E em 1984, Carmen Dolores publicou um livro de memórias, a que chamou “Retrato Inacabado”. Ora, é caso para dizer que, decorridos estes 30 anos, o retrato em boa hora continua inacabado, pois a carreira, decorridos que estão 72 anos desde a estreia, não terminou!


Duarte Ivo Cruz


Obs: Reposição de texto publicado em 29.04.15 neste blogue.

ANTOLOGIA

  
    Raul Solnado no Centro Nacional de Cultura em 2002


ATORES, ENCENADORES (XX)
BREVE EVOCAÇÃO DE RAUL SOLNADO NO TEATRO, NO CINEMA, NA ÓPERA
por Duarte Ivo Cruz


Evocamos aqui Raul Solnado na perspetiva e na circunstância do cinquentenário do Teatro Villaret, por ele fundado em 1964 e onde estreou em 1965, há exatos 50 anos, com “O Impostor Geral”, adaptação do clássico “Inspetor Geral” de Gogol, “transformado” num espetáculo musical de excelente qualidade. O registo cómico que dominou grande parte da carreira de Solnado não excluiu obviamente a dramaticidade direta ou implícita de uma longa atividade de ator - encenador, e ainda menos, a expressão direta da excecional comunicabilidade com o público em papéis cómicos como em papéis trágicos, no teatro de revista como no teatro declamado, na rádio, no cinema e na televisão.

E vem a propósito evocar também o programa ZIP ZIP, realizado semanalmente no Teatro Villaret a partir de 1969 para a RTP, numa produção conjunta com Fialho Gouveia e Carlos Cruz. Foi de facto um grande momento do espetáculo em Portugal, na simbiose de produção artística direta e de jornalismo televisivo.  

E já referi o desdobramento que o Teatro Villaret efetuou, precisamente em 1965, com a companhia do Teatro do Nosso Tempo, dirigida por Jacinto Ramos, com Maria Barroso na protagonista da “Antígona” de Jean Annouil.

Ora bem: no conjunto de uma carreira de dezenas de anos, repartida em Portugal e no Brasil, pela revista, pelo teatro musicado e declamado – e não só comédia, longe disso – e pela televisão, só poderemos aqui descrever alguns momentos de especificidade, todos eles marcados pela excecional qualidade das interpretações de Solnado, fosse ou não protagonista – e acabava sempre por o ser, independentemente da estrutura das peças e dos personagens desempenhados…

E começo por referir os monólogos, originais ou adaptados, que interpretou numa expressão cénica de contacto direto com o público. Cito designadamente “A História da Ida à Guerra de 1908” de Miguel Gila, devidamente adaptado, na revista “Bate o Pé”, em cena no Teatro Maria Vitória (1961/62). E outros se seguiram.

Há que citar intervenções destacadas num repertório heterogéneo que aliás veio das primeiras colaborações cénicas, designadamente mas não só na Sociedade Guilherme Cossoul - Gil Vicente, “O Fidalgo Aprendiz” de D. Francisco Manoel de Melo (no TMDMII), “O Avarento” de Molière, Tchekcov, Eduardo Schewalbach, o “Baton” de Alfredo Cortez, a “Maria Emília” de Alves Redol, o “Schewik na Segunda Guerra Mundial” de Brecht, muitos autores contemporâneos traduzidos  e também  a revelação de peças portuguesas contemporâneas  como “As Fúrias” de Agustina Bessa-Luis  ou  “O Magnifico Reitor” de Diogo Freitas do Amaral (no Teatro da Trindade). Isto é, uma clara transposição da vivência e problemática da sociedade e da política portuguesa e internacional.

Raul Solnado participou, a partir de 1956/1957 (“Ar Água e Luz” de Ricardo Malheiro, “O Noivo das Caldas” de Artur Duarte, “Perdeu-se um Marido” de Henrique de Campos e “Sangue Toureiro” de Augusto Fraga), em mais de uma dúzia de filmes em Portugal e no Brasil, com destaque para “As Pupilas de Senhor Reitor” (1961) de Perdigão Queiroga, “Dom Roberto” (1962) de José Ernesto de Sousa, este premiado no Festival de Cannes, aquele premiado em Portugal, e ainda, entre outros mais, em “A Balada da Praia dos Cães” de José Fonseca e Costa a partir do romance de José Cardoso Pires.

E finalmente: teve uma intervenção em 1992 na ópera de Johann Strauss “O Morcego”, no Teatro Nacional de São Carlos.

Esta versatilidade em muito ultrapassa o registo, aliás notável em si mesmo, de ator cómico. Raul Solnado era de facto um artista global.


DUARTE IVO CRUZ


Obs: Reposição de texto publicado em 22.04.15 neste blogue.

ANTOLOGIA


    Maria Barroso e Augusto de Figueiredo em "Benilde ou a Virgem Mãe" de José Régio (in site da C.M. de Vila do Conde)


ATORES, ENCENADORES (XIX)

REFERÊNCIAS A MANOEL DE OLIVEIRA, JOSÉ RÉGIO, MARIA BARROSO
por Duarte Ivo Cruz


Fazemos aqui uma abordagem global a três nomes exponenciais da cena portuguesa – e cada um deles, a seu modo e na biografia respetiva, em muito transcendeu a abordagem específica da arte do espetáculo. Referimos Manoel de Oliveira, na sequência da publicação anterior, mas também, pelas razões que adiante se explicam, José Régio e Maria Barroso.

Como bem sabemos, cada um transcendeu em muito a expressão dramática, aliás, também cada um deles, assumindo-a num nível de qualidade excecional. Mas é o teatro e o espetáculo que aqui os relaciona – e a partir da peça “Benilde ou a Virgem Mãe”, peça escrita por José Régio em 1947, estreada no Teatro Nacional de D. Maria II em 1947-1948 com Maria Barroso na protagonista, e filmada por Manoel de Oliveira em 1975 com Maria Barroso no papel de Genoveva.

Maria Barroso termina o curso de teatro do então Conservatório Nacional em 1943 e no ano seguinte ingressa na Companhia do TMDM II dirigida, como se sabe, por Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro. Prossegue estudos na Faculdade de Letras de Lisboa, enquanto assume diversos papéis de protagonista no Nacional, com destaque para a Maria de Noronha do “Frei Luís de Sousa” em 1946. No ano seguinte estreia-se no cinema com “Aqui Portugal” de Armando Miranda: mas mais importante do que isso, nessa mesma temporada de 47-48, fará a protagonista da “Benilde” no D. Maria, com Augusto de Figueiredo no papel de Eduardo.

António Braz Teixeira assinala que «tal como o rei de “Jacob e o Anjo”, também a protagonista de “Benilde”, porque foi escolhida por Deus, só na morte serenamente aceite ou desejada (…) alcança a verdadeira liberdade redentora» (in “Teatro I” ed. INCM-2005 pág. 22). E o próprio Régio destacará esta interpretação, quase a última que Maria Barroso assume no Teatro Nacional antes de ser afastada em 1948. A crítica da época é aliás unânime em reconhecer a notável interpretação de Maria Barroso. “É o reconhecimento do seu talento. É a consagração do seu nome. É o ponto iluminado do seu palco” escreverá, meio século decorrido, Leonor Xavier, que reproduz um conjunto relevante de críticas da época. (in “Maria Barroso – Um Olhar Sobre a Vida”, ed. Difusão Cultural - 1995 pág. 98).

Maria Barroso afasta-se dos palcos. Mas em 1965, retoma a carreira em duas interpretações notáveis que marcaram o início de atividade do Teatro Villaret: “O Segredo” de Henry James e a “Antígona” de Jean Anouille, que já evocamos nesta série de artigos. 

Ora bem: em 1975 estreia em Lisboa o filme de Manoel de Oliveira precisamente denominado “Benilde ou Virgem-Mãe”. Aqui, a protagonista é Maria Antónia Mata, e Maria Barroso assume o papel de Genoveva “velha criada da casa”. O texto teatral articula-se na expressão cinematográfica: diz João Bénard da Costa que “é o cinema que invade o teatro, num jogo de alçapões e sótãos, como se sob a profundidade do primeiro se escondesse o espaço do segundo”… (in “Histórias do Cinema” ed. Europália e INCM 1991 pág. 153).

E Eduardo Prado Coelho: «Em primeiro lugar, o filme nunca pretende figurar, melhor ou pior, uma realidade, mas sim registar uma peça de teatro. Quer dizer que, com “Benilde”, Manoel de Oliveira avança sim pouco mais na sua conceção sobre a passividade do cinema. Em segundo lugar, opera-se, neste movimento de câmara, uma passagem para um espaço deliberadamente fechado, onde o exterior adquire uma força simbólica desmesurada (…). Em terceiro lugar, este espaço fechado é o espaço maldito que, na sua velha clausura, assistiu ao enlouquecimento da mãe de Benilde, ao bizarro comportamento do pai, e serve agora como explicação para o mistério que envolve o estado de Benilde”. (in “Vinte Anos de Cinema Português – 1962-1982” ed. ICLP pág. 58).

Entretanto, quero aqui frisar a expressão dramática e a qualidade do texto em si, e a sua “adaptabilidade” digamos assim, a formas de espetáculo em si mesmas distintas: o que em rigor se deve ao extraordinário talento de José Régio, que como sabemos não esteve, ao longo da vida, especialmente ligado aos meios teatrais e/ou cinematográficos… 

Maria Barroso faria pequenas intervenções em dois filmes de Manoel de Oliveira: “Amor de Perdição” (1977) e “Le Soulier de Satin” (1984).

E seja-me permitido terminar com uma citação de texto de minha autoria, a propósito da “Benilde” - peça:

“Luta Benilde pela sua verdade. E só a morte evidente mostra a verdade essencial e subjetiva das suas vozes. (…) Teatro e grande teatro é a tensão doseada e progressiva de «Benilde ou a Virgem-Mãe», o seu remate inesperado, a dúvida que sempre subsiste”… (in “História do Teatro Português”- Verbo ed. 2001, pág.296).


DUARTE IVO CRUZ


Obs: Reposição de texto publicado em 15.04.15 neste blogue.

ANTOLOGIA

  
     Manoel de Oliveira na Mostra de Cinema de Veneza, em 1991


ATORES, ENCENADORES (XVIII)
EVOCAÇÃO DE MANOEL DE OLIVEIRA
por Duarte Ivo Cruz


Faremos aqui referência a Manoel de Oliveira na sua ligação ao mundo do teatro através designadamente da sequência brilhante de filmes que realizou a partir de peças teatrais. Mas também, como ator, destacando precisamente a   marcante interpretação, no clássico “A Canção de Lisboa” (1933) de Cottinelli Telmo.

Manoel de Oliveira surge entretanto em alguns filmes de sua autoria, por vezes “aparições” perfeitamente secundárias ou ocasionais: faz lembrar um pouco, nesse aspeto, o próprio Hitchcock, na figuração instantânea que introduzia sistematicamente nos seus filmes, como uma imagem de marca ou um atestado de autoria.

Não assim, note-se, com Manoel de Oliveira, pois em dois filmes relevantes, um deles, aliás referencial da história do cinema português, desempenhou papéis, não propriamente de protagonista, mas de projeção: na já citada “Canção de Lisboa” e também em “Fátima Milagrosa” (1927) de Rino Lupo, realizador romeno que aliás seria autor, em Portugal, de êxitos meritórios do cinema mudo, como designadamente “Os Lobos”.

Felix Ribeiro considera entretanto que “Fátima Milagrosa” é um filme de pouca qualidade inclusive porque “da parte de muitos interpretes se observava um amadorismo e uma insuficiência dificilmente tolerável”… (in “Filmes, Figuras e Factos do Cinema Português” ed. Cinemateca Portuguesa 1983 pág.225). Ora, dessa deficiência não pode ser acusado Manoel de oliveira, que se limitou, neste filme, a mera figuração, aliás ilustrada no livro citado com uma fotografia.

E esse destaque é testemunho da projeção que viria a atingir Manoel de Oliveira no historial do cinema português. De tal forma que a sua outra participação como “ator profissional” já se revestiu de uma importância destacada. É como se referiu na “Canção de Lisboa” - e nem Cottinelli Telmo seria capaz de confiar a um ator “menor” um papel de relevo neste excelente filme, o primeiro   sonoro totalmente produzido e realizado em Portugal.

Basta ver o elenco: Vasco Santana, António Silva, a jovem Beatriz Costa, e, diz-nos agora Luis de Pina, “a presença jovem de Manoel de Oliveira num belo carro de desporto, já consagrado pelo prestígio de «Douro Faina Fluvial». (in “A Aventura do Cinema Português” -  Veja ed. pág. 39) E é de notar que nomes como Chianca de Garcia, José Gomes Ferreira ou Fernando Fragoso, mesmo alguns deles não referidos no genérico, estiveram ligados à produção.

É altura pois de referir que a longuíssima filmografia de Manoel de Oliveira reflete, em numerosos títulos, uma espécie de evolução da dramaturgia portuguesa, sobretudo a partir de peças, adaptações mais ou menos contemporâneas – e todas elas, contemporâneas do realizador, dada a sua extraordinária longevidade. E é notável que ao longo de dezenas de anos, teve sempre uma noção e visão evidentemente moderna, mas em cada fase, contemporânea das peças e de autores, com a exceção cronológica mas não de espetáculo, do “Acto da Primavera” (1963) representação popular a partir de um texto clássico de Francisco Vaz Guimarães (século XVI).

Mas com essa exceção – e mesmo assim, o espetáculo era na época pelo menos, realizado anualmente -, pode-se dizer que a filmografia de Manoel de Oliveira, no que se refere ao teatro, concentra-se em autores dos nossos tempos... Ora vejamos (as datas referem a produção dos filmes):

1972 - “O Passado e o Presente” de Vicente Sanches; 1974 – “Benilde ou a Virgem Mãea” de José Régio; 1981 – “Visita ou Memórias e Confissões” – diálogos de Agustina Bessa Luis e Manoel de Oliveira; 1981 – “Le Soulier de Satan” de Paul Claudel; 1986 – “O Meu Caso” de José Régio; 1987 - “Os Canibais” ópera de Alvaro Carvalhal sobre libreto de João Paes;  1994 -“A Caixa”  de Prista Monteiro; 1996- “Party” com diálogos de Agustina Bessa Luis; 1998 – “Inquietude” de Prista Monteiro; 2012- “O Gebo e a Sombra” de Raul Brandão.

É por vezes uma cinematografia difícil? Será: mas retomo aqui o comentário de um crítico francês, Jacques Parsi, no livro que dedicou a Manoel de Oliveira (“Manoel de Oliveira – Cineaste Portugais” ed. Centre Culturel Calouste Gulbenkian 2002 pág. 1612):

“Esta forma de escrever o cinema destabiliza alguns espetadores, a ausência do espetacular afasta muitos outros. A dificuldade decorre, no caso, de que é necessário limpar o olhar, desembaraça-lo dos seus reflexos condicionados. Só por aí se pode falar de dificuldade para abordar o cinema de Manoel de Oliveira. Ora paradoxalmente, as pessoas ficam muitas vezes nesta abordagem superficial, sem ver que o que é obscuro, complexo, por vezes insondável, é a vida que é mostrada”.

E no final:

“Os filmes de Oliveira só são simples ou claros na sua linguagem. Ora a simplicidade não é incompatível com o maior refinamento, é o que se chama pureza“.

No blogue acima citado, Guilherme Oliveira Martins refere-se especificamente à “relação muito curiosa e difícil com Agustina bessa-Luis. Dir-se-ia que duas grandes personalidades faziam coexistir a complementaridade e a tensão. Admiravam-se sem renunciar ao sentido crítico”.

Na morte de Manoel de Oliveira, aos 106 anos, fica esta homenagem e esta memória.


Duarte Ivo Cruz


Obs: Reposição de texto publicado em 08.04.15 neste blogue.

ANTOLOGIA

  
Centro Nacional de Cultura, 1960
Isabel Ruth, Fernando Amado, Manuela de Freitas e Glória de Matos


ATORES, ENCENADORES (XVII)
GLÓRIA DE MATOS NO TEATRO E NO CINEMA
por Duarte Ivo Cruz


Já aqui tivemos oportunidade de recordar a deslocação ao Brasil do Grupo Fernando Pessoa - GPF. As celebrações do centenário do ORPHEU, e designadamente a realização, em Lisboa na semana finda e proximamente em São Paulo, do Congresso Internacional denominado precisamente “100 Orpheu”, iniciativa de centros de estudo e investigação do CLEPUL e do LEPEM da Faculdade de Letras de Lisboa, e também da Universidade de São Paulo, além de outras entidades luso-brasileiras, justificam retomar essa evocação, recordando designadamente a atriz Glória de Matos, elemento destacado do GFP, como já aqui se referiu.

Recorde-se então que Glória de Matos iniciou sua atividade profissional na Casa da Comédia, iniciativa de Fernando Amado que viria a dirigir, no âmbito do Centro Nacional de Cultura o Grupo Fernando Pessoa, o qual em 1962, como já vimos, levaria “O Marinheiro” ao Brasil. Essa “internacionalização” de Glória de Matos foi completada, digamos assim, com uma formação na Bristol Old Vic Theatre School e posteriormente, com atividade profissional e docente no Canadá.

Glória trabalhou com Raul Solnado e ingressou na Companhia do Teatro Nacional de D. Maria II, onde se manteve, com intermitências e com colaborações diversas, a partir de 1969. Destaco então, mas é um mero exemplo, o que escrevi na época acerca da interpretação de Glória de Matos em “Quem tem Medo de Virginia Woolf”, de Edward Albee, encenação de João Vieira, no Teatro Villaret, que valeu a Glória o prémio da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, pela interpretação “espantosa na violência paroxística” numa peça que fez época pela “construção seguríssima no retratamento psicológico e veemente no acerado criticismo social”.   

Importa salientar a atividade docente de Glória de Matos, pois ao longo da carreira teve como referencial relevante a permanência no Conservatório Nacional depois Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa. Destaco essa dimensão da carreira de Gloria de Matos porque não é tão habitual em profissionais que conciliaram a atividade de espetáculo com a atividade docente.

Glória foi professora durante décadas. A título pessoal, posso também recordar que coincidimos na docência, pois, em grande parte desse longo período, fui titular, no Conservatório/ESTCL da cadeira de História da Literatura Dramática e do Espetáculo Teatral. Glória era professora na área de cadeiras de Formação de Atores, como o foi também de Expressão Oral no Mestrado da Universidade Aberta. A complementaridade no plano teórico e prático do ensino foi sempre assumida.

E interessa ainda salientar a intervenção de Glória de Matos no cinema. A colaboração com Manoel de Oliveira marca uma época na cinematografia nacional, na perspetiva da interpretação adequada à exigência específica da filmografia de Oliveira, a qual, como bem se sabe, é exigente para os atores, como aliás o é para os espectadores.

No caso de Glória, refiram-se papéis determinantes em filmes como a “Benilde ou a Virgem-Mãe” a partir da peça de Régio, “Francisca”, “Canibais”, “Vale Abraão”, “O Quinto Império”, “Espelho Mágico”, ou “Singularidades de Uma Rapariga Loura”, evocativo de Eça de Queiroz. Todos esses filmes, para lá da especificidade no plano da realização, reportam, na dimensão de enredo e diálogo, para uma exigência de qualidade que se projeta obviamente nas interpretações.


Duarte Ivo Cruz


Obs: Reposição de texto publicado em 01.04.15 neste blogue.