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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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  De 25 de setembro a 1 de outubro de 2023

 

Homenagear hoje Eça de Queiroz é reconhecer o lugar cimeiro que o autor de “Os Maias” tem na cultura da Língua Portuguesa e não apenas no Portugal europeu.

 

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DEMONSTRAÇÃO DE GRANDEZA

Quando lemos nas “Notas Contemporâneas” o artigo de Eça de Queiroz sobre “Os Grandes Homens de França”, escrito em 1892 na “Gazeta de Notícias”, encontramos um exercício de fina ironia que demonstra as qualidades do extraordinário prosador. Do que se trata não é de um juízo sobre o futuro, mas de uma crítica relativamente à procura artificial de grandes homens, como se tratasse de um jogo ou de um inventário de celebridades… Tem sentido a lição do autor de “A Ilustre Casa de Ramires”, distinguindo o reconhecimento do valor da cidadania e da contribuição para o bem comum da cultura de uma qualquer feira de vaidades. Falando de Vítor Hugo, Eça diz apenas que “a demonstração fica sujeita a dúvidas, a contestações, a protestos. Fica sobretudo incompreendida pela multidão. Vítor Hugo, pelo menos, é um grande homem – que não necessita demonstração”. Assim ocorre com os realmente melhores, que merecem o nosso reconhecimento. Uma leitura inteligente deste texto permite compreender que as sociedades têm o direito e o dever de reconhecer aqueles que se destacam e constituem exemplo para todos. E cabe a quem pensa e não abdica de ter sentido crítico afirmar, como fez Eça de Queiroz, de modo claro que o reconhecimento obriga a homenagear os melhores como exemplos e com um critério que não se confunda com um exercício ilusório sobre glórias passageiras e vãs.

Compreendamos assim o que o crítico nos quis dizer. Tem razão o reparo sobre a busca frenética de “grandes homens”. Não é disso que se trata quando afirmamos que o reconhecimento dos melhores tem de ficar demonstrado por si mesmo. Por isso, há muito considero que faz sentido o reconhecimento de Eça de Queiroz no Panteão, pelo que fez e pelo que nos legou como exemplo maior para a cultura da língua portuguesa. Haverá outros, certamente, mas importa fazer justiça e destacar este exemplo, já que uma sociedade se afirma e valoriza escolhendo quem não precisa de demonstração. A decisão de homenagear num edifício próprio e com um estatuto especial ilustres figuras portuguesas é apanágio das sociedades antigas, que aprendem a valorizar as suas raízes. Em 1836, o então ministro do Reino Passos Manuel decretou a edificação de um Panteão Nacional ainda sem local definido. O objetivo era dignificar os heróis que tornaram possível a Revolução liberal de 1820 e o início do constitucionalismo. E assim seria possível reerguer a memória coletiva de grandes referências que não poderiam perder-se no esquecimento, como, por exemplo, Luís de Camões. O Panteão Nacional destina-se, assim, a homenagear e perpetuar a memória dos portugueses que se distinguiram por “obras valorosas”, por serviços prestados ao País, pelo exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade. As honras do Panteão podem consistir na deposição, dos restos mortais dos cidadãos distinguidos ou na afixação de uma lápide alusiva à sua vida e à sua obra.

 

CONTRA QUALQUER BANALIZAÇÃO

Para impedir qualquer banalização, urge garantir o que preocupava o próprio Eça, escolhendo quem não precisa de demonstração. Em Portugal, o estatuto de Panteão Nacional está atribuído ao antigo templo de Santa Engrácia em Lisboa e ao Mosteiro Santa Cruz em Coimbra, onde se encontram os túmulos dos dois primeiros reis de Portugal - D. Afonso Henriques e D. Sancho I. No primeiro destes monumentos estão sepultadas diversas personalidades da história portuguesa: quatro Presidentes de República, Teófilo Braga, Manuel de Arriaga, Sidónio Pais e Óscar Fragoso Carmona; e ainda Almeida Garrett, João de Deus, Guerra Junqueiro, Sophia de Mello Breyner Andresen, Humberto Delgado, Aquilino Ribeiro, Amália Rodrigues e Eusébio da Silva Ferreira. Estão ainda recordados, através de “cenotáfios”, os nomes de seis figuras históricas: Nuno Álvares Pereira, Infante D. Henrique, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque e Luís de Camões. O mosteiro dos Jerónimos, que funcionou provisoriamente como Panteão, antes de Santa Engrácia estar completada, não tem hoje esse estatuto formal, ainda que tenha os túmulos de Vasco de Gama e de Luís de Camões, na nave do templo, e do historiador Alexandre Herculano, na antiga Sala do Capítulo. Em 1985 o corpo de Fernando Pessoa foi transladado para o Claustro dos Jerónimos, sendo o seu túmulo da autoria de Lagoa Henriques. Importa ainda dizer que em Lisboa, no templo de S. Vicente de Fora, encontra-se o Panteão Real da Dinastia de Bragança, de natureza diferente, onde se encontram sepultados em número significativo os membros da família que reinou após a Restauração de 1640.

Desde a antiga Grécia e depois em Roma, a palavra Panteão designava o templo onde se honravam os vários deuses com culto reconhecido. A palavra é grega e significa literalmente “todos os deuses”. Em Roma, o Panteão que chegou aos nossos dias é uma homenagem ao cônsul Marco Agripa (63-12 a.C.), que o mandou construir em 27 a.C. No ano 80, foi praticamente destruído por um incêndio. Quatro décadas depois, o imperador Adriano (76-138) ordenou a sua reconstrução. Foi o cristianismo que, em virtude da doação de um rei bizantino ao Papa Bonifácio IV no século VII, salvou o monumento da pilhagem e da destruição, adotando o orago de Santa Maria e Todos os Santos. Já no Panteão de Paris, as obras para construção foram iniciadas em 1764, sob encomenda de Luís XV, em ação de graças por ter recuperado de uma grave enfermidade. O templo apenas foi concluído em 1790, depois da Revolução tendo sido então transformado num edifício secularizado, com a função de homenagear os vultos da França que se notabilizassem. Então o Panteão passou a funcionar como lugar de homenagem reconhecida da Pátria aos melhores dos seus filhos. Também na Abadia de Westminster, em Londres, estão sepultados grandes vultos britânicos como William Shakespeare, Isaac Newton e Charles Darwin. É assim a partir duma tradição religiosa e secular que foram criados os Panteões Nacionais. Os modernos Panteões nascem, pois, de uma tradição antiga de raízes heterogéneas, desde o paganismo ao secularismo, passando pela dimensão religiosa. Trata-se, em qualquer caso, de honrar os melhores através do reconhecimento dos cidadãos. É este o espírito que hoje devemos recordar. Eça de Queiroz é uma referência fundamental nas culturas da língua portuguesa, correspondendo a sua presença entre os nossos maiores no Panteão Nacional a um ato de elementar justiça, não um mero gesto formal, mas como apresentação de um exemplo para todos. Um reconhecimento de justiça.  

 

Guilherme d'Oliveira Martins

ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA


(Ilustração de António)


E. EÇA DE QUEIROZ

 

Ficámos na paisagem etérea do Olimpo, contando com o inesperado companheirismo de umas vetustas personagens que nos enchem ainda hoje de entusiamo, e que são as divindades greco-latinas. De súbito, recorremos ao Cronoscafo. Esse mesmo, o de Mortimer, a lembrar H. G. Wells. E, num ápice chegamos a Paris, no final do século XIX. E lemos José Maria Eça de Queiroz num clássico: «Era de novo fevereiro, e um fim de tarde arrepiado e cinzento, quando eu desci os Campos Elísios em demanda do 202. Adiante de mim caminhava, levemente curvado, um homem que, desde as botas rebrilhantes até às abas recurvas do chapéu de onde fugiam anéis dum cabelo crespo, ressumava elegância e a familiaridade das coisas finas. Nas mãos, cruzadas atrás das costas, calçadas de anta branca, sustentava uma bengala grossa com castão de cristal. E só quando ele parou ao portão do 202 reconheci o nariz afilado, os fios do bigode corredios e sedosos. - Ó Jacinto! - Ó Zé Fernandes! O abraço que nos enlaçou foi tão alvoroçado que o meu chapéu rolou na lama. E ambos murmurávamos, comovidos, entrando a grade: -Há sete anos!... E, todavia, nada mudara durante esses sete anos no jardim do 202! Ainda entre as duas áleas bem areadas se arredondava uma relva, mais lisa e varrida que a lã dum tapete. No meio, o vaso coríntico esperava abril para resplandecer com tulipas e depois junho para transbordar de margaridas. E ao lado das escadas limiares, que uma vidraçaria toldava, as duas magras Deusas de pedra» …  Demos um salto imenso no tempo. Nada é mais preciso!

«- Eis a Civilização! Jacinto empurrou uma porta, penetramos numa nave cheia de majestade e sombra, onde reconheci a Biblioteca por tropeçar numa pilha monstruosa de livros novos. O meu amigo roçou de leve o dedo na parede: e uma coroa de lumes elétricos, refulgindo entre os lavores do teto, alumiou as estantes monumentais, todas de ébano. Nelas repousavam mais de trinta mil volumes, encadernados em branco, em escarlate, em negro, com retoques de ouro, hirtos na sua pompa e na sua autoridade como doutores num concílio. Não contive a minha admiração: -Ó Jacinto! Que depósito! Ele murmurou, num sorriso descorado: -Há que ler, há que ler.... (…) -Vê aí o telégrafo!... Ao pé do divã. Uma tira de papel que deve estar a correr. -E, com efeito, duma redoma de vidro posta numa coluna, e contendo um aparelho esperto e diligente, escorria para o tapete como uma tênia, a longa tira de papel com caracteres impressos, que eu, homem das serras, apanhei, maravilhado. A linha, traçada em azul, anunciava ao meu amigo Jacinto que a fragata russa Azov entrara em Marselha com avaria! (…) Depois parei em frente da estante que me preocupava, assim solitária, à maneira duma torre numa planície, com o seu alto farol. Toda uma das suas faces estava repleta de Dicionários; a outra de Manuais; a outra de Atlas; a última de Guias, e entre eles, abrindo um fólio, encontrei o Guia das ruas de Samarcanda. Que maciça torre de informação! (…) Escapei, respirando, para a Biblioteca. Que majestoso armazém dos produtos do Raciocínio e da Imaginação! Ali jaziam mais de trinta mil volumes, e todos decerto essenciais a uma cultura humana. Logo à entrada notei, em ouro numa lombada verde, o nome de Adam Smith. Era, pois, a região dos economistas». Os fantasmas que por aqui pululavam eram os mais ilustres. Platão ombreava com Hobbes. E eis que deparamos com os dois fantasmas bem conhecidos de Jacinto e Zé Fernandes…

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PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO

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XXVII. O MISTÉRIO É SÉRIO…

Deixámos a Condessa e Rytmel apaixonados. Há uma ponta de loucura nessa relação. Propositadamente Ramalho e Eça demarcam-se das soluções tradicionais quanto às heroínas de folhetim.

Luísa não faz parte do rol tradicional de quem se deixa arrastar pela força do destino. Luísa tem a sua vontade e afronta os limites. Ensaia uma fuga romântica, num iate. A solução é afastada por demasiado previsível e terrivelmente incerta. Receosa de perder o controlo da situação Luísa vive atormentada pelo ciúme. Será que o capitão a considera como um estratagema passageiro?

Num momento tremendo de vertigem e de loucura, a condessa, insegura e angustiada, para tentar ver os papéis de Rytmel, ministra ao amante uma dose de ópio, que se revela excessiva. E o capitão perde a consciência e morre inesperadamente de overdose. Luísa fica desesperada, mas pondera uma saída racional de modo a camuflar o homicídio. Conta, por isso com a ajuda dos amigos, a quem explica em pormenor por escrito a complexa história, num racional, longo e inexorável exame de consciência. É essa a estrutura fundamental do romance, desenvolvido através de uma sucessão de cartas, dos dois autores, de formações e perspetivas diferentes.

Ramalho Ortigão segue mais de perto a solução tradicional dos folhetins românticos. Eça de Queiroz, leitor de Zola e da escola realista, procura libertar-se do método. E assim deparamo-nos no mesmo texto com duas perspetivas que demonstram como a geração de 1870 (e estamos em 1870) soube assumir uma especial originalidade, libertando-se de uma perspetiva de escola. E há uma armadilha lançada ao leitor desprevenido: parte-se do exagero caricatural do género folhetinesco, procurando introduzir a novidade realista-naturalista. Não vamos discutir a eficácia ou o sucesso. Mais tarde os dois escritores considerarão que a obra ficou aquém do desejável, mas hoje podemos fazer a autópsia, percebendo as hesitações e contradições da geração, através dos dois autores mais distantes entre si. Contudo, ambos estão deslumbrados pela condessa loura e voluntariosa, que não obedece ao modelo da adúltera dos folhetins sentimentais, aproximando-se de Bovary (1856) ou de Karenina (1875-77).

Luísa torna-se um paradigma especial, que se perde nas aventuras que foram engendradas com perda evidente da coerência romanesca. Eça e Ramalho reconhecerão que o carácter folhetinesco levou a uma perda de força, originalidade e autenticidade do romance.  No entanto, sobressai a originalidade de Luísa, que é um exemplo premonitório que contrasta com a outra Luísa, a de Basílio. "Os seus olhos eram de um azul profundo como o da água do Mediterrâneo. Havia neles bastante império para poder domar o peito mais rebelde; e havia bastante meiguice e mistério, para que a alma fizesse o estranho sonho de se afogar naqueles olhos. (…) Os seus movimentos tinham aquela ondulação musical, que se imagina do nadar das sereias. De resto, simples e espirituosa".

Estamos perante a aparência romântica servida em tom severamente crítico e satírico. E a confissão de Luísa pressupõe os ecos modernos: "Eu já não sou alguém. Não existo, não tenho individualidade. Não sou uma mulher viva, com nervos, com defeitos, com pudor. Sou um caso, um acontecimento, uma espécie de exemplo. Não sou uma mulher, sou um romance". A sua lucidez autocrítica não condiz com a fragilidade de caráter, típica da lógica dos folhetins vulgares. E o epílogo aproxima-se.

 

Agostinho de Morais

 

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PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO

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XXVI. NATURALMENTE, A ESTRADA DE SINTRA…

 

No primeiro romance policial português, de 1870, conta-se o misterioso rapto perpetrado por um grupo de mascarados. Eça de Queiroz confessa em 1884 que «numa noite de verão no Passeio Público, em frente a duas chávenas de café, penetrados pela tristeza da grande cidade, que em torno de nós cabeceava de sono, deliberámos reagir sobre nós mesmos e acordar tudo aquilo a berros num romance tremendo, buzinando à Baixa das alturas do ‘Diário de Notícias’». E começaram a escrita, num romance epistolar a quatro mãos: “Certa noite, indo um médico e um escritor na caleche pela estrada de Sintra (que se iniciava onde hoje é a Estrada de Benfica e ligava a capital àquela vila) foram surpreendidos e raptados por quatro homens embuçados, que os levariam a uma casa isolada. O objetivo era confirmar o óbito de um oficial britânico, a quem fora ministrada uma dose excessiva de ópio”. A partir daí, os acontecimentos sucedem-se a um ritmo alucinante. À medida que a noite avançava os dois compreenderiam estar diante da consequência trágica de um triângulo amoroso constituído pelo morto, uma condessa portuguesa mal casada e uma bela rapariga chegada de Cuba. Tudo começara meses antes da noite fatídica durante uma estada na ilha de Malta à época parte do Império britânico. Quem é o morto e quem o matou? E porquê? Quem era a mulher com quem ele se encontrava, e quem são os mascarados que pretendem proteger a sua honra?

 

A história foi publicada no Diário de Notícias entre julho e setembro de 1870 sob a forma de cartas anónimas, e foram muitos os que se assustaram com os acontecimentos narrados. Para anunciar a história, o DN começou por anunciar: “A hora já adiantada recebemos ontem um escrito singular. É uma carta, não assinada, enviada pelo correio à redação, com o princípio de uma narração estupenda que dá ares de um crime horrível, envolto em sombras de mistério, e cercado de circunstâncias verdadeiramente extraordinárias, e que parece terem sido feitas para aguçar a curiosidade, e confundir o espírito em milhares de vagas e contraditórias conjeturas. Trata-se da sequestração noturna de um médico, de um amigo seu para assistirem a um ato gravíssimo, e, demais factos subsequentes. O interesse que esta narração desperta, a forma literária que a reveste, e o crime que parece revelar nos obrigam a não buscar resumi-la e dá-la na íntegra aos nossos leitores”. E eis a carta que antecedia a narrativa: «Senhor Redator do DN, venho pôr nas suas mãos a narração de um caso verdadeiramente extraordinário em que intervim como facultativo, pedindo-lhe que, pelo modo que eu entender mais adequado, publique a substância do que vou expor. Os sucessos a que me refiro são tão graves, cerca-os um tal mistério, envolve-os uma tal aparência de crime que a publicidade do que se passou torna-se importantíssimo como chave única para a desvendação de um drama que suponho terrível conquanto não conheça dele um só ato». Só no final é que Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão admitiram tratar-se de uma brincadeira e que eram eles os autores das cartas.

 

Luísa, apenas identificada misteriosamente pelo nome próprio e como Condessa de W., era casada com um bon vivant, conhecido, mas com pouca história. Ela era inteligente e culta, mas diferente das heroínas românticas de pacotilha. Cultivava a sua autonomia e procurava enfrentar o destino. Recebia em casa numerosos amigos, entre os quais o excêntrico Carlos Fradique Mendes, cheio do original dandismo satânico. Cosmopolita e viajada, Luísa sente tédio pela vida rotineira que leva. E o conde convence-a a fazer uma viagem, com um primo seu, e melhor amigo, à ilha de Malta (que neste folhetim surge pela segunda vez). Na escala por Gibraltar conhecem o belo capitão Rytmel, súbdito de Sua Majestade Sereníssima. A condessa e o capitão caem-se de amores e iniciam uma relação clandestina, entre Paris e Lisboa. Na capital, encontram-se amiúde numa casa arrendada. E é aí que tem lugar o acontecimento tremendo que precipitará a tragédia, como veremos no próximo capítulo e que constitui o cerne deste epílogo…

 

Agostinho de Morais

 

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OS TEATROS DAS COLÓNIAS NO INÍCIO DO SÉCULO XX

  


Fazemos hoje aqui uma evocação de teatros em funcionamento nas colónias portuguesas a partir do início do século passado. E vale a pena desde logo referir que havia na época uma tradição de espetáculo, efetuado a partir de Lisboa por companhias que se deslocavam às colonias africanas, e que dessa forma reforçavam uma certa, se bem que ténue atividade cultural.


E recuando ainda mais no tempo e na história, recorda-se o que Eça escreveu em “Os Maias”, a propósito do projeto do Conde de Gouvarinho para a criação de teatros em África. Trata-se de uma conversa com João da Ega no Teatro da Trindade:


«Ega então afirmou que o amigo Gouvarinho, com o seu interesse geográfico pela África, faria um ministro da Marinha iniciador, original, rasgado... / Toda a face do Conde reluzia, escarlate, de prazer. / - Sim, talvez... Mas eu lhe digo, meu querido Ega, nas colónias, todas as coisas belas, todas as coisas grandes estão feitas.  Libertaram-se já os escravos; deu-se-lhes já uma suficiente noção de moral cristã; organizaram-se já os serviços aduaneiros... Enfim, o melhor está feito. Em todo o caso, há ainda detalhes interessantes a terminar... Por exemplo, em Luanda... Menciono isto apenas como um pormenor, um retoque mais de progresso a dar. Em Luanda, precisava-se bem um teatro normal, como elemento civilizador!» (“Os Maias” cap. XVI).


Ora bem: temos aqui citado Sousa Bastos e o seu “Diccionário do Theatro Português” (ed. 1908), onde descreve, por vezes em muito vastas referencias, nada menos do que 2002 Teatros, em Portugal   e nas colónias.


E os das colónias eram então os seguintes: Teatro Africano, de São Tiago de Cabo Verde, com 14 camarotes, 7 frisas, 120 lugres de plateia e geral; Teatro Caridade de São Vicente de Cabo Verde; Teatro Garrett de Moçâmedes, com 30 camarotes de duas ordens, 110 lugres de plateia, 60 de geral e 40 de galeria; Teatro de Luanda, com plateia, duas ordens de camarotes e lotação de 300 lugares; e Teatro de S. Tomé, este em sucessivos edifícios adaptados...


Isto, em 1908.


Mas vale a pena citar outra vez  “Os Maias”.


Quando o Conde Gouvarinho é nomeado ministro, o João da Ega faz troça: “Lá vai o Gouvarinho batendo para o poder, a mandar representar a Dama das Camélias no sertão!” 

 

DUARTE IVO CRUZ

 

Obs: Reposição de texto publicado em 19.01.19 neste blogue.

A VIDA DOS LIVROS

De 1 a 7 de fevereiro de 2021

A decisão aprovada por unanimidade na Assembleia da República visando conceder honras de Panteão Nacional a José Maria Eça de Queiroz constitui um ato de elementar reconhecimento em relação a quem é referência indiscutível das culturas de língua portuguesa. No lugar cívico de homenagem a figuras referenciais da história portuguesa, está em causa a valorização do Panteão, de modo a melhor dignificar uma identidade nacional antiga, aberta, complexa e fecunda.

 

PANTEÃO NACIONAL
Em Portugal, o estatuto de Panteão Nacional está hoje atribuído ao antigo templo de Santa Engrácia em Lisboa, ao Mosteiro Santa Cruz em Coimbra e ao Mosteiro de Santa Maria da Vitória (Batalha), onde se encontram os túmulos dos dois primeiros reis de Portugal e dos fundadores da Dinastia de Avis. No Panteão estão sepultadas figuras nacionais marcantes e são ainda recordados, através de “cenotáfios”, os nomes de: Nuno Álvares Pereira, Infante D. Henrique, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque e Luís de Camões. O mosteiro dos Jerónimos funcionou provisoriamente como Panteão, mas não tem hoje esse estatuto formal, ainda que tenha os túmulos de Vasco de Gama e de Luís de Camões, na nave do templo, de Alexandre Herculano, na antiga Sala do Capítulo e de Fernando Pessoa. Em S. Vicente de Fora, está o Panteão da Dinastia de Bragança, onde se encontram sepultados membros da família real que reinou após a Restauração de 1640. No entanto, trata-se aqui de um Panteão familiar. Desde a antiga Grécia e depois em Roma, a palavra Panthéon designava o templo onde se honravam os deuses com culto reconhecido. A palavra é grega e significa literalmente “todos os deuses”. Em Roma, o Panteão que chegou aos nossos dias é a homenagem ao cônsul Marco Agripa (63-12 a.C.), que o mandou construir em 27 a.C. No ano 80, foi praticamente destruído por um incêndio. Quatro décadas depois, o imperador Adriano (76-138) ordenou a sua reconstrução. Foi o cristianismo que, em virtude da doação de um rei bizantino ao Papa Bonifácio IV no século VII, salvou o monumento da pilhagem e da destruição, adotando o orago de Santa Maria e Todos os Santos. No Panteão de França, em Paris, a construção como templo religioso foi iniciada em 1764, por encomenda de Luís XV, em ação de graças por ter recuperado de uma grave enfermidade. A obra apenas foi concluída em 1790, depois da Revolução tendo sido então transformado num edifício secularizado, com a função de homenagear os vultos que se notabilizassem na pátria. Também na Abadia de Westminster, em Londres, estão sepultadas grandes figuras britânicas como William Shakespeare, Isaac Newton e Charles Darwin. Foi assim a partir duma tradição ora religiosa ora secular que foram criados os Panteões Nacionais.


VENCIDOS, MAS VENCEDORES
Se há figura histórica em Portugal cuja presença no Panteão Nacional se justifica plenamente, é o autor de Os Maias e de A Ilustre Casa de Ramires, como romancista que retratou a sociedade portuguesa do final do século XIX em termos que nos permitem compreender melhor de onde vimos e quem somos. Não significa isto que a sociedade contemporânea não tenha mudado. Mudou muito, mas prevalecem elementos duradouros que nos permitem pôr em confronto o que resiste e o que se transforma. Ainda se usa a expressão vencidismo para caracterizar a geração de Eça de Queiroz – no entanto não tem sentido negativo essa expressão, uma vez que a palavra “vencidos” nasceu como uma ironia (“battus de la vie”) que o tempo não confirmou como fatalidade profética, mas sim como orientação crítica e como obrigação de uma modernização cosmopolita e europeia. Não transigir com a mediocridade e o atraso foi a marca dessa geração de 1870. E se virmos bem, Eça de Queiroz, sendo um diplomata a viver fora de Portugal, foi sempre na perspetiva de português que retratou a nossa sociedade. A marca própria está na visão citadina que sempre imprimiu à sua obra, enquanto alguém como Camilo Castelo Branco (romancista de primeira água, a merecer também as honras de Panteão) foi mais próximo do país profundo rural, apesar da sua extraordinária cultura erudita. Afinal, é uma geração que não se deu por vencida, tendo ousado diversas tentativas políticas, que pecaram tantas vezes por uma razão fora do tempo ou pela fragilidade dos meios disponíveis. Contudo, até aos nossos dias essa geração foi transversal na sua inequívoca influência, marcando (pode dizer-se) as várias famílias políticas e correntes de opinião na cultura e nas artes, dos conservadores aos modernistas. Como dirá Oliveira Martins a Ramalho Ortigão, a propósito de “As Farpas”: “V. e o Queiroz reúnem os dois modos eminentemente modernos de rir. A um o espírito francês, ao outro o humorismo alemão. Enquanto um põe fria e secamente o problema e tira dele todas as conclusões, lógicas até ao absurdo, o outro fantasia com uma ironia dolorosa e profunda”… Esse sentido crítico, esse pendor picaresco fazem parte da necessidade inconformista e da exigência de superação da indiferença. E em Os Filhos de D. João I, diz Oliveira Martins: “Ocorre, portanto, indagar qual vale mais, se vencer, ou ser vencido? Convém perguntar se num mundo incompleto e imperfeito, como tudo o que é real, a bondade, a virtude, a nobreza e esse bater de asas para o ideal, representado à imaginação dos gregos na fábula de Ícaro, não serão em verdade causas de permanente desgraça? Feira de ironia, a realidade parece condenar aqueles que ousam querer desvendar-lhe as leis, quebrando o selo terrível do mistério. Contraditório na essência íntima do seu próprio ser, o mundo esmaga quem se propõe vencê-lo, desflorando-lhe a intimidade dos segredos. Viver é ignorar”. No fundo, o desvendar desse mistério e o tentar propor soluções para os problemas pode não ter resultados imediatos, mas é suscetível de abrir caminhos futuros. Eis o que procurou a geração de Eça de Queiroz. No debate parlamentar, o deputado José Luís Carneiro lembrou que este preito de homenagem constitui também um agradecimento à família de Eça, que legou o seu património material e imaterial à Fundação sediada em Santa Cruz do Douro, em Baião, agora presidida pelo bisneto do escritor, Afonso Cabral. E recordou o papel de Manuel de Castro, neto do romancista, que presidiu à Câmara de Baião, e de D. Maria da Graça Salema de Castro, promotora de um extraordinário projeto de desenvolvimento, que constitui a afirmação do património cultural como irradiação de iniciativas que através da memória promovem a emancipação dos povos e a justiça social. E assim se concretiza a fidelidade ao pensamento de Eça de Queiroz e da sua geração – para quem o País não poderia ser condenado ao atraso e à mediocridade. E as “honras de Panteão Nacional” significam reconhecimento de um excecional contributo cultural e cívico.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

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(XXII) EÇA E A GERAÇÃO DE SETENTA

 

Esta célebre fotografia foi tirada no Palácio de Cristal na Cidade do Porto e reúne cinco amigos da geração de 1870: Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro. A imagem está ligada a um mítico almoço e à compra de um leque para oferecer a D. Emília, noiva de Eça, autografado com uma pena de cozinha, entre a pera e o queijo: “quem muito ladra, pouco aprende” (Antero), “escritor que ladra não dorme” (Oliveira Martins); “dentada de crítico, cura-se como pelo do mesmo crítico” (Ramalho), “cão lírico ladra à lua; cão filósofo abocanha o melhor osso” (Eça), “cão de letras, cachorro!” (Junqueiro). E a matilha escreveu um “envoi”: “São cinco cães sentinelas / De bronze e papel almaço; / De bronze para as canelas, / De papel para o regaço”… Esta é uma das últimas expressões felizes do tempo em que Antero pôde ser feliz na costa de Vila do Conde.

Eça de Queiroz confessa o seu “temperamento conspirador”, a sua costela socialista, a sua admiração pela Comuna, mas em “As Farpas” afirma: “Detestamos o facho tradicional, o sentimental rebate a sinos; e parece-nos que um tiro é um argumento que penetra o adversário – um tanto de mais!”… No fundo, defendia uma revolução pacífica, “preparada na região das ideias e da ciência”, influenciada por uma “opinião esclarecida”, numa palavra, uma “revolução pelo governo”. Contudo, ao longo das páginas das “Farpas”, encontramos o que designa como um “panfleto revolucionário”, que punha “a ironia e o espírito ao serviço da justiça”, enquanto causas semelhantes às dos Gracos, de Spartacus, de Moisés ou de Cristo… E, dez anos passados sobre o movimento revolucionário de Paris, nos anos oitenta, dirá: “os vencidos de então são hoje cidadãos formidáveis, armados não de uma espingarda revolucionária, mas de um legal boletim de voto, e que, em lugar de erguer barricadas nas ruas, fazem deputados socialistas nas eleições”.

Proudhon, o autor lido e venerado no Cenáculo de S. Pedro de Alcântara, entre a fumarada dos cigarros dos jovens amigos de Antero, continuará bem presente no pensamento inconformista do autor de “A Relíquia”. E não se preocupava ainda o Fradique tardio com a “miséria das classes – por sentir que nestas democracias industriais e materialistas, furiosamente empenhadas na luta pelo pão egoísta, as almas cada dia se tornam mais secas e menos capazes de piedade”? E não disse o próprio Eça, com apenas 22 anos de idade, no “Distrito de Évora” que “as revoluções não são factos que se aplaudam ou que se condenem? Havia nisso o mesmo absurdo que em aplaudir ou condenar as evoluções do Sol. São factos fatais. Têm de vir. De cada vez que vêm é sinal que o homem vai alcançar mais uma liberdade, mais um direito, mais uma felicidade”? O certo é que esta mesma preocupação (pela justiça e pela igualdade) vemo-la projetada, mais tarde, desde o conto “S. Cristóvão” à crónica “Um Inverno em Paris”, para não falar nos ecos do poderoso ensaio de Antero de Quental sobre as “Tendências gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX” que Eça glosa, aludindo ao “Bem Supremo, fim verdadeiro de toda a vida, fim divino a que tende o Universo. Em resumo, a lei moral do homem é o constante aperfeiçoamento e progressiva santidade”.

Misteriosamente, encontramos em “A Ilustre Casa de Ramires” algo que o brasileiro Álvaro Lins descobre com perspicácia: “mais do que em João da Ega, é em Gonçalo Ramires que Eça pode ser encontrado. João da Ega será uma imagem da sua mocidade, dos seus projetos, das suas ‘blagues’, do seu tipo exterior e convencional – de tudo o que ele seria se tivesse falhado. Mas em Gonçalo, a mais analisada e a mais conhecida das suas personagens, é onde Eça está. Onde estão, pelo menos, alguns dos seus sentimentos mais fortes, da sua maneira de ser, da sua posição em face da vida. E é curioso que Gonçalo, ao contrário de Fradique, sendo Portugal, sendo Eça, sendo o homem-português, permaneça ainda Gonçalo Ramires. Nem o sectarismo, nem o sentimento, nem o patriotismo, em Eça de Queiroz – nada, nem ele mesmo – perturba a criação artística”. Beatriz Berrini falará, por isso, de um “intelectual discrepante”. E nesta discrepância está o paradoxo que leva Eça (e os seus amigos) a serem considerados como “Vencidos”, quando de facto são vencedores, quer pela influência decisiva que se estende aos nossos dias, quer pela mensagem, a um tempo crítica e mobilizadora, de recusa terminante de derrotismo ou desistência, já que eles, de facto, não baixaram os braços. E a contradição de Gonçalo é claríssima, sabendo que a História, mais do que um motivo de orgulho retrospetivo torna-se demonstração de que a responsabilidade fica do lado da ação…

Para entender, basta ler Antero em “A Província” no texto “Expiação”, na sequência do Ultimatum inglês: “o nosso maior inimigo não é o inglês, somos nós mesmos. Só um falso patriotismo, falso e criminosamente vaidoso, pode afirmar o contrário. Declamar contra a Inglaterra é fácil: emendarmos os defeitos gravíssimos da nossa vida nacional será mais difícil, mas só essa desforra será honrosa, só ela salvadora. Portugal ou se reformará política, intelectual e moralmente ou deixará de existir”.

GOM

 

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A VIDA DOS LIVROS

De 17 a 23 de fevereiro de 2020

 

Homenageamos Luís Santos Ferro (1939-2020), um homem de cultura, conhecedor profundo de muitos domínios das artes e das letras, em especial sobre Eça de Queiroz, de quem era um exímio especialista no sentido mais universal do termo.

 

O LUÍS E O NOSSO QUEIROZ
O Luís Santos Ferro era uma imprescindível companhia. Com ele era um verdadeiro deleite a conversa e sobretudo o deambular no universo romanesco de Eça de Queiroz, que familiarmente designava como o “nosso Queiroz”. Nestes últimos dias já senti a necessidade incontida de lhe perguntar alguma coisa ou de lhe pedir ajuda sobre vários enigmas desse conjunto tão familiar como fascinante e heterogéneo. Infelizmente, deixou-nos inesperadamente. Estivemos a última vez juntos num inolvidável concerto na Gulbenkian, e encontrávamo-nos nas sessões mensais do Conselho Literário do Grémio. A sua formação de engenheiro tornou-o uma simbiose inesquecível entre o rigor e a liberdade de espírito. Quando recebia um livro novo de referência, apressava-se a verificar se tinha um índice onomástico, e perante a sua falta tão comum, infelizmente (contra mim falo), era absolutamente demolidor, uma vez qua a falta desse precioso auxiliar limitava drasticamente a plena utilidade da obra. Os seus amigos sabiam que a obra queiroziana não tinha para si segredos. A partir da dúvida metódica, ele próprio era sistematicamente interrogativo. Na sua perceção de privilegiado observador desejava evitar que faltasse alguma coisa, que não desejava perder. De facto, como bem sabia, quando se lê ou relê uma obra, há sempre qualquer coisa, um pormenor, uma ninharia, que não topamos no momento próprio e que se revela fundamental. Que é a literatura senão a chave para entendermos a vida e o seu sentido? Mas não era apenas José Maria Eça de Queiroz que estava em causa, era o tempo e a História, eram as artes e os valores. Por outro lado, era um extraordinário melómano, no sentido mais rico da palavra. Se dúvidas houvesse, bastaria visitar o extraordinário inventário de referências musicais na obra queiroziana, que se encontram no seu artigo integrado no Dicionário coordenado pelo Arquiteto A. Campos Matos. E aí encontramos não só é o conhecimento profundo da criação literária de Eça, mas também a ligação exata às mais difíceis referências artísticas e musicais.

 

CICERONE EXÍMIO
Tendo como cicerone o Luís Santos Ferro, a compreensão de qualquer um dos romances de Eça ou da sua obra tornava-se motivo do maior fascínio, numa descoberta para além do que é comum encontrar-se. Por exemplo, na sua apreciação, as referências musicais na obra de Eça não são um “mero elemento decorativo, acessório ou supérfluo na composição”, mas antes fatores de qualidade, reunindo “componentes atentamente doseadas e preenchendo função específica, ponderada, de efeito sabiamente calculado”. Como disse Catherine Dumas, “a música representava para ele (E.Q.) o mais alto grau de arte e expressão mais completa da espiritualidade”… Lembre-se a récita do “Fausto” de Gounod, a que assistiram em O Primo Basílio Luísa e Jorge. O romancista seguiu fielmente o que se passava em cena – numa ligação perfeita ente a encenação, a ação e a música. Mas não se trata apenas da invocação da forma, como se de um apêndice erudito se tratasse; não, o que importa é encontrar uma chave simbólica capaz de ligar o enredo narrativo e os sinais dramáticos. Na invocação da “Traviata” e de “A Dama das Camélias” de Alexandre Dumas, que lhe serve de base, a ópera e o romance surgem naturalmente associados ao destino funesto de Luísa, que se prenuncia. O mesmo se diga nas referências à “Norma” de Bellini e à “Lúcia de Lammermoor” de Donizetti, cujo tema estava nas leituras de Luísa de Walter Scott… Essas alusões não eram gratuitas ou inúteis, e Luís Santos Ferro era único na procura e descoberta desses pequenos segredos e no modo como os estudou e partilhou no extraordinário texto sobre música do Dicionário de Eça… Num encontro ocasional, poderia ser no seu antigo gabinete da Fundação Luso-Americana na Rua do Sacramento, no Grémio, na Gulbenkian ou em S. Carlos, era fácil familiarizar-nos em animada conversa com as principais personagens queirozianas, designadamente com Carlos Fradique Mendes. Os textos são inesquecíveis. “Durante três anos Carlos tocou guitarra pelo Penedo da Saudade, encharcou-se de carrascão na tasca das Camelas, publicou na Ideia sonetos ascéticos, e amou desesperadamente a filha de um ferrador de Lorvão”. E ali ficávamos a invocar as diversas encarnações Fradique, na filiação partilhada de Antero, Batalha Reis e Queiroz, mas também Afonso da Maia, Acácio, Pacheco, Dâmaso, Alencar, Cruges, Craft… Esse o prazer supremo de Luís, o puro sonho criador. Afinal, esse conhecimento fazia parte do extraordinário usufruto da imaginação e da inteligência. E vinha à baila o fado, que, contra tudo e contra todos, João da Ega defendera contra a opinião de Craft.

 

COMPASSSOS GENTIS E MELODIOSOS
E os relógios? Esses eram cantantes variados. Fradique regulava a vida metodicamente por um que fazia soar “compassos, gentis e melodiosos, de Haydn, Cimarosa ou Gluck”. Mas, rindo connosco, logo vinha à lembrança o facto de, em casa de Jorge e Luísa, ser “o cuco que marcava o tempo e enchia o silêncio”. E os pianos? Acácio e Dâmaso possuíam pianos, mas apenas decorativos e mudos. Esse facto denunciava o respetivo carácter. Amélia e Genoveva (da Tragédia da Rua das Flores) tocavam piano; no Ramalhete, havia piano, ora bem ora mal tocado consoante o tangedor. Mas, além, dos instrumentos (sempre Luís Santos Ferro a lembrá-lo) havia as comparações das personagens romanescas com figuras celebrizadas em obras musicais. João da Ega aparece comparado ao “Mefistófeles” de Gounod; Genoveva aparece associada à cançoneta “L’Amant d’Amanda”, muito em voga na época em Paris… E o namoro de Basílio e Luísa desenvolve-se e encerra-se ao som da canção de Médjé ainda de Gounod. Maria Eduarda é um caso especial. A música marca a sua aparição. E, além do mais, era uma excelente pianista. As suas interpretações de Chopin e Mendelsohn são elogiadas pelo rigoroso Cruges, e é a ária de Ofélia que a simboliza – “Pâle et blonde /Dort sous l’eau profonde”. E quando toda a tragédia se desenha, e Ega já sabe do terrível segredo: Maria nunca parecera tão bela. “Carlos era positivamente o homem mais feliz destes reinos”. Mas são as palavras finais do poema cantado que encerram o terrível augúrio: “Pour toujours adieu, mon doux ami! (…) Pour toi je meurs! Ah ah je meurs”. De facto, como insistia Luís, “na narrativa, mesmo quando de música não se trata”, esta existe no estilo da prosa e Guerra da Cal dissera já que literariamente Eça empregava sem reservas, “toda a classe de recursos de natureza musical”... O Luís Santos Ferro pôde, assim, como ninguém, ir ao âmago da narrativa de Eça de Queiroz, permitindo-nos compreender a complexa oficina criativa do extraordinário romancista. Mas neste momento é já a saudade que impera, sobretudo quando retiramos da estante qualquer das obras que tanto amava. Cada palavra, cada ideia lembra-nos tudo o que sabia e todo o prazer que sentia, e não esquecemos.    

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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OS TEATROS DAS COLÓNIAS NO INÍCIO DO SÉCULO XX

 

Fazemos hoje aqui uma evocação de teatros em funcionamento nas colónias portuguesas a partir do início do século passado. E vale a pena desde logo referir que havia na época uma tradição de espetáculo, efetuado a partir de Lisboa por companhias que se deslocavam às colonias africanas, e que dessa forma reforçavam uma certa, se bem que ténue atividade cultural.

 

E recuando ainda mais no tempo e na história, recorda-se o que Eça escreveu em “Os Maias”, a propósito do projeto do Conde de Gouvarinho para a criação de teatros em África. Trata-se de uma conversa com João da Ega no Teatro da Trindade:

 

«Ega então afirmou que o amigo Gouvarinho, com o seu interesse geográfico pela África, faria um ministro da Marinha iniciador, original, rasgado... / Toda a face do Conde reluzia, escarlate, de prazer. / - Sim, talvez... Mas eu lhe digo, meu querido Ega, nas colónias, todas as coisas belas, todas as coisas grandes estão feitas.  Libertaram-se já os escravos; deu-se-lhes já uma suficiente noção de moral cristã; organizaram-se já os serviços aduaneiros... Enfim, o melhor está feito. Em todo o caso, há ainda detalhes interessantes a terminar... Por exemplo, em Luanda... Menciono isto apenas como um pormenor, um retoque mais de progresso a dar. Em Luanda, precisava-se bem um teatro normal, como elemento civilizador!» (“Os Maias” cap. XVI).

 

 Ora bem: temos aqui citado Sousa Bastos e o seu “Diccionário do Theatro Português” (ed. 1908), onde descreve, por vezes em muito vastas referencias, nada menos do que 2002 Teatros, em Portugal   e nas colónias.

 

 E os das colónias eram então os seguintes: Teatro Africano, de São Tiago de Cabo Verde, com 14 camarotes, 7 frisas, 120 lugres de plateia e geral; Teatro Caridade de São Vicente de Cabo Verde; Teatro Garrett de Moçâmedes, com 30 camarotes de duas ordens, 110 lugres de plateia, 60 de geral e 40 de galeria; Teatro de Luanda, com plateia, duas ordens de camarotes e lotação de 300 lugares; e Teatro de S. Tomé, este em sucessivos edifícios adaptados...

 

Isto, em 1908.

 

Mas vale a pena citar outra vez  “Os Maias”.

 

Quando o Conde Gouvarinho é nomeado ministro, o João da Ega faz troça: “Lá vai o Gouvarinho batendo para o poder, a mandar representar a Dama das Camélias no sertão!” 

 

DUARTE IVO CRUZ

A VIDA DOS LIVROS

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  De 10 a 16 de dezembro de 2018

 

Os 130 anos de Os Maias merecem ser lembrados. A exposição que a Fundação Gulbenkian organiza, com o inestimável apoio da Fundação Eça de Queiroz, pretende centrar-se na importância de um livro referencial e na promoção de uma reflexão, que leve à leitura da obra, que permita um conhecimento da mesma e que promova ainda o gosto de ler, um melhor domínio da língua e o contacto com a literatura e a História viva.

 

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REFERÊNCIA BEM PRESENTE
Não se trata de um exercício retrospetivo ou passadista, mas da consideração de uma preocupação bem presente, orientada para os cidadãos de hoje. E se há bem pouco tempo se discutiu se essa obra deveria estar no elenco dos programas escolares, o certo é que o bom senso prevaleceu, com a preocupação com os hábitos de leitura e o culto das humanidades, que não podem desaparecer da ordem do dia. A iniciativa nasceu de uma conversa despretensiosa com o meu amigo Afonso Eça de Queiroz Cabral. Havia que pôr momentaneamente Tormes, Santa Cruz do Douro, em Lisboa, para que esse roteiro extraordinário pudesse tornar-se mais conhecido – e para que a ideia dos percursos literários e das viagens com livros pudesse enraizar-se nos nossos hábitos culturais. No Ano Europeu do Património Cultural, nada melhor do que lembrar um romance como este, que constitui uma verdadeira panóplia sobre quem fomos e sobre o que não devemos esquecer criticamente sobre as nossas qualidades e defeitos, virtudes e limitações. Aí estão muitos ingredientes que nos conduzem à ideia complexa de património cultural, nas suas diversas aceções. O longo tempo de feitura e de revisão que o autor dedicou à obra permite que haja um conjunto complexo e heterogéneo de elementos, que nos levam a compreender o património material e imaterial, a natureza e a paisagem, e a capacidade criadora ditada pela contemporaneidade. Alguém disse “está lá tudo”… Não sei se está, mas a verdade é que há muito do que permite compreender criticamente a nossa realidade. Fizemos um longo percurso, o apuramento do sentido crítico que Eça e a sua geração nos ensinaram teve os seus resultados, mas há muito para fazer. Daí a importância de podermos lidar com a oficina do escritor, percebendo que à mediocridade devemos saber contrapor o não deixar ao abandono o que recebemos e a aprendizagem exigente da informação que tem de se tornar conhecimento e do conhecimento que deve ser sabedoria…

 

TUDO O QUE TENHO NO SACO
Na célebre carta a Ramalho Ortigão de 20 de fevereiro de 1881, a propósito de uma hipótese confusa de publicação em folhetins de Os Maias no “Diário de Portugal”, de Lourenço Malheiro, Eça fica na esperança de poder obter uma boa retribuição monetária pelo romance – “e como via nessa proposta uma pequena fortuna (o Malheiro afiançava-mo) decidi logo fazer não só um romance, mas um romance em que pusesse tudo o que tenho no saco. A ocasião confesse era sublime para jogar uma enorme cartada”… O episódio é triste de desencontros e incompetências, atrasos tipográficos e outras incapacidades. Mas só em 1888 essa obra, considerada quase pronta sete anos antes, viu finalmente a luz do dia. O que importa dizer é que o romancista fez indiscutivelmente uma grande aposta – e é esse o resultado de que todos somos beneficiários, ao ler uma ampla representação da sociedade do momento. Em 12 de junho de 1888, em carta a Oliveira Martins, dirá: “Os Maias saíram uma coisa extensa e sobrecarregada, em dois grossos volumes! Mas há episódios bastante toleráveis. Folheia-os, porque os dois tomos são volumosos de mais para ler. Recomendo-te as cem primeiras páginas; certa ida a Sintra; as corridas; o desafio; a cena do jornal A Tarde; e sobretudo o sarau literário. Basta ler isso e já não é pouco. Indico-te, para não andares a procurar através daquele imenso maço de prosa”. Os Maias são um retrato do Portugal citadino do final do século XIX. Há um rico percurso que abrange desde um tempo de confronto entre a tradição e os ventos novos, representado pelo avô Afonso da Maia, que nos liga à sociedade antiga, até aos efeitos da acalmação e do progresso concretizado pela Regeneração. Dir-se-á, porém, que confluem a imitação das sociedades avançadas da Europa e a ausência de meios suficientes para assegurar que os melhoramentos de Fontes Pereira de Melo tornassem o país próspero e superasse o atraso. A sombra do défice e da dívida pública abatem-se sobre o país – e os ingredientes do romance trazem-nos, ao lado de uma trágica trama amorosa entre dois irmãos, que se desconhecem, o confronto entre o tédio vivido por Carlos da Maia e o pensamento de João da Ega, ditado pelas influências de um fim de século pessimista e contraditório. Há mudanças profundas que se reclamam, há intenções. Mas o pano de fundo revela futilidade, descrença, ilusão e mediocridade.

 

UM ROMANCE FIEL AO AMBIENTE VIVIDO
Indiscutivelmente, Os Maias é um romance fiel ao ambiente que se vivia quando foi publicado e escrito, o que faz crer a muitos que continuamos a persistir nessa sociedade retratada há tantos anos, numa obra longamente escrita e pensada… As diferenças na sociedade são profundas, mas há reminiscências que perduram. A escrita é cortante, clara, incisiva e tem de ser reconhecida na sua imensa riqueza. Os Maias assumem um lugar central no nosso panorama literário, pelo caráter, pela diversidade das personagens, pela força da escrita e pelo sentido crítico. Representam uma das marcas deixadas pela Geração de 1870 – graças a uma voz severa, mas não a um negativismo sem horizonte. Devemos lembrar o que Eduardo Lourenço disse em O Labirinto da Saudade: “Não é suscetível de discussão o amor (e o fervor) com que a Geração de 70 tentou desentranhar do Portugal quotidiano, mesquinho e dececionante, um outro, sob ele soterrado, à espera de irromper à luz do sol”. E sobre a crítica de Fialho de Almeida, o próprio Eça dirá em sua defesa: “condenar um escritor, como caluniador e maldizente, porque ele revela os ridículos do seu país – é declarar maldizente toda a literatura de todos os tempos, que toda ela tem tido por fim fazer a crítica dos costumes, pelo drama, a poesia, o romance e até o sermão!” (a Mariano Pina, 27.7.88). Talvez A Ilustre Casa de Ramires seja mais problematizante, mas também mais enigmático. Estamos, assim, diante de uma panóplia inesquecível, que deve ser recordada por quem queira conhecer a literatura portuguesa. Lembremos Maria Eduarda, fantasma marcante no romance, os Gouvarinhos, Cohen, Dâmaso, Alencar, Palma Cavalão… A diversidade esconde, no entanto, uma uniformidade desgostante. E a imitação é a marca. Agora, podemos contar com a presença de peças originais que vieram especialmente de Tormes, onde costumam estar expostas (como a secretária do escritor e a célebre cabaia) e que, por certo, se tornarão motivo para que o roteiro queirosiano se torne mais conhecido. É de literatura como realidade viva e atual que cuidamos, eis a razão desta escolha – de uma obra-prima da língua portuguesa de sempre.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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