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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ECONOMIA E POLÍTICA AO SERVIÇO DA VIDA

  

 

Quando se olha para a presente situação do mundo, não é difícil constatar que o que está decisivamente em crise é a razão moderna com o seu imperialismo devastador. Ao contrário do que pensam os seus profetas mais ardentes, após a crise/implosão do chamado "socialismo real", o capitalismo desenfreado, neoliberal, não constituiu de modo nenhum a solução do futuro nem é a palavra mágica, decisiva e definitiva da História. A prova está em que pretender que toda a humanidade viva segundo os padrões do mundo mais desenvolvido, tecnocrático, seria pôr fim à própria possibilidade de continuação da História. O modelo dos países do hemisfério norte, sendo necessário sublinhar que ele se implantou já noutras paragens, não pode estender-se ao mundo inteiro, isto é, não é universalizável, sob pena de pura e simplesmente não haver futuro para o planeta. E, não sendo universalizável, não é ético.


A crise ecológica, de que os pobres acabam por ser as principais vítimas e também, na luta pela sobrevivência, uma das grandes causas, coloca-nos perante a crise da nossa civilização, que pretendeu organizar a casa comum da humanidade com base na ideologia do progresso ilimitado. Urge, pois, mudar de rumo, o que implica pôr ter termo a um antropocentrismo exacerbado e reconhecer e respeitar o valor da natureza e de todos os seres do ecossistema, a começar pelo homem e pela mulher pobres e explorados. Impõe-se uma conversão sócio-ecológica, no sentido da transformação do modelo de desenvolvimento em que assentou a modernidade. Se é o presente modelo de desenvolvimento que gera simultaneamente a crise ecológica e a injustiça estrutural no mundo, então a construção da casa comum da humanidade exige uma nova consciência ética - veja-se a ligação entre ethos, que também significa habitação, toca do animal, e donde provém ética, e oikos, que significa casa, interconectando ética, economia (lei, governo da casa) e ecologia (tratado da casa, que hoje percebemos melhor ser a casa comum de todos) -, aliada a uma nova proposta político-cultural global, para uma nova ordem económico-ecológica global, no quadro de um autêntico eco-humanismo, proposto pelo Papa Francisco - diga-se entre parêntesis que, se não fosse por muitas outras magnas razões, Francisco ficaria na História por causa da sua encíclica Laudato Sí, onde aparece o conceito de “ecologia integral”, que mostra que a degradação do meio ambiente e a degradação do mundo social caminham juntas.


Hoje, tomamos consciência de que tudo e todos estamos interligados e somos interdependentes. Isto pelo menos nos deveria ter ensinado a pandemia: infectamo-nos uns aos outros e, por isso, ou nos salvamos juntos ou nos perdemos todos. Só posso estar de acordo com o filósofo Peter Sloterdijk, quando, com outros, propugna uma “Declaração de Dependência” universal, assinada por todos.  Assim, dadas as relações realmente existentes entre todos e o vínculo indissolúvel com a catástrofe ecológica, damo-nos pela primeira vez conta de que, perante a ameaça comum de que somos objecto todos, se impõe que a humanidade, se quiser ter futuro, se tem de tornar sujeito comum da responsabilidade pela vida. Ou a humanidade como todo se torna sujeito do seu futuro e da responsabilidade pela vida em geral ou pura e simplesmente não haverá futuro para ninguém. Em termos simples e cínicos: se não quisermos ser solidários uns com os outros por razões de ética e humanidade, sejamo-lo ao menos por razões de egoísmo esclarecido.


A globalização arrasta consigo inevitavelmente questões gigantescas e desperta paixões, que nem sempre permitem um debate sereno e racional. Mais uma vez, o teólogo Hans Küng procurou contribuir para esse debate, que assenta, segundo ele, em quatro teses: a globalização é: 1. “inevitável”, 2. “ambivalente (com ganhadores e perdedores), 3. “incalculável” (pode levar ao milagre económico ou ao descalabro), mas também - e isto é para mim o mais importante - “dirigível". Isto significa que precisamente a globalização económica exige uma globalização no domínio ético. Impõe-se um consenso ético mínimo quanto a valores, atitudes e critérios, um ethos mundial para uma sociedade e uma economia mundiais. É o próprio mercado global que exige um ethos global, também para salvaguardar as diferentes tradições culturais da lógica global e avassaladora de uma espécie de "metafísica do mercado" e de uma sociedade de mercado total.


Quem é que responsavelmente pode aceitar que a moral no domínio económico se identifica com o incremento insaciável do lucro? Tornou-se claro que a mão invisível do mercado que funcionaria a favor de todos os cidadãos não passa de "um mito refutado pela realidade", exactamente como a ideia de que o socialismo conduz todos os homens ao "paraíso do bem-estar", escreveu Hans Küng. Por isso, à economia de mercado tout court é preciso contrapor a economia social e ecológica de mercado.


O sentido da economia e da política só pode ser o serviço da vida. Trata-se de uma política para a vida (Vitalpolitik, segundo Peter Rüstow), que sabe que, ao contrário de uma política da concorrência, orientada só para a eficiência, tem em consideração muitos outros factores, já que que, em ordem ao bem-estar, a uma sociedade boa, a uma vida feliz, para os seres humanos, incluindo os capitalistas, não basta a economia. O homo sapiens não se identifica pura e simplesmente com o homo oeconomicus.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 11 de junho de 2022

A VIDA DOS LIVROS

  

De 23 a 29 de maio de 2022.


Em «Economia de Missão» (Temas e Debates, 2021), Mariana Mazzucato, põe a tónica na necessidade de organizar a União Europeia de modo a responder aos desafios do desenvolvimento a partir das novas necessidades da sociedade e da cultura, da ciência e da técnica.


NOVAS ASPIRAÇÕES EUROPEIAS
«Precisamos de integrar plenamente os países com aspirações europeias” – afirmou Mário Draghi, primeiro-ministro italiano no Parlamento Europeu. Em nome de um “federalismo pragmático”, o governante pôs o dedo na ferida. De facto, há muito que necessitamos de uma abertura corajosa relativamente à construção europeia. Não se trata de seguir um caminho ilusório ou de dar um salto no escuro, mas de uma exigência que permita fazer da construção europeia um corpo político que possa enfrentar a crise múltipla que vivemos, e que tende a agravar-se, nos campos humanitário, energético, económico e de segurança. Os desafios são os da paz e do estabelecimento de relações estáveis no velho continente, abrangendo os países do centro e do leste da Europa, obrigando a uma nova arquitetura que aprofunde o que está concretizado em sessenta anos e que abra novos horizontes, não apenas relativamente à Ucrânia, mas também para a Albânia e a Macedónia do Norte, ou para o Kosovo e a Bósnia-Herzegovina. Estão em causa a União Europeia, o Espaço Económico Europeu, o Conselho da Europa, a OTAN e a OSCE. E só com esta enumeração percebemos que há uma grande complexidade na definição futura das soluções que abranjam o Atlântico e o Mediterrâneo, as relações com a Federação Russa e a República Popular da China, os direitos humanos, o comércio internacional, a globalização e uma cultura de paz. Tudo obriga a garantir o cumprimento da Carta das Nações Unidas, a respeitar a soberania dos Estados soberanos no âmbito da paz e da guerra e a salvaguardar o primado da lei e do direito. De facto, não há soberania ilimitada, nem a Declaração Universal dos Direitos Humanos pode ser considerada letra morta. E Draghi foi muito claro: “As instituições fundadas pelos nossos antecessores serviram bem os cidadãos europeus nas últimas décadas, mas são desadequadas para a realidade atual”.


FEDERALISMO PRAGMÁTICO
A ideia de “federalismo pragmático” deverá, assim, incluir os processos de tomada de decisão conjuntos para os setores da economia, energia, defesa e política externa. Há que avançar para maiorias qualificadas em decisões fundamentais, já que precisamos de uma União que possa decidir em tempo útil, poupando vidas e recursos. Se a guerra iniciada pela Federação Russa contra a Ucrânia pôs à prova a unidade europeia, o certo é que há interesses vitais comuns que têm de ser salvaguardados solidariamente – no tocante às sanções, ao embargo ao petróleo russo ou ao pagamento em rublos do gás natural, em violação do princípio “pacta sunt servanda” e do cumprimento dos compromissos comerciais assumidos… “Agora é o momento para agir”, quer perante os apelos a uma decisão política, como os de Volodymir Zelensky, quer quanto à resposta à chegada de migrantes. E o mesmo se diga no domínio das incertezas económico-financeiras ditadas pelas consequências das últimas crises de recursos, sanitária e bélica. Contudo, perante a diversidade de atores e interesses e a heterogeneidade de situações, impõe-se agir em vários tabuleiros, com métodos diferenciados, que não se limitem a seguir as conveniências do curto prazo. O sinal político de solidariedade e de entendimento não pode confundir-se com um alargamento europeu frágil, precipitado e insuscetível de sucesso. E Draghi conhece bem o método adequado, lembrando as cautelas que tomou no Banco Central Europeu na crise financeira, para que não ocorresse o choque fatal entre a panela de barro e a panela de ferro. Se precisamos de regras que protejam todos, é fundamental rever o modo de funcionamento das instituições europeias e os seus objetivos, que devem ser menos ambiciosos do que agora, centrando-se na paz, na segurança, no desenvolvimento humano sustentável e na diversidade cultural. Como afirmou Jean-Paul Fitoussi, há pouco falecido: “ou a Europa muda ou os povos abandonarão a ideia”. Urge prevenir esse risco. Eis o que tem de estar bem presente na nossa mente, porque precisamos do projeto europeu, mais do que nunca. Como vimos na crise pandémica, sem cooperação seria a catástrofe. A reação à guerra da Ucrânia foi um sobressalto. Mas tal não basta. Há que distinguir os efeitos comuns de todos e o interesse de cada povo. Longe da tentação burocrática uniformizadora, impõe-se criar um verdadeiro sistema de geometria variável. Em vez da oposição entre sul e norte, entre beneficiários e “frugais”, importa deixar claro que a fragmentação europeia será fatal para todos. Tem de haver uma consciência comum que permita privilegiar equidade e eficiência, justiça e desenvolvimento humano. E as novas instituições deverão privilegiar a legitimidade democrática e o respeito dos direitos fundamentais. Daí a necessidade de representar os Estados (num Senado igualitário) e os cidadãos, proporcionalmente.   Novos membros deverão ver preservada a sua independência, com um apoio à reconstrução, semelhante ao do Plano Marshall, adaptado ao nosso tempo. O “federalismo pragmático” corresponde ao combate ao centralismo e à fragmentação, favorecendo a cidadania ativa e responsável e não uma fortaleza. Reforçar a decisão e a relevância das instituições europeias obriga a transferências equilibradas de soberania no seio da União Europeia, com menos centralismo e burocracia e mais descentralização, proximidade e participação cívica. A aceleração do processo de integração pressupõe a preservação da legitimidade dos Estados e a representação e participação dos cidadãos. Ter-se-á, assim, de pensar em alterar os Tratados, em nome da sobrevivência, mudando a unanimidade e o sistema pernicioso de vetos cruzados e avançando para as maiorias qualificadas. Talvez a pandemia e a guerra da Ucrânia tenham mudado as perceções sobre a nova realidade política. Cada Estado, só por si, não tem condições para apresentar remédios para a crise. E devemos ouvir Denis de Rougemont a dizer-nos que o Estado-nação é grande demais e pequeno demais, exigindo a subsidiariedade. Draghi insiste: “uma Europa capaz de tomar decisões no tempo certo é uma Europa mais credível perante os seus cidadãos e o mundo”. Afinal, Putin avançou contra a Ucrânia acreditando na fragilidade europeia, sobretudo depois das diatribes do Senhor Trump, alter ego do imperador russo.  Não se pense, porém, que será fácil encontrar novas soluções, ou que as respostas imediatas são suficientes. No domínio internacional e da segurança, há interesses e valores comuns que devem prevalecer, em lugar da subordinação dos países pequenos e periféricos relativamente aos mais poderosos. Como tem salientado Mariana Mazzucato (Economia de Missão, Temas e Debates, 2021): as respostas para o desenvolvimento “dependem da organização da economia, mais do que da mera quantidade de dinheiro gasto para resolver os problemas. Dependem das estruturas concretas, da capacidade e dos tipos de parceria entre os setores público e privado. Exigem também uma visão para imaginar um mundo diferente”. É de cultura que falamos. Precisamos do entusiasmo pela ação, do autogoverno baseado no valor ético da liberdade, do valor mobilizador do bem comum, da inovação baseada na experiência, do cuidado e do serviço público de qualidade, sem o que nos faltará o que Saint-Exupéry designava como a aprendizagem pela ânsia da imensidão infinita do mar.        

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

REGRAS TÉCNICAS. E AS PESSOAS?

  


Do que aqui se tem dito, facilmente se poderá entender que a perplexidade de quem pretende encarar e ajudar a resolver a "crise" decorre, por um lado, da crescente verificação de que as receitas "técnicas" que, aparentemente, poderiam trazer uma saída viável não se coadunam, nem com a capacidade das populações para aceitarem os remédios propostos, nem com a apregoada austeridade necessária: é como estar preso por ter cão e preso por não ter. Ou seja: vivemos numa cultura que refere a vida das pessoas ao desempenho do "homo economicus": todos acreditaram em que o crescimento do PIB era desenvolvimento social e humano, discordando uns dos outros apenas quanto ao modo de divisão do bolo. A planificação de uma economia centralizada deu os resultados que todos sabemos; a regulação entregue ao mercado vai-nos conduzindo ao impasse que antevemos. Promoveu-se o consumo, o crédito ao dito e o apagão de outros critérios de comportamento, na crença de que se induziria uma interminável espiral de produção e rendimento, que o bondoso e atento mercado naturalmente regularia. Hoje, destruídas as ilusões fáceis, opomos em discussão outras ilusões. Mas a evidência é que, no quadro do aberrante sistema que criámos, ou não se consome como nos ensinaram, ou não se pagam as dívidas como se pretende.

Inverteu-se a espiral. Por outro lado, a perplexidade decorre da nossa incapacidade para mudar de cultura. Ficamos agarrados ao materialismo serôdio das opções de vida que nos propuseram e abraçámos e às respetivas regras de "sucesso": o trabalhador por conta de outrem só se interroga sobre se estará a alimentar o infame capitalismo quando o seu salário não é aumentado, mas não quando foi consumindo coisas várias, sobre as quais nunca se perguntou se seriam supérfluas, ou mesmo nocivas e deseconómicas; o gestor financeiro reclama ao povo consumidor que pague as dívidas que ele incitou, sem jamais se inquietar com o valor humano do que propunha, quando apenas pensava no "valor" acrescentado para os acionistas. Até no ensino, que deveria ser educação, nos esquecemos da formação do espírito crítico, da consideração do outro, da solidariedade, da procura compreensiva das nossas raízes, do gosto do belo, do lúdico até, pela música e pelas artes e a literatura. Hoje, muito daquilo a que chamamos cultura é também objeto de consumo, e disso tudo se fala numa perspetiva economicista: discutem-se, de uma e de outra banda, subsídios e preços, já não se fala em valores. Vem a talho de foice citar a filósofa americana Martha Nussbaum, no seu "Not for Profit - why democracy needs the humanities": "No que todavia insisto (...) é nas faculdades de pensamento e imaginação que nos tornam humanos e fazem, das nossas relações, relações humanamente ricas, não meras relações de utilização e manipulação. Quando nos encontramos em sociedade, se não tivermos aprendido a olhar para nós e para os outros dessa maneira, imaginando uns nos outros faculdade íntimas de pensamento e emoção, a democracia está condenada a falhar, porque a democracia se constrói sobre o respeito e o cuidado do outro, e estes por sua vez se constroem sobre a capacidade de ver as outras pessoas como seres humanos, e não simplesmente como objetos". Daí concluir a necessidade imperiosa de dar um lugar largo - como ainda hoje é, aliás, facultado no ensino norte-americano - às humanidades nos curricula escolares tão programados para efeitos de produzir agentes do crescimento do PIB... Creio que a "crise", portuguesa ou outra, não se resolve com receitas financeiras nacionalmente aplicadas, mas apenas num quadro europeu, que deve ser um projeto novamente inspirado.

A Europa terá de ir buscar às suas raízes humanísticas a inspiração necessária a uma nova democracia. Terá de se reaprender com a sua história. A limitação dos objetivos da construção europeia à gestão do crescimento económico só nos trará frustrações, quer para as aspirações dos que pensaram aceder ao eldorado, quer - como já começamos a verificar - para os que pensavam que o seu próprio "sucesso" económico lhes garantiria o privilégio de exigir dos outros o cumprimento de deveres de subalternidade. O que é assim verdade para os estados e nações, deverá também ser entendido pelos agentes económicos enquanto classes sociais. Com a exposição crescente, até ao pormenor, da vida e da riqueza privadas - ainda por cima designadas pela publicidade, que faz "funcionar" o sistema, como "ideais" de vida para todos - o mercado das ilusões vai-se fechando em ghettos e ressentimentos. Não deixa, aliás, de ser curioso ver como o fim do coletivismo soviético é a plutocracia russa. E será talvez assustador demorarmo-nos na consideração dessa bomba de rebentamento universal que poderá ser o "capitalismo de Estado" (?) chinês. Talvez valesse a pena voltarmos ao princípio de todos os valores: a pessoa humana como medida de todas as coisas.

 

Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 05.10.12 neste blogue.

CRÓNICA DA CULTURA

OS DETERMINADORES

 

A realidade tem mostrado que em momentos de poucos anúncios publicitários, os comerciantes queixam-se de fortíssimas quedas nas vendas, o que significa que os indivíduos que fizeram menos compras, fizeram menos compras apenas por uma razão: as mesmas lhe não eram necessárias.


Na verdade, o incitamento à compra do que não faz falta é um gasto incluído como custo de produção, o que pode significar também que este crescimento económico pode ser uma forma de aumento do desperdício.


Não se entende que aumente a produção de um produto que custa vender porque as pessoas se não convencem do interesse do mesmo, e este facto, não coloca em causa que “talvez” existam mercadorias sem interesse.


Ao invés, se se produzissem com critério bens de utilidade, a fome e outras carências da humanidade tenderiam a eliminar-se.


Os economistas afirmam sempre que quanto mais se produz um bem mais barato ele se torna, o que do ponto de vista do consumo não será absolutamente substantivo se a redução dos custos for apenas para o lado da produção, e o aumento da procura não determinar a baixa do preço do bem.


Enfim, meia dúzia de reflexões leva-nos também a questionar a razão da exploração intensiva da mulher tender a não se alterar com o crescimento económico.


Todos sabemos que todos os interesses se encontram ligados por processos económicos. Todos sabemos que muitas das falsas premissas não são discerníveis com facilidade. Todos sabemos que a vida quotidiana de um povo tem a marca da economia.


Contudo, acima de tudo, ter consciência da importância da autodeterminação é ter consciência do que terceiros nos impõem, e nós a conseguirmos resistir-lhes como quem compreende que entregar as rédeas não será nunca conhecer caminho próprio.


A realidade
 mostra-nos que ao serem outros que decidem o que vamos comprar, em tudo nos identificamos com quem entra num comboio cujo destino ignora.


Mas,
 como li algures, um fabricante de armas não estará interessado em que as mesmas sejam denegridas por uma escola.


como fazer-lhe frente, como se atrever?

                                     

Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

VALE TUDO

 

Para os dias de hoje a dominação do individuo através da manipulação das suas necessidades, constitui o melhor modo de o integrar no sistema social, enquanto o seu mundo interior, a cada dia que passa, se verga ao entretenimento de outras vontades.

Sector estratégico nos planos político, económico e cultural é a comunicação que fatura dinheiro e gente para um universo do nada ou do poucochinho, e esta é a grande indústria imposta por uma minoria, única beneficiária das regras que impõe.

Em rigor, as formas veladas de pressão sobre a mente das gentes, através dos meios massivos de informação de bífida cultura, manipulam com violência ardilosa incertezas e medos e frustrações, na exata dose que levam o individuo a sentir-se permanentemente insatisfeito.

Deste modo, quanto mais dolorosamente o sujeito é confrontado com a negação do que julgava merecer e obter, quanto mais uma certa elite recear vir a perder as posições que eventualmente conquiste, sobretudo em momentos de crise ou mudança, maior é a necessidade desse mesmo sujeito ocultar a realidade, ignorar mesmo que a conhece.

O mais fácil então - e visto que a ciência não pode oferecer mais do que dúvidas- é que os indivíduos se submetam a uma panóplia de verdades absolutas, passando a vida a ser vivida numa sociedade cujas grandes energias residem na mentira.

Natural se tornou que vivam os videojogos que fazem furor se se basearem na combinação que atinge a agressividade, o culto pela indiferença, a sujidade de espírito, o desafeto, a força bruta do vale tudo.

 

Teresa Bracinha Vieira

A VIDA DOS LIVROS


De 7 a 13 de junho de 2021



Pedro Lains (1959-2021)
foi uma referência na História Económica de Portugal, tendo-nos deixado muito jovem, quando muito havia a esperar do seu labor de investigador e estudioso das relações entre Portugal e a Europa.

 

 

UM ESTUDIOSO PROMETEDOR
Foi António Barreto quem me apresentou Pedro Lains, numa sessão no Centro Nacional de Cultura, referindo ser alguém cuja obra tinha de ser seguida com muita atenção. Nunca mais deixei de acompanhar o seu percurso de historiador económico, sempre com renovado interesse, com convergência de preocupações, e sistematicamente com a estimulante curiosidade de seguir e aprofundar muitos dos seus estudos e conclusões. Há dias, quando tive a notícia do seu prematuro desaparecimento, pensei naquele encontro já distante, e conclui que o Pedro foi sempre um valor seguríssimo, em capacidade científica e pedagógica. Tive, aliás, a oportunidade de o dizer ao recensear obras, que constituem marcos da melhor historiografia contemporânea. Sabia da sua saúde, através de António Costa Pinto, um amigo comum de muitos anos e partilho plenamente o que disse quando anunciou o falecimento de quem associava a generosidade pessoal e a simpatia ao empenhamento científico, como excelente académico que sempre foi. Licenciado em Economia pela Universidade Nova de Lisboa, doutorou-se em História no Instituto Universitário Europeu, sendo investigador-coordenador do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa – prestigiando as instituições e as escolas em que se formou e onde trabalhou. Centrou a sua investigação na história económica dos séculos XIX e XX, sobretudo preocupado com o tema do crescimento económico de longo prazo em Portugal e nos países periféricos europeus, bem como na integração europeia e nos desafios atuais da economia portuguesa. Foi autor da História da Caixa Geral de Depósitos 1876-2010; de Os Progressos do Atraso – Uma Nova História Económica de Portugal; e de A Economia Portuguesa do século XIX; sendo coautor de História Económica de Portugal (com Álvaro Ferreira da Silva); e de Os Petróleos em Portugal – Do Estado à Privatização 1937-2012. Todas obras de grande importância, indispensáveis para a compreensão dos temas que tratam.


RAÍZES DO ATRASO PORTUGUÊS
Pedro Lains soube, com extraordinária mestria, aliar a análise económica quantitativa e a perspetiva comparada. Recorde-se, por exemplo, que no início da I República, Portugal partilhava com os países balcânicos a última carruagem da economia europeia, apesar de tudo com um crescimento per capita de 0,8 % ao ano. A indústria vinha crescendo, de modo mais regular e contínuo, a um ritmo duas vezes superior à agricultura, com baixa produtividade (2,3 % entre 1854 e 1911, que comparam com 0,94 %, desde a Regeneração até 1903). Isto significa que o chamado fontismo não registou um salto industrializador nos anos 70 e que os anos 90 conheceram um medíocre marcar passo. No tocante à produção agrícola alguns sinais positivos no final do século deram lugar a uma contração do início do século XX. Ao contrário de alguma voz corrente, Pedro Lains demonstrou que a crise das exportações não serve para explicar a má evolução da economia nacional, até porque foi o mercado interno que sustentou, ainda que timidamente, a indústria. As importações, numa economia dependente do exterior na indústria, foram apoiadas não pelas exportações agrícolas, mas pelas remessas dos imigrantes e pelas reexportações coloniais. Assim, o protecionismo não foi ajudado pelas exportações agrícolas, por manifesta incapacidade para promover mudanças estruturais na economia nacional, ao contrário do que se verificou no norte da Europa. Se a agricultura não evoluiu positivamente, num horizonte fechado e resistente à mudança, a indústria também ficou aquém do que seria exigível. E a explicação deste medíocre desenvolvimento não nos remete sem mais para a tese da dependência relativamente à “pérfida Albion”, centro do capitalismo, já que o setor externo registava um peso reduzido. Os limites do crescimento nacional estiveram, assim, sobretudo ligados ao mercado interno. As alternativas económicas eram parcas, sobretudo influenciadas pela ausência de uma iniciativa empresarial moderna. As explicações decadentistas carecem, assim, de fundamentação plena – obrigando, segundo a perspetiva de Pedro Lains, a uma análise mais profunda. Mais do que a dependência externa, houve a ausência de uma política reformista interna associada a um setor investidor audacioso e forte. Se olharmos a historiografia económica portuguesa, compreendemos como Pedro Lains seguiu os passos antes trilhados por Jaime Reis, aprofundando-os numa investigação persistente e muito clara a partir dos meios estatísticos disponíveis. No fundo, Portugal ter-se-á comportado de acordo com o que o seu potencial económico permitiria. Independentemente do que separa este entendimento de quantos consideraram que o nosso atraso económico se deveu a opções políticas erradas, importa perceber que a leitura da investigação de Pedro Lains revela-se muito útil para a compreensão dos fenómenos económicos como complexos, influenciados por diversos fatores contraditórios. E quando lemos os textos fundamentais da Geração de 1870 ou sobre a fixação e o transporte de António Sérgio, percebemos que há consciência de que as fragilidades ou as condicionantes internas que Pedro Lains investiga não lhes passaram despercebidas.


O ATRASO SERIA EVITÁVEL?
Poderia Portugal ter diminuído o fosso que o separava dos países desenvolvidos? Eis o ponto que merece ser revisitado criticamente. E Pedro Lains, como Jaime Reis, tem a virtude de apontar num sentido que procura articular a compreensão do potencial económico e a exigência do que designaríamos como pensamento estratégico e que nos leva à literatura económica portuguesa do século XVII ou à “Vida Nova” (1885). Portugal arrancou para a industrialização já com atraso, não contando nem com uma procura interna forte nem com um mercado interno consolidado, além da ausência de estabilidade política, de finanças públicas sãs, de crédito bancário sólido e de mão-de-obra qualificada e flexível… Eis o que não pode ser esquecido. Numa palavra, os números estudados por Pedro Lains não podem deixar de ser integrados numa reflexão global, designadamente no tocante à explicação do facto de países, à partida com condições idênticas, terem diminuído o fosso que os separava dos mais desenvolvidos. E é o próprio historiador que nos alerta para o facto de não pretender apresentar uma conclusão definitiva relativamente às causas do atraso português. Há, pois, razões compósitas que devem ser consideradas. Basta ver como a convergência da economia portuguesa com as economias do centro da Europa se degradou no século XIX até ao começo do século XX e como a evolução do endividamento público incumpriu a regra de ouro das Finanças Públicas. Numa palavra, não é possível continuar a estudar seriamente o desenvolvimento económico português sem entender esta investigação, até para evitar a mera repetição de perspetivas unilaterais. Pedro Lains ainda tinha muito para continuar a dar-nos. Era estimulante o seu entusiasmo. Urge continuá-lo!

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

COMO VOLTAR À TONA DE ÁGUA…

 

A retoma da economia depois da pandemia do covid-19 vai demorar. E vai ocorrer gradualmente, consoante as atividades económicas e os países. A prevenção contra a pandemia vai ter de continuar, até porque vai haver grandes assimetrias na superação da doença. A livre circulação das pessoas será afetada e o tema fundamental vai ser o do combate ao desemprego e o da criação de valor. Começando pelas lições de 2008, importa recusar a ilusão monetária e financeira. O endividamento e o mero aumento da circulação monetária não criam riqueza. Temos de lembrar a regra de ouro das Finanças Públicas – só pode haver dívida pública para financiar despesa de investimento reprodutiva. Não basta lançar dinheiro sobre os problemas. E se aumentam as desigualdades, importa garantir a justiça distributiva – horizontal, com salários e impostos justos que garantam uma partilha de riqueza e a criação de valor; e a vertical, pela equidade intergeracional, reduzindo o endividamento.

 

Depois da crise, a prioridade terá de estar nas políticas de emprego, orientadas para a satisfação das necessidades fundamentais, o combate ao desperdício,  a promoção de poupanças virtuosas e a melhoria da qualidade de vida, para que o desenvolvimento se oriente para as pessoas. Mas o tema do emprego obriga a repensar o tempo de trabalho. A situação atual de confinamento e de teletrabalho, e a política gradual de retoma, ensinam-nos que os horários de trabalho presencial terão de ser repensados. O grave problema demográfico dos países ricos obriga a criar políticas de conciliação familiar com horários flexíveis. As licenças de paternidade para marido e mulher e os horários flexíveis para os pais tem permitido melhorar as taxas de natalidade nos países nórdicos, sem esquecer o cuidado dos mais velhos.

 

Terão de ser considerados, assim, “bancos de tempo” com flexibilidade, em vez de uma lógica de horários rígidos. Isto, para conciliar as necessidades, a disponibilidade individual e o melhor aproveitamento das capacidades disponíveis. Os “bancos do tempo” permitirão acorrer a uma multiplicidade de tarefas sociais que têm de ser asseguradas por todos. Não devemos esquecer que a inovação vai obrigar à ligação das políticas do Estado, do mercado e das iniciativas privada, social e pública não estatal. Por iniciativa pública não estatal entendemos a das instituições sociais, culturais, académicas e científicas de utilidade pública ou natureza cooperativa. As políticas públicas têm de ser consideradas como catalisadores económicos e sociais. A inovação científica obriga a que a lógica do lucro não impeça a difusão do conhecimento. A criação de valor dependerá da articulação do Estado e da sociedade. A lógica Silicon Valley tem de ser completada com planeamento estratégico global e com redes coordenadas de informação e conhecimento.

 

Mas não haverá inovação sem aprendizagem. Daí uma atenção necessária à educação e à formação ao longo da vida. Uma parte dos “bancos do tempo” tem de ser ocupada com formação contínua relevante, afinada individualmente. Por outro lado, o ensino profissional terá de articular os níveis secundário e superior, com atenção à cooperação entre Universidades e Politécnicos. Não deve haver becos sem saída, nem canais rígidos e não comunicáveis entre si.  Prosseguimento de estudos, vida ativa, mobilidade e cooperação internacional (Erasmus) têm de se articular.

 

Numa palavra, a prioridade é a promoção de valor e de um desenvolvimento justo e sustentável. O “doce comércio” de Montesquieu tem de se completar pela subsidiariedade. Urge tornar a informação conhecimento, e o conhecimento sabedoria. Para contrariar os egoísmos, temos de favorecer a solidariedade e o cuidado. Com instituições mediadoras, participadas e representativas, atentas a uma justiça complexa e equitativa, que favoreça a coesão e a sustentabilidade, é a democracia das pessoas, pelas pessoas e para as pessoas que está em causa.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

COMO VOLTAR À TONA DE ÁGUA…

 

A retoma da economia depois da pandemia do covid-19 vai demorar. E vai ocorrer gradualmente, consoante as atividades económicas e os países. A prevenção contra a pandemia vai ter de continuar, até porque vai haver grandes assimetrias na superação da doença. A livre circulação das pessoas será afetada e o tema fundamental vai ser o do combate ao desemprego e o da criação de valor. Começando pelas lições de 2008, importa recusar a ilusão monetária e financeira. O endividamento e o mero aumento da circulação monetária não criam riqueza. Temos de lembrar a regra de ouro das Finanças Públicas – só pode haver dívida pública para financiar despesa de investimento reprodutiva. Não basta lançar dinheiro sobre os problemas. E se aumentam as desigualdades, importa garantir a justiça distributiva – horizontal, com salários e impostos justos que garantam uma partilha de riqueza e a criação de valor; e a vertical, pela equidade intergeracional, reduzindo o endividamento.

 

Depois da crise, a prioridade terá de estar nas políticas de emprego, orientadas para a satisfação das necessidades fundamentais, o combate ao desperdício, a promoção de poupanças virtuosas e a melhoria da qualidade de vida, para que o desenvolvimento se oriente para as pessoas. Mas o tema do emprego obriga a repensar o tempo de trabalho. A situação atual de confinamento e de teletrabalho, e a política gradual de retoma, ensinam-nos que os horários de trabalho presencial terão de ser repensados. O grave problema demográfico dos países ricos obriga a criar políticas de conciliação familiar com horários flexíveis. As licenças de paternidade para marido e mulher e os horários flexíveis para os pais tem permitido melhorar as taxas de natalidade nos países nórdicos, sem esquecer o cuidado dos mais velhos.

 

Terão de ser considerados, assim, “bancos de tempo” com flexibilidade, em vez de uma lógica de horários rígidos. Isto, para conciliar as necessidades, a disponibilidade individual e o melhor aproveitamento das capacidades disponíveis. Os “bancos do tempo” permitirão acorrer a uma multiplicidade de tarefas sociais que têm de ser asseguradas por todos. Não devemos esquecer que a inovação vai obrigar à ligação das políticas do Estado, do mercado e das iniciativas privada, social e pública não estatal. Por iniciativa pública não estatal entendemos a das instituições sociais, culturais, académicas e científicas de utilidade pública ou natureza cooperativa. As políticas públicas têm de ser consideradas como catalisadores económicos e sociais. A inovação científica obriga a que a lógica do lucro não impeça a difusão do conhecimento. A criação de valor dependerá da articulação do Estado e da sociedade. A lógica Silicon Valley tem de ser completada com planeamento estratégico global e com redes coordenadas de informação e conhecimento.

 

Mas não haverá inovação sem aprendizagem. Daí uma atenção necessária à educação e à formação ao longo da vida. Uma parte dos “bancos do tempo” tem de ser ocupada com formação contínua relevante, afinada individualmente. Por outro lado, o ensino profissional terá de articular os níveis secundário e superior, com atenção à cooperação entre Universidades e Politécnicos. Não deve haver becos sem saída, nem canais rígidos e não comunicáveis entre si. Prosseguimento de estudos, vida ativa, mobilidade e cooperação internacional (Erasmus) têm de se articular.

 

Numa palavra, a prioridade é a promoção de valor e de um desenvolvimento justo e sustentável. O “doce comércio” de Montesquieu tem de se completar pela subsidiariedade. Urge tornar a informação conhecimento, e o conhecimento sabedoria. Para contrariar os egoísmos, temos de favorecer a solidariedade e o cuidado. Com instituições mediadoras, participadas e representativas, atentas a uma justiça complexa e equitativa, que favoreça a coesão e a sustentabilidade, é a democracia das pessoas, pelas pessoas e para as pessoas que está em causa. 

 

Guilherme d'Oliveira Martins
in Jornal Expresso | 18 de abril de 2020

CRÓNICA DA CULTURA

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A ilusão da pós-verdade chama-se mentira. O medo do outro e do diferente só se supera com partilha de responsabilidades e melhor democracia. É de economia ciente da importância da cultura como criação que falamos.

por Guilherme d’Oliveira Martins in Jornal Público / 07 de agosto de 2019

 

E de facto ao olhar para a ponte de Mostar em 1982, o sonho que haveria um passo comum em direcção a um futuro melhor foi-me claro. E foi-me claro pela história da responsabilidade que o pluralismo da democracia a todos chamaria; e foi-me claro pelo impacto da cultura que vivi naquela viagem de meses à Jugoslávia; e foi-me claro porque não queria uma coisa abstracta situada no futuro de todos nós: uma coisa abstracta com nome de mentira.

Acreditei que todos nós chegaríamos à conclusão de que a alteridade dos outros é parte integrante da nossa humanidade. Acreditei que a cultura dos povos seria tão criativa que animada por vontades objectivas desmontaria as instituições imperfeitas, as económicas e as outras, e só o seu prenúncio impediria a compreensão incauta da globalização.

Estava longe da brutalidade com que os vários tipos de terrorismos saltariam das televisões defendendo a lucidez dos estados em pânico como realidade ancora em vontades, ou seja, em votos mesmo não expressos.

Navegar nos barcos de Klee deixou de ser política de acolhimento e defesa de um interior espírito de desafio à criatividade nas mudanças estruturais de vida. A partilha de riscos na determinação do bem-estar não se concretizou como messias à construção da prosperidade na idealização da cultura e da civilização.

E é de uma economia ciente da importância da cultura como criação que falamos, sem respostas definitivas, sem mensagens redentoras, sem eutanásias de valores.

Há que nos desviarmos de guiões que nos são sugeridos mesmo quando não pareça; há que entender os traumas do passado como base para discussão de possibilidades futuras; há que estarmos atentos à actualidade que se move à nossa volta cheia de nostalgias para que nacionalismos sejam a solução lacunar das democracias.

Não podemos dizer que precisamos de tempo pois já não há tempo para nos redimirmos das desatenções. Os pensadores receiam que nem as ciências nem as artes possam ser suficientes para seduzir as plateias de vidas que não prosperando, têm o poder dos saltos violentos como solução e pseudo sustento ideológico para justificação comportamental de si mesmas.

Por isso mesmo, neste caldeirão

é de uma economia ciente da importância da cultura como criação que falamos, sem respostas definitivas, sem mensagens redentoras, sem eutanásias de valores

sem os homicídios das guerras e a atribuição estonteada de culpas.

A distância que nos separa dos totalitarismos não nos deve deixar baixar a guarda.

Quem joga? E o que se joga? Quem é o senhor do Jogo?

Como é a noite sem estrelas?

é de uma economia ciente da importância da cultura como criação que falamos, sem nos conformarmos com a condição humana que nos coube.

 

Teresa Bracinha Vieira

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   A atual Comissária Europeia para a Concorrência, Margrethe Verstager, filiada no partido social democrata, dinamarquês e europeu, tem sido visivelmente ativa no controlo, em defesa da livre concorrência, dos comportamentos, no mercado, de empresas ou grupos mais suscetíveis de a violarem. Receia que, sendo o presente governo do seu país de confissão conservadora, não venha a ser proposta para repetir o mesmo mandato na comissão a ser designada em 2019. Um velho amigo meu, muito rodado em andanças eurocráticas, diverte-se a cognominar a Comissária Verstager de "Margarida das Multas", em memória daquelas coimas bem pesadas que, por iniciativa dela, a Comissão Europeia aplicou aos gigantes Apple e Google (esta, aliás, tendo-as sofrido já por duas vezes, por abuso de posição dominante do seu comparador de preços e do sistema de exploração móvel Android).

 

   Outra grandeza do mercado, Amazon, está hoje sob investigação por nova suspeita de abuso de posição dominante. Diz a senhora comissária que se pretende assim facilitar a outras empresas a entrada em competição no mercado europeu, muito embora, cito, as quotas de mercado se mantenham sensivelmente inalteradas. Mas penso que o consumidor tem mais escolha e que o eco sistema empresarial europeu está mais dinâmico do que há uma década.

 

   ... Não queremos interferir nos negócios das empresas. Mas se suspeitarmos de que não fazem jogo limpo no mercado europeu, agiremos. Essas plataformas têm a especial responsabilidade de não utilizarem o seu tamanho para tornar as coisas mais difíceis para os actores mais pequenos. [Fim de citação].

 

   Destas notícias e declarações retirarei, Princesa de mim, uns tópicos para nossa reflexão conjunta:

 

  1. A excessiva partidarização de qualquer show off político, em jeito de marketing, em prejuízo da propriamente dita ação política, cuja motivação e cuja crítica ou, até, maior ou menor oposição, deveriam ser orientadas exclusivamente pelo discernimento do bem comum e sua prossecução, independentemente da cor partidária dos seus protagonistas e respetivas ambições estelares.

 

  2. A verificação da possibilidade de se garantir qualquer liberdade de concorrência nos mercados, a partir do momento em que se assegura, e até se fomenta, o aparecimento de gigantes empresariais com a capacidade financeira requerida para uma posição dominante no desenvolvimento e controlo (com vocação monopolista) de tecnologias de vanguarda.

 

  3. A interrogação das possíveis contradições dos sistemas e regimes políticos e económicos em vigor. Designadamente, da fé na "liberalização" dos mercados como fator sine qua non da otimização da eficiência económica e da justiça social. Exemplo bem conhecido de muitas regiões e cidades europeias, e não só, tem vindo a ser o que, em recente editorial, Le Monde intitulou Le Tourisme au Bord de l´Overdose: Um pouco por todo o lado, os autóctones exprimem a sua saturação dessa invasão incontrolada, até porque o maná financeiro trazido pelos turistas dificilmente compensa os desgastes colaterais. Os preços do imobiliário disparam, o emprego concentra-se em ofícios sazonais e mal pagos, o meio ambiente degrada-se, as cidades transformam-se em museus, em parques de atração ou em centros de permanentes libações...

 

  4. A interpelação ética da "filosofia" ou "sabedoria" consumista que motiva e orienta o nosso funcionamento socioeconómico. Tal será, mais ou menos, repetir a pergunta que serve de título a uma obra de Zygmunt Bauman, recentemente falecido e de quem tanto te tenho falado: Does ethics have a chance in a world of consumers? (Harvard University Press, 2008). Isto é: só se ainda acreditarmos que a ética deve ter um desempenho importante na nossa vida pessoal e coletiva, só assim será possível fazermos essa pergunta. Cuja resposta quiçá nos levará a perceber o sem sentido ou absurdo das ilusões materialistas correntes. Para refletires, traduzo-te palavras luminosas de Bauman: A vida de consumo não consiste em adquirir e possuir. Nem tampouco em nos desembaraçarmos do que adquirimos antes de ontem e de que nos gabávamos ontem ainda. Não, ela consiste, antes de tudo, a estar em movimento. A maior ameaça que pesa sobre uma sociedade que faz da "satisfação do consumidor" a sua motivação e finalidade, é precisamente a do consumidor satisfeito. Não tenhamos dúvidas de que o "consumidor satisfeito" seria uma catástrofe tão grave para ele próprio como para a economia consumista. Nada mais a desejar? Nada mais a procurar? Limitados ao que possuímos (logo ao que somos)? Tal situação - breve, se tudo correr bem - só poderia receber um nome de batismo: aborrecimento.

 

   A redução do ser humano a homo consumens, ou seja, a uma função inadvertida num processo económico de sentido totalitário, não só é limitativa da liberdade, como também da própria consciência de si e dos outros. A figura marxista da alienação denunciava, numa sociedade industrializada, o furto ou transferência objetiva do valor do trabalho. A figura do consumista, na nossa sociedade pós-industrial, representa uma forma nova de alienação da pessoa humana num processo económico em que ela serve a troco de objetivos materialistas a cuja busca ela é sistematicamente induzida. E esse passo dado, de ser para ter, a vai paulatinamente encerrando num egoísmo cego, que lhe tolhe o coração aos outros e lhe reduz o respeito por si mesma à capacidade do seu poder de compra. Ou ao "glamour" de qualquer possível exibicionismo.

 

   Entretanto, talvez por efeito do Prémio Nobel de Economia que lhe foi atribuído em 2017, o economista norte-americano Richard Thaler - tem ganho uma audiência internacional que os seus colegas em ciências sociais tardavam em dar-lhe. Sendo um dos pais (com Daniel Kahnerman, Amos Tversky, George Akerlof e outros) da dita economia comportamental, que se foi afirmando nos anos 80 do século passado, Thaler publicou, em 2015, com o título de Misbehaving - The Making of Behavorial Economics, um livro que resume as experiências que foram marcando o caminho da formação da economia comportamental como ramo da ciência económica que, contrariamente ao que afirma a teoria clássica, pretende que os seres humanos não agem racionalmente em função dos seus interesses individuais, mas, sim, da conjugação de fatores psicológicos, institucionais, culturais, históricos, biológicos... Ou seja: esta escola retorna a visão económica à sua circunstância social e cultural, não se fiando apenas nos modelos matemáticos construídos. Mas não será, então, básico reconhecer aí o ser humano, com suas frustrações e aspirações e, sobretudo, com essa parte de si que é insaciável e livre, de modo a que as propostas da ciência e da política económicas sejam mais libertadoras das pessoas e dos seus caminhos espirituais - e não mais, teimosamente, ir utilizando a perceção de comportamentos, suas motivações e condicionantes, para ir "aperfeiçoando" propostas de mais refinado "marketing" escravizante?

 

   Afinal, impõe-se reconhecer o valor, ou a necessidade, da ciência económica se ir debruçando sobre outras áreas circunstantes do próprio funcionamento ou intervenção do homo economicus, entidade abstrata, de que Richard Thaler já falava assim: O problema decorre do modelo utilizado pelos economistas, modelo esse que substitui o homo sapiens por uma criatura fictícia chamada homo economicus, e que, cá por mim, prefiro chamar econo. Mas fundamentalmente necessário, mesmo indispensável, será a conversão da ciência económica em ciência humanista, de modo a que, também na política, o ser humano seja o centro - e o bem comum a finalidade - do exercício e da regulamentação económica. Já em carta anterior, Princesa de mim, eu te perguntava por quem se lembre ainda do padre Lebret, dominicano francês, e do seu movimento, e escola, o tal chamado Économie et Humanisme...

 

    Todos nós diariamente ouvimos ou lemos acerca de orçamentos, défices, impostos, competitividade das empresas, produto nacional... mas quantos se lembrarão de que o número dos nossos irmãos portugueses que se encontram em situação de pobreza efetiva representa quase um quarto de todos nós? Para que serve tanta economia científica, diplomada e politizada? Podem apontar-me a dedo como idiota ou pateta - que talvez seja - mas tenham a caridade de responder à pergunta de Deus a Caim: Que fizeste de teu irmão?

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira