Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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É sempre uma festa o reencontro com Edgar Morin, na bonita idade de 102 anos. E é oportunidade para lembrarmos os amigos comuns, que já nos deixaram, mas que estão bem presentes nas nossas memórias, num fecundo caminho em prol da liberdade – António Alçada Baptista, Helena e Alberto Vaz da Silva ou Mário Soares. Há dias, tive a honra de abrir a sessão na Fundação Oriente, durante a qual o mestre encantou uma plateia fascinada pelo seu brilhantismo e oportunidade. Lembrei os sete pilares que propõe para a educação contemporânea, e ainda há pouco subscreveu com Elisabeth Badinter, Tahar Ben Jelloun e Pierre Nora um grito de alerta sobre a falta de qualidade da escola, afirmando que saber escrever não se reduz a alinhar frases, mas a dar sentido ao que escrevemos. De um modo singularmente acessível, falou-nos da complexidade, usando ideias claras e distintas – em nome das cabeças bem feitas de Montaigne. Há pouco, publicou De Guerre en Guerre – de 1940 à l’Ukranie (Aube, 2023) e compreendemos que “navegamos num imenso oceano de incertezas, onde existem apenas pequenas ilhas para nos irmos reabastecendo”. A sua vida, desde as origens sefarditas, é o percurso de um intelectual comprometido com a liberdade e a dignidade humana, ao lado de Alain Touraine e de Paul Ricoeur (como salientou Teresa de Sousa). Presenciou conflitos e guerras, tomou posição, denunciou a degradação ambiental, como exigência humana, antes de se tornar moda. Lembrou-nos o relatório do Clube de Roma (1972) sobre “Os Limites do Conhecimento”, salientando a tendência para o rápido esgotamento dos recursos naturais e a lentidão na tomada de medidas. Agora, falou-nos de uma nova carta do humanismo, a propósito da experiência dos países de língua portuguesa e do Atlântico Sul. E pôs a tónica no risco do que designou como trans-humanismo, que leva a sociedade a pensar-se imortal, perante os avanços científicos e técnicos, idolatrando a inteligência artificial, em lugar de a pôr ao serviço das pessoas e da natureza. A sociedade ilusória, baseada numa elite do dinheiro e do poder, esquece os milhões de seres humanos que vivem na pobreza e na precariedade. “O humanismo significa o respeito e a consideração que qualquer ser humano merece. E temos de reconhecer a humanidade na sua unidade e na imensa diversidade”. Vivemos, na nossa aventura coletiva, diversas crises: ambiental, económica, democrática e da mundialização. As democracias têm perdido força. Um país como a China dispõe de meios tecnológicos que controlam os indivíduos e a sua vida, mercê das tecnologias de informação e comunicação e do reconhecimento facial, numa lógica de submissão neototalitária. Países como a Rússia, em parte a Turquia e na América do Sul cultivam o despotismo com fachada democrática. A mundialização, sobretudo económica, levou ao surgimento do racismo, da intolerância, do medo das diferenças e dos novos nacionalismos – até ao que acontece na Ucrânia – o que não tem permitido tornar uma comunidade de destino em fator de solidariedade. “Esta guerra comporta perigos enormes, para além dos massacres em todos os campos e do risco da destruição de recursos alimentares e agrícolas”. Há uma escalada que pode degenerar num novo tipo de conflito mundial, para o qual poderemos a estar a ser arrastados. Se ninguém previu o início da guerra em 1914, bem com a invasão da Ucrânia ou a pandemia, isso significa que temos de saber esperar o inesperado e preparar-nos para tal. Edgar Morin afirma que temos de saber escolher entre a barbárie e a solidariedade, compreendendo o diálogo entre “polemos”, o debate de ideias, “eros”, a importância do amor, e “tanatos”, a consciência da morte. Temendo o risco da regressão, o pensador acredita nas ideias e na esperança que representam. E esperar o inesperado é acreditar na prevalência da dignidade humana como fator de paz.
Ontem, dia 4 de setembro, Edgar Morinapresentou, com extraordinária vitalidade, apesar dos seus 102 anos, na Fundação Oriente, as suas ideias para o momento presente.
A crise que vivemos resulta da tensão entre “polemos”, o debate entre ideias diferentes, “eros”, enquanto força do amor, e “tanatos” a ameaça da morte. A complexidade obriga-nos a entender um novo humanismo – refletido a partir da diversidade das culturas lusófonas.
A liberdade, a igualdade e a fraternidade têm de ser consideradas na ordem do dia. Tal obriga também a uma ecologia ativa, que não se deixe dominar por um transumanismo quantitativista, no qual a tecnologia prevalece sobre o conhecimento e sobre uma atitude centrada na pessoa humana, na dignidade e no respeito mútuo. A crise planetária, com que lidamos mal, resulta da inexistência de autênticos dispositivos de regulação. A crise global não se resume, assim, a um acidente provocado pela hipertrofia do crédito, a qual não se deve apenas ao problema de uma população empobrecida pelo encarecimento dos bens e serviços, obrigada a manter o nível de vida pelo endividamento.
Edgar Morin aponta o dedo à especulação do capitalismo financeiro nos mercados internacionais (do petróleo, dos minerais e dos cereais) e ao facto de o sistema financeiro mundial se ter tornado um barco à deriva, desligado da realidade produtiva. Patrick Artus e Marie-Paule Virard, no seu livro intitulado «Globalisation: le pire est à venir» (La Découverte, 2008): «O pior ainda está para vir, em resultado da conjugação de cinco características maiores da globalização: uma máquina inigualitária que mina os tecidos sociais e atiça as tensões protecionistas; um caldeirão que queima os recursos raros, encoraja as políticas de concentração e acelera o reaquecimento do planeta; uma máquina que inunda o mundo de liquidez e que encoraja a irresponsabilidade bancária; um casino onde se exprimem todos os excessos do capitalismo financeiro; uma centrifugadora que pode fazer explodir a Europa».
Em suma, as desigualdades que eram consideradas despiciendas afetaram gravemente a eficiência e a equidade, através da fragilização do capital social. A lógica de casino agravou os efeitos de um ciclo especulativo de consequências muito nefastas. Os egoísmos nacionais somaram-se, ainda por cima, a uma falsa consciência ecológica, incapaz de considerar o essencial, cedendo aos grupos de pressão e a perversos interesses.
A crise é, assim, multifacetada: é ecológica, pela degradação da biosfera; é demográfica, pela confluência da explosão populacional nos países pobres e da redução nos países ricos, com desenvolvimento de fluxos migratórios gerados pela miséria; é urbana, pelo desenvolvimento de megapolis poluídas e poluentes, com ghettos de ricos ao lado de ghettos de pobres; é da agricultura, pela desertificação rural, concentração urbana e desenvolvimento das monoculturas industrializadas; é ainda crise da política, pela incapacidade de pensar e de afrontar a novidade, perante a crescente complexidade dos problemas; é ainda das religiões, pelo recuo da laicidade, pelo emergir de contradições que as impedem de assumir os seus princípios de fraternidade universal. Numa palavra, «o humanismo universalista – afirma Morin - decompõe-se em benefício das identidades nacionais e religiosas, quando ainda não se tornou um humanismo planetário, respeitando o elo indissolúvel entre a unidade e a diversidade humanas».
A ideia fixa do crescimento contínuo e interminável não pode continuar. A evolução das ciências sociais e humanas obriga a entendermos a atual crise como uma via de repensamento – não apenas das circunstâncias económicas e financeiras, mas também das implicações sociais e axiológicas. A persistência nos erros que conduziram à atual situação levará a que os males das ilusões e das aparências se somem à incapacidade de perceber que os recursos escassos e que o meio ambiente estão a ser destruídos irreversivelmente. Tudo tem, afinal, a ver com o facto de o ganho a todo o custo ter substituído na ciência económica a consideração de que é a pessoa humana e a sua dignidade que têm de estar no centro da satisfação das necessidades, já que o que tem mais valor ser o que não tem preço… Temos de ver a sociedade na pessoa e a pessoa na sociedade. As democracias fraquejam, porque subalternizam essa perspetiva humanista, em que a participação e a inclusão de todos se deve ligar estreitamente a um desenvolvimento humano centrado na cidadania ativa.
A incerteza e a diversidade exigem que compreendamos as metamorfoses que correspondem à nossa vida, num diálogo fecundo com a natureza, centrado não da ideia de domínio, mas na autonomia e na solidariedade, na compreensão, na inclusão e no respeito mútuo.
Alain Touraine (1925-2023), recentemente desaparecido, é uma das grandes referências da Sociologia contemporânea.
UM SOCIÓLOGO-INTÉRPRETE Edgar Morin ao recordar o seu amigo Alain Touraine, de tantos combates comuns e de uma persistente partilha de valores, afirmou que uma das inovações mais importante que o sociólogo propôs teve a ver com a descoberta de que os movimentos objetivos da sociedade comportam para os seus atores uma forte e intensa subjetividade e que este reconhecimento do papel das pessoas é absolutamente capital. De facto, a originalidade e atualidade, do seu trabalho e da sua reflexão sobre os movimentos sociais centraram-se na compreensão de tudo o que tende a mover-se e a transformar a sociedade, considerando a subjetividade de toda a conduta humana. Daí a ligação entre liberdade, autonomia e complexidade que torna único o contributo de Touraine para a sociologia contemporânea. Como recordou Nuno Severiano Teixeira, Alain Touraine foi um sociólogo-intérprete preocupado nos tempos que correm com a grave crise de sentido nas nossas sociedades de capitalismo especulativo e incontrolável. O vazio de valores conduz à indiferença e ao puro relativismo ético que subalternizam a dimensão humana e põem em causa a democracia e o Estado de Direito. A democracia deve ser mais que um sistema de organização das sociedades, um sistema de valores – não pondo em causa o princípio fundamental consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de que todos nascem e devem viver livres e iguais em dignidade e direitos. Quando se desvanece o elo de legitimidade entre o Estado, a sociedade e a economia, pela fragilidade dos direitos, liberdades e garantias da pessoa humana, abrem-se os perigos do imediatismo, da demagogia e da tirania dos meios sobre os fins. E quando Alain Touraine falava de socialismo liberal, na senda de Carlo Rosselli e Norberto Bobbio, não se limitava a formular uma nova resposta ideológica, mas a considerar que a liberdade, a igualdade, a solidariedade, a coesão social e a confiança deveriam fortalecer-se, articular-se e completar-se. Hoje, perante a emergência climática, a defesa da biodiversidade e os desafios tecnológicos, essa ligação torna-se uma questão de sobrevivência. Daí a necessidade de haver instituições representativas de mediação, capazes de assegurar a cidadania ativa e a sustentabilidade global e complexa, integrando os aspetos sociais, económicos e financeiros e essencialmente culturais. Se temos assistido ao recuo nas experiências democráticas com a emergência de movimentos populistas e das supostas democracias iliberais, a verdade é que tal tendência tem-se devido à incompreensão da importância da legitimidade do exercício e da prestação de contas e à subalternização da procura de soluções estáveis centradas em consensos duradouros, não dependentes do eleitoralismo e da superficialidade. O planeamento estratégico torna-se, por isso, essencial, bem como a prestação de contas e a avaliação de resultados de forma objetiva e periódica.
ESPERANÇA DA HUMANIDADE Para Alain Touraine, como para Edgar Morin, haverá, assim, que preservar a esperança na humanidade, privilegiando a noção de metamorfose, capaz de salvaguardar a liberdade, a responsabilidade e a criatividade da ação social e humana, baseadas num humanismo universalista e no respeito da dignidade humana. Mais do que preocupado com o que se mantém na vida social, Alain Touraine foi mestre da sociologia da ação. O fundamental seria compreender não a transformação como um fim em si, mas a mudança como fator de aperfeiçoamento e de compreensão. Não por acaso, o pensador afirmava que pertencia às últimas gerações educadas pela literatura e na sua adolescência o paradigma da atitude política estava em “L’Espoir” de André Malraux. Nos anos 50, o contacto de Touraine com a sociologia americana de Talcott Parsons e com a mentalidade do pós-guerra foi um choque. O jovem investigador preocupava-se com os problemas sociais e recebia influências contraditórias, que lhe permitiam compreender a complexidade, desde Ernest Labrousse e George Friedmann. O maquinismo industrial e o produtivismo levam-no a refletir sobre a raiz dos novos conflitos sociais. A experiência da produção automóvel na Fábrica Renault motiva uma reflexão aprofundada sobre uma nova sociologia, convergindo com Raymond Aron e lembrando-se de Georges Gurvitch e das suas lições. Havia que desenvolver uma disciplina científica aplicada aos movimentos sociais, à ação e à regulação dos conflitos reais. Haveria que adotar uma atitude sociológica em rutura crítica com as categorias de ordem social, as ideologias e as pressões dos poderes – a fim de se descobrir como as sociedades se constituem e se transformam.
SOCIEDADE PÓS-INDUSTRIAL A “sociedade pós-industrial” tinha de ser entendida, porque a chegada desse novo tipo de organização baseava-se na aparição de um novo modo de conhecimento e de uma nova representação da natureza, exigindo-se maior capacidade reflexiva e uma orientação de sentido visando compreender a criação de riqueza e a representação dessa criatividade. O tema do reconhecimento dos direitos e das questões de identidade torna-se, assim, fundamental – e a “Sociologia da ação” procura encontrar uma chave explicativa para os novos movimentos sociais – desde o exemplo de maio de 1968 às movimentações contra a energia nuclear. No campo internacional, os acontecimentos do Chile que culminam na chegada ao poder de Pinochet e as reivindicações democráticas na Polónia constituem para o sociólogo exemplos a exigir uma atenta compreensão do que surge de novo, até pelos seus efeitos contraditórios. O fundamental não seria o surgimento de movimentos circunstanciais, mas o desenvolvimento de projetos de mudança da sociedade. O movimento feminista tornou-se, assim, um paradigma das novas realidades, com uma orientação moderna e inventiva. E torna-se essencial conhecer o modo como as sociedades se representam a si mesmas e com que prioridades. Assim o tema da democracia e a exigência do seu enraizamento, em lugar da indiferença, obrigam ao combate político, cultural e ético na procura do “direito de ter direitos” (na expressão de Hannah Arendt) – até porque esses mesmos direitos estão acima das leis. E ao pôr a tónica em tais temas, Alain Touraine apercebe-se cedo da crise das democracias e da emergência dos populismos, pondo a tónica no Estado de direito e nas suas instituições mediadoras, segundo o primado dos direitos humanos e de uma ética de responsabilidade.
Vivemos uma paz armada com os nossos corpos instalados na paz e os nossos espíritos situados entre bombas e escombros. Atacamos um inimigo com palavras, e ele ataca-nos com ameaças, mas dormimos na nossa cama e não num abrigo. E, no entanto, participamos na verdadeira guerra, sem que tenhamos entrado, mas fazendo entrar nela armas e munições.
A guerra da Ucrânia internacionalizou-se progressivamente. À ajuda humanitária e depois alimentar às populações ucranianas vítimas da agressão russa, sucedeu a ajuda militar em armas, primeiro defensivas e depois contraofensivas, cuja qualidade e quantidade crescem principalmente com o contributo massivo dos Estados Unidos, acompanhados pela maior parte dos países da União Europeia.
A estratégia do exército russo é implacável. É filha do método de Jukov, da Segunda Guerra Mundial, com formidáveis bombardeamentos de artilharia, não só contra as tropas inimigas, mas também contra as cidades a tomar, com destruição completa pela artilharia pesada da capital do Reich, Berlim. Como acontece com qualquer exército vencedor, mas mais terrivelmente no caso do avanço soviético na Alemanha, as mortes e as violações multiplicaram-se. Soubemo-lo então, mas fomos impedidos de os denunciar, explicando-os como vingança dos enormes sofrimentos e mortes infligidos pela Alemanha nazi às populações soviéticas.
No tocante à Ucrânia, o povo senão irmão pelo menos parente próximo do povo russo, podemos perguntar-nos se as mortes e violações são devidas à desordem de algumas tropas, ao furor da derrota ou a uma vontade de aterrorizar.
Não sabemos ainda se a intenção primeira da agressão de Putin foi a de fazer cair toda a Ucrânia como um fruto maduro, decapitando-a desde os primeiros assaltos. Parece que a ambição atual sob o efeito da resistência ucraniana seja conquistar duradouramente as regiões maioritariamente russófonas do Donbass e o litoral do mar de Azov.
No momento em que escrevo (maio de 2022), a luta é intensa e incerta: a ofensiva russa é muito poderosa mas o exército ucraniano, no decurso da guerra desde 2014 contra os separatistas russófilos estabeleceu fortificações em profundidade e escalonadas, que travam consideravelmente os avanços russos ainda pouco decisivos.
O que parece provável daqui em diante, salvo um golpe de Estado no Kremlin, um golpe militar fatal ou ainda um golpe de teatro diplomático (cessar fogo, compromisso de paz), é que a guerra deve durar e intensificar-se com o contributo cada vez mais abundante de armas ocidentais e retaliações cada vez mais amplas da Rússia.
O carácter internacional da guerra da Ucrânia vai crescendo. É certo que o campo ocidental guiado pelos Estados Unidos declara não fazer guerra à Rússia. Mas a intervenção militar de apoio à Ucrânia é uma guerra indireta a que se junta uma guerra económica acrescentada pelo crescimento das sanções.
Estamos em plena escalada, sustentada por novos bombardeamentos, por novas acusações mútuas, por novas vagas de criminalização recíproca. A guerra indireta em que se tornou a guerra da Ucrânia pode a todo o momento alargar-se com bombardeamentos não acidentais em território russo ou europeu.
Nesse ponto Putin retomou o seu anúncio de uma resposta «rápida e avassaladora» se um certo limiar não precisado de hostilidade ou ingerência puder ameaçar a Rússia, criando condições para o uso de uma arma decisiva, desconhecida de todos os outros países, de que a Rússia seja a única possuidora.
Esta ameaça não é levada a sério pelos Estados Unidos e seus aliados, em virtude de um argumento racional, bem conhecido depois da guerra fria. Se a Rússia nos quer menorizar, a resposta imediata menorizá-la-ia. Este argumento racional não considera um possível carácter acidental e a possível irracionalidade. O possível carácter acidental seria o lançamento involuntário de um engenho nuclear sobre o inimigo potencial, o que deflagraria uma resposta nuclear imediata. A possível irracionalidade é a de um ditador cheio de raiva ou perturbado pelo delírio.
De todo o modo, é atualmente provável (sabendo-se que o improvável pode acontecer) que de derrapagem em derrapagem a guerra se alargue nos territórios europeus e se amplifique pelos misseis intercontinentais nos territórios russo e americano sem sequer poupar a Europa. Uma terceira guerra mundial, dum tipo novo, com utilização de armas nucleares táticas de alcance limitado, drones, ciberguerra com destruição de sistemas de comunicação que asseguram a vida das sociedades, seria a concretização lógica da ampliação da atual guerra internacionalizada.
Juntemos uma verificação importante: a guerra introduz nos países em conflito controlos, vigilâncias, eliminação de todas as opiniões diferentes da linha oficial e o desenvolvimento de propaganda de justificação permanente dos seus atos e de criminalização ontológica do inimigo. A Rússia de Putin era já um Estado autoritário às ordens de um ditador. A guerra agravou o controlo e a repressão, atingindo aqueles que não só se opunham à agressão, mas também àqueles que duvidavam dos seus fundamentos. Na Ucrânia a caça aos espiões e terroristas suscitou um controlo das populações, os excessos cometidos por algumas das suas tropas ou grupos são ocultados e, denunciando os desvios reais, a propaganda desenvolve-se contra um inimigo totalmente criminalizado. Em França, embora não beligerante e ainda com o conforto último da paz, só temos acesso às considerações mais enganadoras da Rússia de Putin e às imagens de destruição que esta causa.
Estamos na escalada da desumanidade e da destruição da humanidade, na escalada do simplismo e da destruição da complexidade. Mas, sobretudo, a escalada para a guerra mundializada significa o arrastamento da humanidade para o abismo. Poderemos escapar a esta lógica infernal?
A única possibilidade seria uma paz de compromisso que instaurasse e garantisse uma neutralidade na Ucrânia. O estatuto das regiões russófonas do Donbass poderia ser tratado por referendo. A Crimeia, região tártara em parte russificada, mereceria também um regime especial. Em suma, as condições de um compromisso, tão difícil de estabelecer, são claras. Mas a radicalização e a ampliação da guerra levam a recuar nas possibilidades positivas de modo indefinido. A situação geopolítica da Ucrânia e a sua riqueza económica em trigo, aço, carvão, metais raros atraem os grandes predadores, que são as duas superpotências. A inclinação da Ucrânia para ocidente, depois de Maidan, suscitou a agressão russa, e a agressão russa suscitou não apenas o apoio a uma nação vítima de invasão, mas a vontade de a integrar no mundo ocidental, o que correspondia de resto ao voto maioritário dos ucranianos.
A Ucrânia é mártir não somente da Rússia, mas do agravamento das relações conflituais entre os Estados Unidos e a Rússia e do alargamento da OTAN, ele mesmo inseparável das inquietudes suscitadas pela guerra russa na Chechénia e da sua intervenção militar na Geórgia.
O objetivo da Ucrânia não é apenas libertar-se da invasão russa, mas também libertar-se do antagonismo entre a Rússia e os Estados Unidos. Esta dupla libertação permitiria às nações da União Europeia libertarem-se igualmente desse conflito e procurarem ligar segurança e autonomia.
As sanções contra a Rússia, atingindo duramente não apenas o regime de Putin, mas também o povo russo, não se sabe até que ponto atingem igualmente os sancionadores, virando-se contra eles: não é apenas o seu abastecimento em energias e em alimentação que é ameaçado, é, sem dúvida, com a inflação aumentada e as restrições anunciadas, a sua economia e toda a sua vida social. Uma crise económica é sempre ela mesma geradora de regressões autoritárias e de instalação duradoura de sociedades submetidas.
A Rússia de Putin é um abominável regime autoritário. Mas não é semelhante à Alemanha de Hitler; o seu hegemonismo pan-eslavo não é, como foi o hitleriano, a vontade de colonizar a Europa e de escravizar povos racialmente inferiores. Toda a hitlerização de Putin é excessiva.
Estamos num mundo dominado pelos antagonismos entre superpotências e entregue aos delírios religiosos, étnicos, nacionalistas e racistas. Por muito repugnantes que sejam as superpotências a títulos diversos o apaziguamento dos seus conflitos é uma condição sine qua non para evitar desastres generalizados. Devemos aspirar a um compromisso. A humanidade não seria salva, mas ganharia uma trégua e talvez uma esperança.
(Direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização do autor) Foi publicado em “Ouest-France” em 18/03/2022
Edgar Morin, o pensador da complexidade, que fez 100 anos em Julho de 2021, continua a ser um dos filósofos e sociólogos mais atentos e merecedores de atenção. Acabou de publicar um novo livro, reflectindo sobre o mundo actual - Réveillons-nous (Despertemos). Sobre ele deu uma entrevista a Jules de Kiss, publicada em Março deste ano em “Franceinfo”. As reflexões que se seguem acompanham a entrevista.
A primeira é um apelo à urgência de pensar séria e profundamente sobre o que está a contecer. Com Réveillons-nous, Edgar Morin não quer simplesmente fazer eco, doze anos depois, ao livro de Stéphane Hessel, Indignez-vous (Indignai-vos): “Hessel dizia: Indignai-vos. Ele dirigia-se a pessoas já despertas. Eu, eu tenho a impressão de que vivenciamos os acontecimentos um pouco como sonâmbulos. Aliás, o que eu vivi, na minha juventude, nos dez anos que precederam a Guerra. Eu peço que se tente ver e compreender o que se passa. Caso contrário, sofreremos os acontecimentos como, infelizmente, sofremos a última Guerra mundial.” (Pessoalmente, chamo permanentemente a atenção para a necessidade de pensar. Pensar vem do latim, pensare, que sgnifica pesar razões; daí vem também o penso sanitário, pois pensar cura.
Como vê esta nova guerra na Europa, com a invasão da Ucrânia? Certamente, há “uma surpresa, mas não total”. De facto, num artigo no Le Monde em 2014, por ocasião da crise ucraniana, concretamente na Crimeia, escreveu: “Atenção, é um foco de infecção com o risco de ter consequências desastrosas. Durante anos, fechou-se os olhos a esta infecção…” O problema agora é que há “um desequilíbrio”: “estamos numa espécie de contradição, porque, por um lado, pensamos que a resistência ucraniana é justa — é uma guerra patriótica —, mas ao mesmo tempo pensamos que, se entrarmos no conflito, corremos o risco do que Dominique de Villepin chamava um ‘tsunami mundial’: passo a passo, chegar à explosão.” Não nos podemos enredar na lógica da guerra e “interveir militarmente. Por isso, sinto esta contradição que vivemos todos e que é preciso assumir”. “Por um lado, queremos apoiar um país que resiste e, por outro, não podemos fazê-lo de modo integral, isto é, entrar na guerra. Estamos no meio: fornecemos armas e reabastecimento”.
Os seus três escritores russos preferidos são: Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov. “Eles ajudam-no a compreender a guerra hoje?” “Não, eles ajudam-me sobretudo porque transportam com eles um humanismo russo que, diferentemente do humanismo occidental, que é sobretudo abstracto, é concreto. Está cheio de compaixão pelo sofrimento e a miséria humana. E o que estes autores me ensinaram de modo profundo foi este humanismo da compaixão pelo sofrimento.” Aqui, pessoalemnte, pensei no meu íntimo: Nem Putin nem Kirill leram Dostoiévski, Tolstói, Tchekov, ou não entenderam… ou não querem entender.
E voltamos à necessidade urgente de pensar. Estamos mergulhados em crises gravíssimas, que podem colocar a Humanidade perante a possibilidade do seu fim. “Em todo o mundo há crise das democracias, uma crise do progresso. Acreditámos durante muito tempo que o progresso era certo, uma lei da História; ora, hoje percebemos que o futuro é cada vez mais incerto e inquietante. Há a crise do futuro, a angústia, as crises que aconteceram: a económica em 2008, depois a pandemia. As angústias que isso gera provocam um retraimento, um fechar-se sobre si mesmo.” E nota-se uma espécie de derrota dos intelectuais e políticos, que não conseguem fazer-se ouvir. Há uma questão que é “muito impotante hoje. Porque estamos num mundo de experts (peritos) e especialistas em que cada um vê apenas uma pequena parte dos problemas, isolados uns dos outros. Existe hoje de facto essa deficiência.”
De novo o jornalista: “Conversámos sobre a guerra na Ucrânia, tendo como pano de fundo a ameaça nuclear. Também dedica um dos quatro capítulos do seu livro ao aquecimento global. Mestas condições, é possível pensar o futruo com serenidade?” Resposta: “Não podemos ficar serenos perante perspectivas tão preocupantes. O que eu quereria mostrar, mesmo antes da guerra na Ucrânia, é que, desde Hiroshima, uma espada de Dâmacles paira sobre a cabeça de todos, e ela agravou-se com a crise ecológica, que mostra que realmente a bioesfera, o mundo vivo e as nossas sociedades estão ameaçados. Não é só o clima. O clima é um elemento dessa crise geral e a pandemia também contribuiu para o carácter global da crise. Penso que entrámos num novo período. Pela primeira vez na História, a Humanidade corre o risco de aniquilação, talvez não total — haverá alguns sobreviventes —, mas uma espécie de ‘reinício’ a partir do zero em condições sanitárias sem dúvida terríveis. É esse perigo, que eu já tinha diagnosticado como potencial, que, de repente, se torna actual com esta história de guerra russa.”
Claro que “só podemos pensar o futuro, se estivermos conscientes do passado e do que se passa no presente. Não se pode pensar o futuro isolado. E hoje o futuro depende dessas grandes correntes que atravessam a Humanidade e que são ameaçadoras e regressivas. Portanto, eu penso que é urgente pensar o futuro. Porquê? Até agora pensava-se que o futuro era uma espécie de linha recta que ia continuar. Ora, é preciso imaginar os diferentes cenários. É preciso estar vigilante. É preciso esperar o inesperado para saber navegar na incerteza. Há toda uma série de reformas, o modo de pensar, de se comportar, que são hoje necessários.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 23 de abril de 2022
«L’Avenir de Terre-Patrie – Cheminer avec Edgar Morin» sob direção de Alfredo Pena-Vega (Actes-Sud, 2021) é publicado para assinalar o centenário de Edgar Morin.
OS PILARES DA EDUCAÇÃO
Quando definimos o perfil dos alunos no final do ensino obrigatório, recorremos aos sete pilares que Edgar Morin considerou essenciais para a Educação, numa cultura de autonomia e responsabilidade: prevenção do conhecimento contra o erro e a ilusão; ensino de métodos que permitam ver o contexto e o conjunto, em lugar do conhecimento fragmentado; o reconhecimento do elo indissolúvel entre unidade e diversidade da condição humana; aprendizagem duma identidade planetária considerando a humanidade como comunidade de destino; exigência de apontar o inesperado e o incerto como marcas do nosso tempo; educação para a compreensão mútua entre as pessoas, de pertenças e culturas diferentes; e desenvolvimento de uma ética do género humano, de acordo com uma cidadania inclusiva. De facto, só poderemos compreender e assumir uma cidadania livre e responsável se ligarmos informação, conhecimento e sabedoria – e entendermos a complexidade. A catástrofe está no horizonte, mas é possível inverter o curso dos acontecimentos. Morin recorda dois exemplos marcantes de tempos muito diferentes. A resistência vitoriosa por duas vezes da pequena cidade de Atenas perante o poder formidável dos persas, cinco séculos antes da nossa era, foi altamente improvável, mas permitiu o nascimento da democracia e da filosofia. Do mesmo modo, foram tão inesperados como improváveis o atraso e o congelamento da ofensiva alemã em Moscovo no Outono de 1941 e depois a contraofensiva vitoriosa de Jukov em 5 de Dezembro, seguida no dia 8 pelo ataque a Pearl Harbour que fez entrar os Estados Unidos na Guerra. A História reserva-nos inúmeros exemplos que nos permitem alimentar esperanças, desde que haja capacidade de autocrítica e mobilização de vontades, em torno de objetivos inteligentes e justos.
UM NOVO HUMANISMO
Com Terêncio temos de entender que nada do que é humano nos pode ser estranho. E quando alguém pergunta o que é a identidade europeia, Edgar Morin recorda a sua ideia de uma «comunidade de destino», capaz de congregar a consciência das diferenças e a importância do outro. Prefiro usar a expressão comunidade plural (e democrática) de destinos e valores. A cultura é o que diferencia e a civilização é o que difunde a criatividade humana. A identidade corresponde, assim, à exigência de um caminho comum e partilhado. Impõe-se perceber que, na expressão de Denis de Rougemont ou de Daniel Bell, o Estado atual é grande e pequeno demais para responder aos problemas contemporâneos. Quando surge, por fim, a pergunta sobre o que caracteriza uma ética europeia, na linha de Montaigne, E. Morin responde que o universalismo e a capacidade autocrítica são as características europeias fundamentais. Precisamos, no fundo, de uma Europa criativa que aceita a imperfeição, aberta ao mundo, universalista e cultora da crítica, capaz de incorporar um caminho que possa favorecer a ideia fecunda de metamorfose! Em “La Voie – Pour l’Avenir de l’Humanité” (Fayard, 2011), Morin apresenta um conjunto muito vasto de propostas para ultrapassar a crise que vivemos, mas, mais do que isso, para compreender as raízes do mal que nos atinge globalmente e que exige respostas urgentes, corajosas e determinadas – que ultrapassem a mera lógica do curto prazo. Ernesto Sabato, o grande escritor argentino afirmou que «só há um modo de contribuir para a mudança, é a recusa da resignação». Edgar Morin concorda, preocupado com as fragilidades que estão a destruir os fundamentos de uma humanidade consciente das tarefas fundamentais que tem de assumir num tempo de incerteza e de risco de destruição. Nos tempos em que vivemos, plenos de contradições, em que os erros e as responsabilidades são de todos, apesar da tentação de criar bodes expiatórios, tantas vezes falsos e ilusórios, Morin lança um alerta – que se impõe impedir que persista o fatalismo, segundo o qual nada poderemos fazer para inverter a perigosa situação em que estamos. Estão profundamente enganados os que pensam poder voltar à corrida vertiginosa que confunde economia e ficção. “No sabemos lo que pasa y eso es lo que passa” – Ortega y Gasset disse-o, e hoje sentimos que se trata de uma ilustração do que nos está a acontecer. Edgar Morin fala-nos da cegueira de conhecimento que separa os saberes e desintegra os problemas fundamentais e globais, que necessitam de um conhecimento transdisciplinar. E refere que o ocidental-centrismo apoia-se apenas na racionalidade e dá-nos a ilusão de possuir o universal. E assim não é apenas a nossa ignorância, mas também o nosso conhecimento que nos cegam.
CRISE PLANETÁRIA
A crise planetária, com que lidamos mal, resulta da inexistência de autênticos dispositivos de regulação. A crise global não se resume, assim, a um acidente provocado pela hipertrofia do crédito, a qual não se deve apenas ao problema de uma população empobrecida pelo encarecimento dos bens e serviços, obrigada a manter o nível de vida pelo endividamento. Edgar Morin aponta o dedo à especulação do capitalismo financeiro nos mercados internacionais (do petróleo, dos minerais e dos cereais) e ao facto de o sistema financeiro mundial se ter tornado um barco à deriva, desligado da realidade produtiva. E cita Patrick Artus e Marie-Paule Virard, no seu livro anterior ao “crash” do Outono de 2008, intitulado «Globalisation: le pire est à venir» (La Découverte, 2008): «O pior ainda está para vir, em resultado da conjugação de cinco características da globalização: uma máquina inigualitária que mina os tecidos sociais e atiça as tensões protecionistas; um caldeirão que queima os recursos raros, encoraja as políticas de concentração e acelera o reaquecimento do planeta; uma máquina que inunda o mundo de liquidez e que encoraja a irresponsabilidade bancária; um casino onde se exprimem todos os excessos do capitalismo financeiro; uma centrifugadora que pode fazer explodir a Europa». Em suma, as desigualdades afetaram gravemente a eficiência e a equidade, através da fragilização do capital social (como há muito alerta Robert Putnam). A lógica de casino agravou os efeitos de um ciclo especulativo de consequências muito nefastas, como há muito alertara o insuspeito Vilfredo Pareto. A crise é ecológica, pela degradação da biosfera; é demográfica, pela confluência da explosão populacional nos países pobres e da redução nos países ricos, com desenvolvimento de fluxos migratórios gerados pela miséria; é urbana, pelo desenvolvimento de megapolis poluídas e poluentes, com ghettos de ricos ao lado de ghettos de pobres; é da agricultura, pela desertificação rural, concentração urbana e desenvolvimento das monoculturas industrializadas; é ainda crise da política, pela incapacidade de pensar e de afrontar a novidade, perante a crescente complexidade dos problemas; é ainda das religiões, pelo recuo da laicidade, pelo emergir de contradições que as impedem de assumir os seus princípios de fraternidade universal. Numa palavra, «o humanismo universalista – afirma Morin - decompõe-se em benefício das identidades nacionais e religiosas, quando ainda não se tornou um humanismo planetário, respeitando o elo indissolúvel entre a unidade e a diversidade humanas». A ideia fixa do crescimento contínuo e interminável não pode continuar. A evolução das ciências sociais e humanas obriga a entendermos a atual crise como uma via de repensamento – não apenas das circunstâncias económicas e financeiras, mas também das implicações sociais e axiológicas. A persistência nos erros que conduziram à atual situação levará a que os males das ilusões e das aparências se somem à incapacidade de perceber que os recursos escassos e que o meio ambiente estão a ser destruídos irreversivelmente. Tudo tem, afinal, a ver com o facto de o ganho a todo o custo ter substituído na ciência económica a consideração de que é a pessoa humana e a sua dignidade que têm de estar no centro da satisfação das necessidades.
A complexidade considera o diálogo ordem / desordem / organização. Mas, por detrás da complexidade, a ordem e a desordem dissolvem-se, as distinções entre elas desvanecem-se. O mérito da complexidade está a denúncia da metafísica da ordem. Como dizia Whitehead, subjacente à ideia de ordem havia duas coisas: a ideia mágica de Pitágoras, segundo a qual os números são a realidade última, e a ideia religiosa, ainda presente em Descartes como em Newton, segundo a qual o entendimento divino é o fundamento da ordem do mundo. Ora, quando se retirou o entendimento divino e a magia dos números o que restou? As Leis? Uma mecânica cósmica autossuficiente? É essa a verdadeira realidade? É essa a verdadeira natureza? A essa ideia débil, (diz Edgar Morin), oponho a ideia de complexidade». Para Edgar Morin, «a gigantesca crise planetária é a crise da humanidade que não consegue aceder à humanidade». Duas barbáries coexistem e agem sem contemplações: a que vem da noite dos tempos e usa a violência; e a barbárie moderna e fria da hegemonia do quantitativo, da técnica e do lucro. Ambas levam-nos ao abismo. Contudo, importa entender o que Hölderlin nos ensinou: «onde cresce o perigo, cresce também o que salva». A globalização pode trazer-nos fatores positivos sobre o que pode unir a humanidade no sentido da paz. A consciência de uma Terra-Pátria é ainda marginal e disseminada. Edgar Morin propõe a ideia de metamorfose, improvável mas possível, como alternativa à desintegração provável. A natureza está cheia de exemplos de metamorfoses – a lagarta encerra-se na crisálida. A noção de metamorfose é mais rica que a de revolução, uma vez que preserva a radicalidade transformadora, ligando-a à conservação da vida e à herança das culturas. Sendo impossível travar a tendência que conduz aos desastres, devemos pensar que as grandes transformações começam com uma inovação, uma nova mensagem marginal, modesta, tantas vezes invisível… Será preciso, no fundo, ao mesmo tempo, mundializar e desmundializar, crescer e decrescer, desenvolver e envolver, conservar e transformar. As reformas políticas, económicas, educativas ou da vida só por si estarão votadas à insuficiência e ao fracasso.
Como tem sido evidente na pandemia que sofremos, a catástrofe está no horizonte, mas é possível inverter o curso dos acontecimentos. E Morin recorda dois exemplos marcantes de tempos muito diferentes. A resistência vitoriosa por duas vezes da pequena cidade de Atenas perante o poder formidável dos persas, cinco séculos antes da nossa era, foi altamente improvável, mas permitiu o nascimento da democracia e da filosofia. Do mesmo modo, foram tão inesperados como improváveis o atraso e o congelamento da ofensiva alemã em Moscovo no Outono de 1941 e depois a contraofensiva vitoriosa de Jukov em 5 de dezembro, seguida no dia 8 pelo ataque a Pearl Harbour que fez entrar os Estados Unidos na Guerra. A História reserva-nos inúmeros exemplos que nos permitem alimentar esperanças, desde que haja capacidade de autocrítica e mobilização de vontades, em torno de objetivos inteligentes e justos.
Com Terêncio temos de entender que nada do que é humano nos pode ser estranho. E quando alguém pergunta o que é a identidade europeia, Edgar Morin recorda a sua ideia de uma «comunidade de destino», capaz de congregar a consciência das diferenças e a importância do outro. Prefiro usar a expressão comunidade plural (e democrática) de destinos e valores. E se falo de «comunidade», dou-lhe o sentido de pessoa em comum (gesamtperson, de que falava Landsberg). A cultura é o que diferencia e a civilização é o que difunde a criatividade humana. A identidade corresponde, assim, à exigência de um caminho comum e partilhado. Impõe-se perceber que, na expressão de Denis de Rougemont ou de Daniel Bell, o Estado atual é grande e pequeno demais para responder aos problemas contemporâneos. Quando surge, por fim, a pergunta sobre o que caracteriza uma ética europeia, na linha de Montaigne, E. Morin responde que o universalismo e a capacidade autocrítica são as características europeias fundamentais. Precisamos, no fundo, de uma Europa criativa que aceita a imperfeição, aberta ao mundo, universalista e cultora da crítica, capaz de incorporar um caminho que possa favorecer a ideia fecunda de metamorfose!
Em “La Voie – Pour l’Avenir de l’Humanité” (Fayard, 2011), Morin apresenta, de um modo clarividente, um conjunto muito significativo de propostas para ultrapassar a crise global que vivemos, mas, mais do que isso, para compreender as raízes do mal que nos atinge globalmente e que exige respostas urgentes, corajosas e determinadas – que ultrapassem a mera lógica do curto prazo. Ernesto Sabato, o grande escritor argentino, afirmou que «só há um modo de contribuir para a mudança, é a recusa da resignação». E Edgar Morin concorda, preocupado que está com as fragilidades que estão a destruir os fundamentos de uma humanidade consciente das tarefas fundamentais que tem de assumir num tempo de incerteza e de risco de destruição. Nos tempos em que vivemos, plenos de contradições, em que os erros e as responsabilidades são de todos, apesar da tentação de criar bodes expiatórios, tantas vezes falsos e ilusórios, para que o caminho de autodestruição possa continuar sem grandes sobressaltos, Morin lança um alerta – o de que se impõe impedir que persista o fatalismo, segundo o qual nada poderemos fazer para inverter a perigosa situação de que acabamos de tomar consciência, através de uma crise financeira que nos abala e que é tudo menos momentânea. Estão profundamente enganados os que pensam poder voltar à velha mentalidade imediatista e à corrida vertiginosa que confunde economia e ficção. “No sabemos lo que pasa y eso es lo que passa” – Ortega y Gasset disse-o, e hoje sentimos que se trata de uma ilustração do que nos acontece. Mas Edgar Morin não corre atrás das tentativas de perceber os últimos acontecimentos. Fala-nos, antes, da cegueira de conhecimento que compartimenta os saberes e desintegra os problemas fundamentais e globais, que necessitam de um conhecimento transdisciplinar. Refere-nos que o ocidental-centrismo apoia-se apenas na racionalidade e dá-nos a ilusão de possuir o universal. E assim não é apenas a nossa ignorância, mas também o nosso conhecimento que nos cega.
A crise planetária, com que lidamos mal, resulta da inexistência de autênticos dispositivos de regulação. A crise global não se resume, assim, a um acidente provocado pela hipertrofia do crédito, a qual não se deve apenas ao problema de uma população empobrecida pelo encarecimento dos bens e serviços, obrigada a manter o nível de vida pelo endividamento. Edgar Morin aponta o dedo à especulação do capitalismo financeiro nos mercados internacionais (do petróleo, dos minerais e dos cereais) e ao facto de o sistema financeiro mundial se ter tornado um barco à deriva, desligado da realidade produtiva. E cita Patrick Artus e Marie-Paule Virard, no seu livro anterior ao “crash” do Outono de 2008, intitulado «Globalisation: le pire est à venir» (La Découverte, 2008): «O pior ainda está para vir, em resultado da conjugação de cinco características maiores da globalização: uma máquina inigualitária que mina os tecidos sociais e atiça as tensões protecionistas; um caldeirão que queima os recursos raros, encoraja as políticas de concentração e acelera o reaquecimento do planeta; uma máquina que inunda o mundo de liquidez e que encoraja a irresponsabilidade bancária; um casino onde se exprimem todos os excessos do capitalismo financeiro; uma centrifugadora que pode fazer explodir a Europa». Em suma, as desigualdades que eram consideradas despiciendas afetaram gravemente a eficiência e a equidade, através da fragilização do capital social (como há muito alertava Robert Putnam). A lógica de casino agravou os efeitos de um ciclo especulativo de consequências muito nefastas, como há muito alertara o insuspeito Vilfredo Pareto. Os egoísmos nacionais somaram-se, ainda por cima, a uma falsa consciência ecológica, incapaz de considerar o essencial, cedendo aos grupos de pressão e a perversos interesses. A crise é multifacetada: é ecológica, pela degradação da biosfera; é demográfica, pela confluência da explosão populacional nos países pobres e da redução nos países ricos, com desenvolvimento de fluxos migratórios gerados pela miséria; é urbana, pelo desenvolvimento de megapolis poluídas e poluentes, com ghettos de ricos ao lado de ghettos de pobres; é da agricultura, pela desertificação rural, concentração urbana e desenvolvimento das monoculturas industrializadas; é ainda crise da política, pela incapacidade de pensar e de afrontar a novidade, perante a crescente complexidade dos problemas; é ainda das religiões, pelo recuo da laicidade, pelo emergir de contradições que as impedem de assumir os seus princípios de fraternidade universal. Numa palavra, «o humanismo universalista – afirma Morin - decompõe-se em benefício das identidades nacionais e religiosas, quando ainda não se tornou um humanismo planetário, respeitando o elo indissolúvel entre a unidade e a diversidade humanas».
A ideia fixa do crescimento contínuo e interminável não pode continuar. A evolução das ciências sociais e humanas obriga a entendermos a atual crise como uma via de repensamento – não apenas das circunstâncias económicas e financeiras, mas também das implicações sociais e axiológicas. A persistência nos erros que conduziram à atual situação levará a que os males das ilusões e das aparências se somem à incapacidade de perceber que os recursos escassos e que o meio ambiente estão a ser destruídos irreversivelmente. Tudo tem, afinal, a ver com o facto de o ganho a todo o custo ter substituído na ciência económica a consideração de que é a pessoa humana e a sua dignidade que têm de estar no centro da satisfação das necessidades, compreendendo-se o que François Perroux ensinava sobre o facto de o que tem mais valor ser o que não tem preço…
Têm outro horizonte de compreensão e, por isso, podem ajudar-nos no discernimento da presente hecatombe. Ambos muito conhecidos. Um é astrofísico, o outro é filósofo. Do alto do seu saber e da sabedoria que a idade, 88 e 98 anos, respectivamente, também dá, vale a pena ouvi-los. Foi o que fiz, pela intermediação de entrevistas que deram, a partir do seu confinamento.
1. O astrofísico é Hubert Reeves, que conversou com Luciana Leiderfarb para o Expresso. E que disse?
Constatou o facto: em casa, confinados, por causa de um vírus invisível. “A única coisa que não é clara para mim é se a poluição e a degradação do planeta a que estamos a assistir e a que chamamos a ‘sexta extinção’ estão ou não relacionadas com este vírus.” Embora não seja especialista na matéria, pensa que “está perto da verdade: a pandemia não foi causada directamente pela sexta extinção, mas indirectamente, facilitando as condições para o coronavírus se expandir tão depressa.”
De qualquer modo, somos muito maus a fazer antecipações: “Ninguém sabe do futuro. É a imprevisibilidade da realidade que quero destacar. A realidade é difícil de prever, e somos muito maus a fazê-lo.” Mas temos hoje excesso de poder que nem sempre queremos ou somos capazes de controlar, e aí está o perigo: “Temos duas formas de nos autodestruirmos: através de uma guerra nuclear ou da sexta extinção. Ambas podem eliminar-nos e dependem do nosso autocontrolo.”
A Natureza foi construindo estruturas. “E uma das suas obras-primas é a espécie humana. Somos provavelmente o nível mais alto de complexidade que conhecemos, a estrutura mais complexa do Universo.” A Humanidade trouxe ao mundo a cultura — Mozart, Van Gogh, um tipo de criatividade que desapareceria completamente se o ser humano fosse extinto —, a ciência — nenhuma outra espécie animal teria chegado à teoria da relatividade de Einstein —, e a compaixão — temos pulsões destrutivas, mas também temos compaixão, sofremos quando vemos pessoas a sofrer. “A Humanidade merece ser preservada.” Adverte, porém, que o ser humano é tremendamente poderoso, o mais poderoso, mas também o mais complicado e tanto somos capazes do melhor como do pior: tanto podemos fazer uma sinfonia de Beethoven ou construir a teoria da relatividade como uma bomba atómica ou a II Guerra Mundial. “Hoje sabe-se que a probabilidade de a actividade humana ser a principal causa do aquecimento global é de 99%” (Aqui, acrescento eu: por causa do confinamento, é um facto que, com a diminuição da intervenção antropogénica, se constata uma forte melhoria do meio ambiente). Também “sabemos que, se não nos adaptarmos ao ecossistema, em vez de continuarmos a forçá-lo a adaptar-se a nós, vamos desaparecer.” A nossa presença na Terra está ameaçada. Portanto, “a nossa responsabilidade agora é não destruirmos de vez a complexidade do planeta. Garantir que com o nosso comportamento não eliminamos a Humanidade.”
O aparecimento da vida e, concretamente do ser humano, na gigantesca história da evolução, continua envolto em mistério. Quais as condições presentes desde o início para que se desse esta aparição? “Vivemos ainda num grande mistério, sem conhecimento do que se passou entre o início e agora e sem fazermos ideia sobre se houve um antes e se haverá um depois.” Uma questão muito debatida entre os cientistas, mas “aqueles que possuem uma crença religiosa não têm qualquer problema em relação a isso, porque a resposta é Deus.” Perguntado sobre se acredita em Deus, responde: “Tenho muitas perguntas sobre Deus. Mas não sei o que Deus é. Para mim, é um assunto importante, mas relativamente ao qual não cheguei a nenhuma certeza.” Aqui, digo eu: também o crente não tem certeza, tem fé, com razões, e é razoável acreditar. Sobre se é possível conciliar ciência e religião, Reeves reconhece que “são duas actividades diferentes da mente”, que tem dois domínios, sendo um o conhecimento — “aprender, saber como as coisas são, como funciona o mundo” — e o outro o do valor. Dá um exemplo: a ciência diz como fazer a bomba atómica, mas não pode dizer se devemos ou não fazê-la, pois isso já é do domínio do valor, no qual se inclui a filosofia e a religião. ”Enquanto a ciência pergunta: ‘o que é, como funciona?’, a religião questiona: ‘é bom ou mau?’. Este é um assunto na ordem do dia, na medida em que, cada vez mais se coloca a questão da aplicabilidade da ciência e das suas fronteiras éticas.”
À pergunta da jornalista: “O que é que ainda o surpreende? O que é que o emociona?”, responde: “A amizade, o amor, a música. Ouço música o dia todo. Não há nada mais elevado. As salas de concerto são as minhas igrejas. É o lugar onde sinto que existe algo maior do que eu.”
Envolvido pelo espanto, pelo maravilhamento perante o Universo e a sua história, sabe que a sua vida roça “o seu limite perigoso” e, por isso, não se deita antes da uma ou duas da madrugada. “Tenho esta ideia de, até onde a saúde mo permitir, não querer desperdiçar o tempo a dormir.”
2. Edgar Morin é filósofo e sociólogo e continua a surpreender-me, agora confinado, com mais uma entrevista concedida ao jornalista Francis Lecompte para o sítio Cnrs. Le journal, que colocou como título para a conversa que teve: “Edgar Morin: Temos de viver com a incerteza”.
Uma mensagem principal desta pandemia é que derrubou a nossa sensação de omnipotência e pôs em causa a relação com a ciência, que se pretendia omnisciente. Diz Edgar Morin: “O que me impressiona é que grande parte do público via a ciência como o repertório de verdades absolutas, afirmações irrefutáveis.” Afinal, observámos que os cientistas convocados pelo poder político “defendiam pontos de vista muito diferentes e, às vezes, contraditórios, e isso nas medidas a ser adoptadas, nos possíveis novos remédios para responder à emergência, na validade deste ou daquele medicamento, na duração dos ensaios clínicos a realizar.” Parece que mesmo entre os cientistas poucos leram, por exemplo, Karl Popper, que estabeleceu que uma teoria só é científica se for refutável, portanto, o critério de cientificidade de uma teoria é a sua refutabilidade, ou Gaston Bachelard, ao colocar o problema da complexidade do conhecimento, ou Thomas Kuhn, ao estabelecer, com a sua teoria dos paradigmas, que “a história das ciências é um processo descontínuo”.
“O facto de hoje estarmos a falar do coronavírus era completamente desconhecido há um ano”, afirma Reeves. E Edgar Morin confirma: nesta crise do coronavírus, o impressionante é que “não temos ainda nenhuma certeza sobre a própria origem desse vírus nem sobre as suas diferentes formas, as populações que ataca, os seus graus de nocividade. Nós estamos igualmente a passar por uma grande incerteza sobre todas as consequências da epidemia em todos os domínios, sociais, económicas, etc.”. Aqui, acrescento eu: A China portou-se da pior maneira ao não alertar atempadamente o mundo e continua a manifestar má consciência ao impedir estudos e investigações internacionais independentes sobre precisamente a origem da pandemia.
O paradoxo é este: por um lado, estamos todos à espera de que a ciência, através de medicamentos, através de uma vacina, nos liberte do pesadelo; por outro, não sabemos e temos de conviver com a incerteza. Edgar Morin espera que a presente crise sirva para “revelar como a ciência é uma coisa mais complexa do que se quer crer. É uma realidade humana que, como a democracia, assenta sobre os debates de ideias, embora os seus modos de verificação sejam mais rigorosos.” Temos de aceitar as incertezas e viver com elas, “quando a nossa civilização nos inculcou a necessidade de certezas cada vez mais numerosas sobre o futuro, muitas vezes ilusórias, por vezes frívolas. A chegada deste vírus deve lembrar-nos que a incerteza permanece um elemento inexpugnável da condição humana. Nenhum seguro social que possamos fazer será capaz de nos garantir que não vamos adoecer ou que seremos felizes. Tentamos cercar-nos com o máximo de certezas, mas viver é navegar num mar de incertezas, através de ilhotas e arquipélagos de certezas nos quais nos reabastecemos.”
O jornalista: “É a sua própria regra de vida?” Edgar Morin: “É sobretudo o resultado da minha experiência. Assisti a tantos e tantos acontecimentos imprevistos na minha vida que isso faz parte da minha maneira de ser. Não vivo na angústia permanente, mas estou à espera de que surjam acontecimentos mais ou menos catastróficos. Não digo que previ a epidemia actual, mas digo, por exemplo, que há vários anos que, atendendo à degradação da nossa bioesfera, nos devíamos preparar para catástrofes. Isso faz parte da minha filosofia: ‘Espera o inesperado’.” Aliás, desde que na década de 60 li Martin Heidegger, apercebi-me de que vivemos na era planetária e a globalização é um processo que poderia trazer benefícios e também danos. “Também observo que o desencadeamento descontrolado do desenvolvimento tecno-económico, animado por uma sede ilimitada de lucro e favorecido por uma política neoliberal generalizada, se tornou prejudicial e provoca crises de todos os tipos. A partir desse momento, estou intelectualmente preparado para enfrentar o inesperado, para enfrentar as convulsões.”
Edgar Morin confessa satisfação porque, desde o seu primeiro discurso sobre a crise, o Presidente Macron até mencionou a possibilidade de mudar o modelo de desenvolvimento. Significa que caminhamos para uma mudança económica? Resposta: “O nosso sistema baseado na competitividade e na rentabilidade tem muitas vezes graves consequências nas condições de trabalho. A prática massiva do teletrabalho por causa do confinamento das empresas pode contribuir para mudar o funcionamento das empresas ainda muito hierárquicas ou autoritárias. A crise actual pode acelerar também o regresso à produção local e o abandono de toda a indústria do descartável, dando assim trabalho aos artesãos e ao comércio de proximidade.”
E vamos passar também para uma mudança política, na qual “as relações entre o indivíduo e o colectivo se transformam?”
Resposta: “O interesse individual dominava tudo, mas agora as solidariedades estão a despertar”, e dá o exemplo do mundo hospitalar. Infelizmente, não podemos falar de um despertar da solidariedade humana ou planetária. No entanto, já éramos seres humanos de todos os países, confrontados com os mesmos problemas no que se refere à degradação do meio ambiente ou ao cinismo económico. Mas, hoje, da Nigéria à Nova Zelândia, encontramo-nos todos confinados e deveríamos tomar consciência de que os nossos destinos estão ligados, queiramos ou não. Seria, portanto, o momento para refrescar o nosso humanismo, pois, enquanto não virmos a Humanidade como uma comunidade de destino, não poderemos pressionar os governos a agir num sentido inovador.”
O jornalista: E agora, passando longos períodos de confinamento, o que é que a Filosofia nos poderia ensinar?
Edgar Morin: “É verdade que para muitos de nós que vivemos uma grande parte da nossa vida fora de casa este confinamento brusco pode representar um incómodo terrível. Mas penso que pode ser uma ocasião para reflectir, perguntar o que, na nossa vida, é frívolo ou inútil. Não digo que a sabedoria é permanecer toda a vida num quarto, mas, para dar um exemplo: pensando apenas no nosso modo de consumo e de alimentação, é talvez o momento de nos desfazermos de toda esta cultura industrial, cujos vícios conhecemos, o momento para nos desintoxicarmos. É também a ocasião para tomarmos consciência de modo duradouro dessas verdades humanas, que todos conhecemos, mas que estão recalcadas no nosso subconsciente: o amor, a amizade, a comunhão, a solidariedade, que fazem a qualidade da vida.”
3. Fica uma pergunta imensa, mas essencial: Quando terminar a hecatombe, teremos ao menos aprendido onde está o essencial? Ou voltaremos à vertigem do ter, esquecendo o ser?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 10 MAI 2020
Guilherme d'Oliveira Martins fez o elogio de Edgar Morin na sua presença no Instituto Piaget em Almada no passado dia 15 de novembro. Reproduzimos texto publicado pelo CNC em 2011.
A VIDA DOS LIVROS De 19 a 25 de dezembro de 2011.
Stéphane Hessel e Edgar Morin acabam de publicar «Le Chemin de l’Espérance» (Fayard, 2011), onde nos apresentam um alerta para os dias de hoje. A política, a economia, a sociedade e a cultura precisam de uma tomada de consciência cidadã no sentido da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade e da responsabilidade. Fala-se muito de indignação, e essa foi a palavra usada por Hessel, no entanto os dois autores, nonagenários mas de uma lucidez exemplar, propõem-nos uma nova esperança, assente na vontade emancipadora e da recusa da indiferença. O mesmo tem feito Eduardo Lourenço, agora justamente galardoado com o Prémio Pessoa!
FALAR COM EDGAR MORIN Foi há dias, em Paris, nas novas instalações da Fundação Calouste Gulbenkian, em La Tour Maubourg. Conversámos sobre o futuro da Europa. O convidado era Edgar Morin, e partilhei o diálogo com José Mariano Gago. Edgar Morin é um velho amigo de Portugal e recorda o momento, no início dos anos sessenta, em que, com Jean-Marie Domenach e nas proximidades do Congresso para a Liberdade da Cultura, de Pierre Emmanuel, começou a ter um contacto fraterno, que nunca mais seria interrompido, com António Alçada Baptista e o grupo de «O Tempo e o Modo». Depois das desconfianças dos anos quarenta e cinquenta relativamente a uma Europa de tecnocratas com conotações americanas, vieram novas circunstâncias. A Europa tornou-se oportunidade de aprofundar a democracia. A evolução a leste originou muitas perplexidades e dúvidas, a sul do velho continente havia uma opinião pública que se abria e se preparava para a democracia, depois, o choque petrolífero produziu uma nova consciência ecológica e obrigou a mudar de ideias e estratégias. Com Roselyne Chenu, braço direito de Pierre Emmanuel, presente no auditório de Paris, o pensador recordou esses encontros distantes, envolvendo oposicionistas ibéricos, tão diferentes como José Bergamín, Gil Robles, Dionísio Ridruejo ou Ruíz-Gimenez. Os jovens João Bénard da Costa e Helena Vaz da Silva tornaram-se facilmente referências de inovação e inconformismo e são lembrados com saudade. José Vidal-Beneyto vem à baila, como entusiasta de um projeto europeu, capaz de incorporar a história antiga do Mediterrâneo e a evolução moderna, desde às guerras civis às novas exigências da ciência, da educação e da cultura. É a memória de grandes amigos comuns que há pouco nos deixaram, mas cuja lição está bem presente. E como será possível falar hoje de Europa sem lembrar esses contactos, de diálogo e de afeto, de uma geração para quem estavam ainda bem vivos os efeitos dramáticos da Guerra e a exigência da construção da paz e da democracia, através da liberdade de homens e mulheres de cultura?
CRISE SEM ILUSÕES Hoje, a crise europeia é profunda e não admite ilusões. Morin não pode deixar de exprimir o seu pessimismo. Mas considera que não há saída pacífica e justa sem o aprofundamento dos elos europeus. A crise financeira que vivemos deve-se ao facto de a civilização do poder se ter sobreposto a uma civilização do diálogo. A ilusão, o imediatismo, o consumo exacerbado, o produtivismo, a indiferença ética, tudo isso contribuiu para chegarmos onde estamos. Em lugar de uma cultura de criação, impôs-se a especulação, a lógica de casino e a busca de ganhos sem sustentabilidade – enquanto outros poupavam nós gastávamos. A noção de um progresso sem interrupção nem limites gerou o fanatismo do mercado e a incompreensão sobre o facto de a humanidade ter de lidar com a consciência dos limites. Afinal, como o escritor diz na sua obra «La Voie. Pour l’Avenir de l’Humanité» (Fayard, 2011), celebrizada por Stéphane Hessel, há que compreender que existem elementos contraditórios que têm de ser articulados e tidos em consideração hoje: a mundialização e a desmundialização; o crescimento e o decrescimento; o desenvolvimento e o envolvimento; a conservação e a transformação. Edgar Morin fala-nos, por isso, de metamorfose como um processo complexo abrangendo a política, a sociedade, a economia e a cultura, em que vários fatores se influenciam, obrigando à compreensão da diversidade. Morin propõe, assim, a ideia de metamorfose, improvável mas possível, como alternativa à desintegração provável. A natureza está cheia de exemplos de metamorfoses – por exemplo, a lagarta encerra-se na crisálida, num processo de autoreconstrução. A noção de metamorfose é, deste modo, mais rica que a de revolução, uma vez que preserva a radicalidade transformadora, ligando-a à conservação da vida e à herança das culturas. Sendo impossível travar a tendência que conduz aos desastres, devemos pensar que as grandes transformações começam com uma inovação, uma nova mensagem marginal, modesta, tantas vezes invisível… Se a mundialização está na ordem do dia, não podemos esquecer que o local e o tribal existem como elementos, a um tempo, de coesão e de fragmentação, de proximidade e de distância. O crescimento económico torna-se insuficiente e perigoso, uma vez que desvaloriza a proteção dos recursos disponíveis e a sua renovação. O desenvolvimento humano tem de ser integrado e capaz de ligar a coesão, a confiança, o capital social e a solidariedade. Conservação e transformação vivem ligadas uma à outra, o que obriga à criatividade e ao «conhecimento do conhecimento», como impulsionadores da compreensão.
O PROVÁVEL E O IMPROVÁVEL O escritor considera que a catástrofe pode estar no horizonte, mas acredita em que é possível inverter o curso dos acontecimentos. E recorda dois exemplos marcantes de tempos muito diferentes. A resistência vitoriosa por duas vezes da pequena cidade de Atenas perante o poder formidável dos persas, cinco séculos antes da nossa era, foi altamente improvável, mas permitiu o nascimento da democracia e da filosofia. Do mesmo modo, foram tão inesperados como improváveis o atraso e o congelamento da ofensiva alemã em Moscovo no Outono de 1941 e depois a contraofensiva vitoriosa de Jukov em 5 de Dezembro, seguida no dia 8 pelo ataque a Pearl Harbour que fez entrar os Estados Unidos na Guerra. A História reserva-nos inúmeros exemplos que nos permitem alimentar esperanças, desde que haja capacidade de autocrítica e mobilização de vontades, em torno de objetivos inteligentes e justos. Terêncio é chamado – temos de entender que nada do que é humano nos pode ser estranho. E quando alguém pergunta o que é a identidade europeia, Edgar Morin recorda a sua ideia de uma «comunidade de destino», capaz de congregar a consciência das diferenças e a importância do outro. Prefiro usar a expressão comunidade plural (e democrática) de destinos e valores. E se falo de «comunidade», dou-lhe o sentido de pessoa em comum (gesamtperson, de que falava Landsberg). A cultura é o que diferencia e a civilização é o que difunde a criatividade humana. A identidade corresponde, assim, à exigência de um caminho comum e partilhado. Impõe-se perceber que, na expressão de Denis de Rougemont ou de Daniel Bell, o Estado atual é grande e pequeno demais para responder aos problemas contemporâneos. Quando surge, por fim, a pergunta sobre o que caracteriza uma ética europeia, na linha de Montaigne, E. Morin responde que o universalismo e a capacidade autocrítica são as características europeias fundamentais. Precisamos, no fundo, de uma Europa criativa e imperfeita, aberta ao mundo, universalista e cultora da crítica, capaz de incorporar um caminho que possa favorecer a ideia fecunda de metamorfose!
«La Tête Bien Faite» de Edgar Morin (Seuil, 1999) constitui uma reflexão de uma grande atualidade e oportunidade, que parte da consideração de Montaigne, segundo a qual, mais vale uma cabeça bem feita, que uma cabeça bem cheia…
QUE PERFIL DOS ALUNOS?
Na sequência do documento sobre o Perfil dos Alunos à saída da Escolaridade Obrigatória muitos têm sido os que, em mensagens pessoais, me têm feito chegar opiniões encorajadoras. Mais do que preocupações diretamente ligadas às questões curriculares, que não devem confundir-se com as opções ligadas ao trabalho que tive a honra de coordenar, o que encontro nas preocupações manifestadas tem a ver com o seguinte: (a) uma sociedade como a portuguesa precisa de colocar a educação e a formação como primeiríssima prioridade; (b) é a aprendizagem e a sua qualidade que têm de ser postas na ordem do dia, como fatores essenciais de desenvolvimento humano; (c) não se trata de ver o aluno como um futuro profissional ou técnico, mas de o considerar como pessoa e cidadão, aptos a corresponder aos desafios da incerteza e da complexidade; (d) a definição de um perfil não pode confundir-se com um molde, devendo ser encarada como um quadro essencial capaz de se constituir uma referência permanente para o aperfeiçoamento da educação e da escola; (e) nos diversos domínios da educação e da formação não deve haver incerteza e instabilidade ditadas pelos ciclos políticos e eleitorais; (f) os progressos alcançados no médio e longo prazos entre nós corresponderam à convergência de diversos elementos – alargamento da escolaridade obrigatória, educação pré-escolar, aperfeiçoamento da avaliação nos diversos domínios relevantes, melhoria da rede escolar, reconhecimento de competências adquiridas, ensino profissional e artístico, formação de professores, progressos no ensino superior etc.; (g) não pode haver, assim, a tentação de considerar a uniformização como método adequado de criação de uma rede pública de educação eficiente, justa, de qualidade para todos. Eis por que razão uma perspetiva humanista procura centrar-se na dignidade humana, na cidadania ativa e responsável, na capacidade de ler e compreender o mundo contemporâneo e na resposta adequada aos desafios do desenvolvimento humano.
OS DESAFIOS PARA OS PORTUGUESES
Os avanços alcançados em Portugal em virtude da democracia merecem ser realçados, mas exigem um esforço permanente no sentido da continuidade e do aperfeiçoamento no sentido da qualidade. Não podemos esquecer que as comparações internacionais revelam que os melhores sistemas educativos evoluem no sentido de novos progressos. Os nossos estudantes estão, assim, confrontados a cada passo com os avanços conseguidos no que de melhor ocorre em outros países. Daí que tenha de haver um equilíbrio que considere o acesso de todos à educação, a existência de medidas que contrariem o insucesso e o abandono escolar e a promoção da qualidade. É verdade que a educação não pode ser confundida com uma corrida de obstáculos, no entanto impõe-se que haja a consideração de diversos fatores, de modo que as desigualdades sejam contrariadas e não se tornem elementos indutores de injustiça e de discriminação. Mas sejamos claros: a escola deve formar pessoas e cidadãos aptos a pôr em prática e a dar sentido aos valores da responsabilidade e integridade; da excelência e exigência; da curiosidade, reflexão e inovação; da cidadania e participação; e da liberdade. A escola visa alcançar educação de qualidade para todos – cabendo as políticas sociais garantir a igualdade de oportunidades e a correção das desigualdades. Não pode haver confusão de funções ou inversão de prioridades. Os conhecimentos e a preparação de cidadãos cultos, livres, responsáveis e informados não podem ser subalternizados em relação a supostas medidas de índole social. A diferenciação positiva obriga a considerar cada aluno com as suas especificidades próprias, segundo uma pedagogia correta e adequada. A qualidade nas diferentes áreas de competências tem, por isso de ser especialmente considerada: linguagem e textos; informação e comunicação; pensamento crítico e criativo; raciocínio e resolução de problemas; saber científico, técnico e tecnológico; relacionamento interpessoal; desenvolvimento pessoal e autonomia; bem-estar, saúde e ambiente; sensibilidade estética e artística; consciência e domínio do corpo.
RECONHECIMENTO DAS DIFERENÇAS
O reconhecimento das diferenças pessoais obriga à necessidade de considerar a motivação, o reconhecimento das capacidades, o acompanhamento das aprendizagens, as correções necessárias – de modo que a educação para todos seja uma realidade, ninguém devendo ficar para trás ou ser preterido por razões sociais ou económicas. É este, aliás, o sentido da ponderação de um núcleo fundamental de aprendizagens e de uma margem de flexibilidade que permita ir ao encontro das diferenças, sem pôr em causa um denominador comum que considere a coesão social e cultural e evite a fragmentação e a exclusão. Neste ponto, importa voltar a distinguir a função reservada à definição de um «Perfil» da consideração do desenvolvimento curricular. Não são confundíveis. Enquanto o «Perfil» pretende ser mais estável e duradouro, não dependente dos ciclos eleitorais, a organização curricular, devendo respeitar as preocupações fundamentais, pode e deve ser ajustada – segundo um desígnio de permanência e de estabilidade. O mesmo se diga em relação à margem de flexibilidade – que deve ir ao encontro da exigência de motivação dos estudantes e de contribuição para que haja melhores aproveitamentos, melhor qualidade, menos abandono e maior ligação entre a escola e a comunidade. Assim, sem querer pôr em causa a salvaguarda da função integradora do «Perfil», torna-se fundamental referir que muitas das preocupações suscitadas por críticos do processo deverão ter resposta positiva, no sentido da exigência, da qualidade e da avaliação. É essa a orientação definida no “Perfil” – de modo que para todos seja salvaguardada a capacidade de transformar informação em conhecimento, bem como de responder aos fundamentais desafios do progresso. Se falamos de avaliação, importa deixar claro que estamos perante um desafio complexo e necessário que não pode limitar-se à avaliação dos estudantes, devendo abranger as instituições e os professores – como, aliás, é consagrado nos sistemas que apresentam melhores resultados globais e níveis comparados de qualidade.
A CHAVE DA APRENDIZAGEM
O aprender a conhecer, o aprender a fazer, o aprender a viver juntos e a viver com os outros e o aprender a ser, referidos no relatório da UNESCO, coordenado por Jacques Delors, constituem elementos que devem ser vistos nas suas diversas relações e implicações. Isto mesmo obriga a colocar a educação durante toda a vida no coração da sociedade – pela compreensão das múltiplas tensões que condicionam a evolução humana. Não há melhor investimento do que na valorização das pessoas. Devemos, pois, compreender os sete pilares que Edgar Morin considera essenciais para a Educação, numa cultura de autonomia e responsabilidade: (a) prevenção do conhecimento contra o erro e a ilusão; (b) ensino de métodos que permitam ver o contexto e o conjunto, em lugar do conhecimento fragmentado; (c) o reconhecimento do elo indissolúvel entre unidade e diversidade da condição humana; (d) aprendizagem duma identidade planetária considerando a humanidade como comunidade de destino; (e) exigência de apontar o inesperado e o incerto como marcas do nosso tempo; (f) educação para a compreensão mútua entre as pessoas, de pertenças e culturas diferentes; e (g) desenvolvimento de uma ética do género humano, de acordo com uma cidadania inclusiva. Torna-se, pois, fundamental encontrar um ponto de convergência que permita assegurar que a educação e a formação das pessoas seja assumida como prioridade nacional. Cuidando dos princípios, da visão, dos valores e das áreas de competências estamos a tratar do assumir pleno de responsabilidades num mundo em acelerada mudança… Temos condições únicas para o conseguir, aproveitando as potencialidades da geração mais qualificada que alguma vez existiu em Portugal.
Guilherme d'Oliveira Martins
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