EM BUSCA DE IDEIAS CONTEMPORÂNEAS

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Folhetim de Verão - Capítulo 30
O TEMA DAS IDENTDADES
Depois de um percurso feito com a condução dos maiores pensadores contemporâneos, regressamos ao início. Para Edgar Morin, o pensamento contemporâneo está confrontado com os desafios da complexidade e da diversidade. Por isso, as identidades devem ser vistas pelo prisma das diferenças. Eis por que razão a democracia e o Estado de direito devem centrar-se na dimensão universalista da dignidade humana, no respeito mútuo, na abertura, na separação de poderes, no pluralismo e na compreensão de todos. Oiçamos, por isso, Edgar Morin.
“Ao falar do sujeito e do mundo gostaria de dissociar as duas palavras. Que é o sujeito? É um ser que se coloca no centro do seu mundo. Tudo o que se refere ao mundo é também referido a ele, em função do seu desejo, em função do seu egocentrismo e do seu querer viver. O ser vivo é de facto egocêntrico. Egocentrismo não significa, porém, necessariamente egoísmo. O sujeito é o centro do mundo. Felizmente, ele pode inscrever-se na categoria de “nós” e hesita entre o egoísmo e o altruísmo. A ideia de morte é também essencial para se compreender o que é o sujeito puramente humano. O ser humano tem horror à morte, que não é apenas uma decomposição física, mas uma destruição do seu ser e da possibilidade de dizer ”eu”. A destruição do “eu” é muito mais lamentável do que a dispersão das moléculas de um corpo. A morte introduz uma contradição na consciência do sujeito. Ele toma consciência de que é tudo para si mesmo e nada para o mundo. De facto, há uma relação permanente entre o tudo e o nada. Segundo um olhar objetivo, feitas as contas, o “eu” torna-se nada. O mundo aparece como comédia e como tragédia. O mundo é simultaneamente horrível e maravilhoso. E nós, segundo o nosso humor, e segundo momentos de alegria ou de menos coragem, vemos quer o lado maravilhoso quer o lado trágico e horrível da vida. É um toque de complexidade pensar que o maravilhoso do mundo não esconde o seu horror e que o lado negativo não faz desaparecer o maravilhoso. No que toca à identidade humana podemos assinalar que temos necessidade, pelo menos em parte, de referir o ancestral. Aliás, na sociedade tribal, alguém se define como filho, como no caso dos filhos de Israel, por exemplo. Dito de outra maneira, nós definimo-nos ao ascendente, pelo pai, pela mãe, e assim por diante, em relações a outros seres diferentes de mim. Nas sociedades arcaicas, o ascendente pode ser o ancestral. Pode até ser um animal ou um Totem. Doutro modo, a sociedade humana não pode pensar a sua unidade senão através da ideia de comunidade fraternal. Por isso, a nação moderna não pôde existir sem o tema mítico da pátria. A palavra nasce de modo paternal, masculino, para terminar de modo maternal, no feminino. Amamos a pátria, ela ama-nos, ela nos acolhe. Nós falamos mesmo de mãe-pátria. O lado paternal leva-nos à autoridade do Estado, a que devemos obedecer. A pátria, nos momentos de perigo, diz-nos como na “Marselhesa”: “Allons enfants de la patrie”. Tornamo-nos irmãos pelo tema da pátria. A identidade tem assim necessidade de algo muito concreto, muito carnal, ligado às figuras reais do pai, da mãe, dos irmãos e das irmãs, mas também das figuras mitológicas que colocam a ideia de consanguinidade, etc.
Então o que é a Europa? A Europa, no fundo, é uma pátria em formação. E a pátria, como ideia de nação foi posta em destaque por Otto Bauer, teórico marxista austríaco do fim do século passado, ao salientar a ideia de comunidade de destino. É preciso que nos sintamos, com razão ou sem ela, ligados a um destino comum para que efetivamente tenhamos um sentimento de pertença a uma entidade comum. Para uma pátria, o destino comum vem de muito longe, das origens. Para Portugal como para todas as nações, sabemos que o destino comum vem de uma história passada. Mas para a Europa o caso é inverso. Partimos de um destino comum, que queremos construir com um certo número de instituições e com o euro. Este destino comum, que não existia no passado, fazemo-lo retroagir à história. Aí se situa um processo interessante que se relaciona como conjunto passado – futuro – presente. E o passado pode ser revelado retrospetivamente pelo presente. Quando consideramos o passado, sem ter uma ideia de Europa, o que vemos? Vemos guerras, guerras incessantes. Se temos uma ideia-presente de Europa, vemos que essas guerras têm carácter típico, pelo menos até ao período napoleónico e até meados do século XIX. Há uma alteração das coligações, cada vez que uma potência tende a tornar-se poderosa ou hegemónica e visa controlar a Europa. Então a aliança muda. O rei de França Francisco I, vendo-se cercado pelo Império de Carlos V teve a ideia de se aliar aos turcos, ao inimigo. A Europa é um jogo de mudanças. E Napoleão construiu uma unidade europeia contra si próprio. Com a Primeira Guerra Mundial as regras alteraram-se num jogo de violência terrível. No fundo, a Europa fez-se de nações que queriam impedir a hegemonia de uma dentre elas sobre as outras e assim visavam salvar a diversidade europeia. Deste modo, na ideia de Europa temos historicamente esta consideração fundamental que é a sua diversidade.
Pensemos retroativamente, vimos que a Europa moderna, no Renascimento, constituiu-se por grandes correntes transeuropeias, que atravessavam as nações em guerra, e que, em geral iam de Este para Oeste. Houve, é certo, o cristianismo, religião que foi expulsa das suas terras originárias no Médio Oriente e na África do Norte. Houve depois o Renascimento, o regresso dos gregos, a laicização, a ciência, o desenvolvimento técnico, o progresso económico, as grandes correntes de ideias e as grandes correntes literárias. Direi mesmo que o Renascimento, no século XVII, do ponto de vista arquitetónico teve a sua grande obra-prima no Norte, nas neves, em S. Petersburgo, a mais bela cidade de inspiração italiana pelo espaço e pelo céu. As luzes partem de Paris e estendem-se a toda a Europa. O Romantismo parte de Iéna e estende-se a todo o velho continente. O naturalismo, o simbolismo, o surrealismo espalham-se pelo mundo enquanto a Europa se refaz. A Europa pode, assim, começar a tomar consciência a partir de uma projeção para o futuro e de uma clara vontade de presente, mesmo sem encontrar no passado o mito de uma unidade e de uma identidade europeia. A poli-identidade é um fenómeno cada vez mais normal: crianças de casais mistos têm um sentimento de dupla pertença, às vezes mais forte do que a da identidade autónoma. E depois há as identidades concêntricas: somos da mesma família, da mesma região, do mesmo país. Podemos ter a mesma religião, podemos ser europeus, mas podemos ser também mediterrânicos e cidadãos da terra”.
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Folhetim de Verão - Capítulo 15
PARA ALÉM DAS APARÊNCIAS…
Quando Eduardo Lourenço atribuiu ao grupo de “O Tempo e o Modo” e a António Alçada Baptista uma função intelectual e ética compreendeu o cerne da questão, uma vez que, mais do que qualquer pressão direta sobre os acontecimentos, do que se tratou foi de criar condições para um gradualismo que foi correspondendo a uma maturação da sociedade portuguesa em vários campos. Se lermos com atenção a primeira série de “O Tempo e Modo”, percebemos que é a realidade que se move em diversos domínios. Na política, tratava-se de seguir uma certa dialética, que era o mesmo que usar um eufemismo para significar a semente da democracia. Na economia, a participação de Portugal no processo de integração europeia, através de EFTA, significava já a rutura com a ideia de “orgulhosamente sós”. Na sociedade, vemos que os valores tradicionais sofrem um abalo subreptício, mas real. Os dois números especiais da revista sobre “O Casamento” e “Deus O que é?” significam o tratamento de temas atualíssimos que representavam um avanço importante no campo da reflexão e das mentalidades. Para iludir a censura, os números não se inseriam na ordem periódica, para não estarem sujeitos à prova de página. No domínio da criação cultural e artística, pode-se dizer que tudo de fundamental passou por “O Tempo e o Modo” – literatura, teatro, música, artes, educação, formação, ciência, tecnologia – tudo… Edgar Morin disse que em pouco tempo uma geração avançava cinquenta anos. Simultaneamente, a Associação Internacional para a Liberdade da Cultura, com Pierre Emmanuel, e as iniciativas do Centro Nacional de Cultura, além da Fundação Gulbenkian, apesar de todas as proibições foram preparando o terreno. Leia-se o volume “Liberdade da Cultura – Preparar o 25 de Abril”, que demonstra a importância que teve em Portugal a atuação da Comissão Portuguesa para as Relações Culturais Europeias, braço do Congresso para a Liberdade da Cultura, que permitiu o maior contacto com as democracias europeias, o que reforçou o desejo de liberdade e as convicções democráticas. Pierre Emmanuel e Roselyne Chenu são referências inesquecíveis que nos lembram uma fase decisiva para a concretização da democracia. E se o facto de António Alçada ter sido protagonista nas “Conversas com Marcello Caetano” causou perplexidades, a verdade é que não podemos esquecer em que medida essa atitude contribuiu decisivamente para preparar condições de tolerância que permitiram a consolidação democrática, de que Mário Soares foi protagonista.
Um dia, António recordou que era importante para o equilíbrio de uma embarcação que nem todos se concentrassem a bombordo ou a estibordo. Para ele, se todos iam para um lado, era necessário equilibrar o outro para que o navio se não virasse. Do mesmo modo, recordava o caso do seu amigo José Gomes Ferreira, com posição política bem conhecida, que enquanto alguns lhe viravam a cara, ele fazia questão de atravessar a rua para lhe dar um abraço, pois a hombridade não escolhe ocasiões. Edgar Morin seguiu com atenção a revolução portuguesa, fiel aos seus amigos, e com especial atenção aos falsos entusiasmos e aos radicalismos de última hora. O fundamental era a defesa das liberdades fundamentais. Edgar tornou-se amigo próximo de Mário Soares, que António Alçada Baptista lhe apresentou em Paris. Quando soube da morte de Mário Soares, isso abalou-o profundamente. Depois da morte de Helena Vaz da Silva e de António Alçada foi o momento mais triste da solidariedade portuguesa.
Para Morin, a institucionalização da democracia portuguesa foi exemplar na história contemporânea. A democracia e a liberdade puderam vencer. De facto, como resulta da sua reflexão teórica a democracia não é um processo de escolha dos governos ou de apuramento de responsabilidades, é mais do que isso, uma vez que se trata de um sistema de valores éticos que permite definir o Estado de Direito como primado da lei, legitimidade do voto, legitimidade do exercício e concretização da justiça. Como se compreende, Edgar Morin sempre entendeu, por isso, que os amigos portugueses não se preocupavam com projetos e jogos de poder, mas com a reforma das mentalidades e com os fundamentos éticos da realização da dignidade humana. É nesse ponto que é importante perceber que os polos profético e político se completam. Apesar das diferenças, António e Mário Soares fazem parte da mesma raiz que Morin reverenciou – centrado na liberdade. Por isso, o projeto da nova revista portuguesa em que Edgar participou tinha as duas referência que o filósofo tanto amava – “Raiz e Utopia”. Na raiz estavam os fundamentos, na utopia o horizonte de exigência e de mudança, não da sociedade perfeita, mas da capacidade de ser melhores. Daí que Morin preferisse falar de metamorfose, fiel à natureza e à complexidade, em vez de transformação.
Para o pensador, o fundamental na revolução portuguesa estava na coerência e na coragem do Movimento da Forças Armadas que, como prometeu em 25 de Abril, devolveu à soberania popular das instituições civis a legitimidade do Estado e da Sociedade. É certo que não há perfeição, mas vontade de ser melhor, com compromissos, coerência, respeito mútuo e cidadania responsável. A ligação especial aos amigos da resistência e a pessoas como Mário Soares e Maria Barroso ou a militares democratas como Ernesto Melo Antunes ou Ramalho Eanes tornou a presença de Edgar Morin em Portugal uma referência natural que determinou uma vontade expressa de deixar registada a memória desta ligação de uma amizade solidária.
A História não se faz apenas de grandes acontecimentos. Constrói-se com grandes decisões e com pequenos passos. Pode dizer-se que alguém poderia ter grandes ambições para uma carreira ou para uma vida, no entanto no balanço geral de uma existência temos de considerar tudo. Edgar Morin conheceu por isso os gestos, de facto significativos, de um grupo de católicos inconformistas e deu-lhes uma importância especial, numa sociedade em metamorfose, desejosa de abertura e de liberdade. Por isso recordava o testemunho daquele miliciano com experiência em África que confessava a António Alçada como fora importante a leitura de “O Tempo e o Modo” durante as missões do serviço militar obrigatório, para compreender a importância das ideias e dos acontecimentos. Para além das aparências, Emmanuel Mounier ensinava, no fundo, que o acontecimento é o nosso verdadeiro mestre interior.
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Folhetim de Verão - Capítulo 14

UM CASO MUITO ESPECIAL…
Ao dobrar a idade dos cem anos Edgar Morin lembrou que algo deveria ser feito para recordar as grandes amizades que se construíram em torno de um bonito sonho, o da construção das bases de uma democracia em Portugal. Não poderia ficar esquecida a memória de quem protagonizou esse desígnio. Mais do que um projeto político, haveria que recordar os fundamentos de uma amizade sólida que o tempo evidenciou. E em conversas longas, Edgar Morin disse claramente que dois ou três casos mereciam uma recordação especial. Antes de todos, havia que destacar o exemplo de António Alçada Baptista, um jovem que aos trinta anos decidiu em nome de um ideal generoso deixar uma carreira prometedora de advogado, para abraçar a criação de uma editora e o mundo das ideias. Que melhor fazer para defender o mundo das ideias senão criar uma livraria? Muitos dos seus amigos consideraram esse gesto uma loucura, mas ninguém o demoveu, nem mesmo os dissabores vários com que se foi confrontando.
Tudo começou por uma pequena editora, inicialmente de livros jurídicos, depois houve que encontrar uma espinha dorsal. Mas um projeto desses tinha de contar com o entusiasmo de alguns jovens, e nada melhor do que mobilizar estudantes vindos da militância universitária cristã num momento especialmente difícil da vida nacional, quando o regime político de Salazar era abalado pela candidatura presidencial do General Humberto Delgado, vindo de uma carreira brilhante nas Forças Armadas, um dos esteios do Estado Novo, e pelo memorando enviado ao próprio Salazar pelo Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, recordando a Doutrina Social da Igreja que andava bem esquecida do regime e do seu timoneiro. A um tempo as Forças Armada e a Igreja Católica davam sinais de desassossego. Seria, afinal, um bom momento para agitar as águas, envolvendo os mais jovens e mobilizando quem dava sinais de querer mudar o estado de coisas. Mais do que olhar para dentro, haveria que olhar para fora e para diante. Desde o final da Grande Guerra em 1945, que a Península Ibérica faltava no espaço democrático europeu. Entretanto, João XXIII lançara o ambicioso Concílio Ecuménico Vaticano II com consequências imprevisíveis. E lançava o desafio de ir ao encontro dos sinais dos tempos, num catolicismo que desejava superar o eurocentrismo e ir para o mundo. Quando Edgar Morin, através dos amigos da revista “Esprit”, fundada por Emmanuel Mounier e agora dirigida por um antigo membro da Resistência, Jean-Marie Domenach, tem conhecimento de que algo se passa em Portugal fica alerta e rapidamente o interesse torna-se solidariedade. As ideias vão germinando, entre a utopia de um Pacto e a criação de uma revista quase gémea de “Esprit”, havia um caminho a percorrer.
Primeiro nasce o “Círculo do Humanismo Cristão”, com a força inconformista desse humanismo que punha as pessoas em primeiro lugar e que abria as portas a um ecumenismo de cristãos e não cristãos. Depois vem uma revista, com o título de “O Tempo e o Modo”, mobilizando o pensamento e a ação. Edgar Morin não esconde o entusiasmo. Encontra-se com António na Rue Jacob, na Rive Gauche parisiense, graças à hospitalidade de Domenach. Poder-se-á pensar o que queria de facto o jovem animador da Livraria Moraes. Para uns mudar o panorama político e a Igreja, para outros criar um Partido Democrata Cristão, para outros ainda mobilizar energias intelectuais para uma democracia a haver… É difícil saber-se qual o plano real do jovem António Alçada Baptista, que se fará representar anos depois como a figura bíblica de Jacob em combate com um Anjo. Dotado de uma grande capacidade de compreensão do mundo e dos sinais dos tempos, depressa percebe que não é um partido político que deseja construir. Apesar das vicissitudes editoriais, a contas com a censura e das resistências eclesiásticas (ressalvada a amizade do Cardeal Cerejeira) e do esgotamento da fortuna pessoal, são indiscutíveis as influências que vai exercendo, muito para além do que pensaria. Não terão razão os que consideram fracassado um projeto pessoal de poder global, “tendo ambicionado um alto destino, de que a sorte e, no fundo, a sua própria natureza o desviaram”, na expressão de Vasco Pulido Valente. O que António teria querido, seria “mudar o catolicismo e o país” e, em última análise, criar um partido democristão, como os que nessa época governavam o país”. Mais do que isso, Eduardo Lourenço tem razão quando atribui um papel ético e intelectual – “a salutar missão de se confessar e exorcismar por muitos”. De facto, Alçada não se reconhecia no catolicismo obsoleto do Portugal salazarista, revendo-se no personalismo de Emmanuel Mounier e no projeto de uma Igreja com genuínas preocupações sociais. E Edgar Morin afirma que testemunhou uma rápida evolução intelectual entre os seus amigos; “partindo de um catolicismo que se tornava cada vez mais social”, o que determinou uma “evolução comparável a meio século”. De facto, António fez uma revolução cultural e ainda uma “revolta de comportamento, incluindo os comportamentos amorosos, uma espécie de Maio de 68, avant la lettre” (segundo Eduardo Lourenço). Na atividade editorial, basta vermos os títulos do Círculo da Poesia, além da revista “Concilium” animada por Helena Vaz da Silva. No mundo literário, temos Jorge de Sena, Nemésio, Ramos Rosa, Alexandre O’Neill, Sophia, Ruy Belo, Pedro Tamen, Joaquim Manuel Magalhães, João Miguel Fernandes Jorge, mas ainda Nuno Bragança ou Maria Velho da Costa. Razão tem Pedro Mexia quando diz que AAB “escreveu dois livros fundamentais para qualquer pessoa que queira pensar o catolicismo português, fundou uma das revistas mais estimulantes do nosso panorama cultural e uma excelente editora e foi um bom presidente do Instituto Português do Livro”. Afinal, o lugar de António Alçada no panorama português é muito mais relevante do que parece à primeira vista. Para Edgar Morin, capitaneia a abertura de horizontes para a Europa e o mundo. O reconhecimento da importância do Brasil é uma marca de universalismo, com repercussões futuras indiscutíveis. Cultivou a liberdade como valor ético e cívico, foi um memorialista exemplar, a sua “Peregrinação Interior” é uma obra maior do ensaísmo e como cidadão e escritor foi um catalisador de energias no sentido de uma democracia moderna.
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Folhetim de Verão - Capítulo 13
OS SETE PILARES DA SABEDORIA (II)
Prosseguimos a reflexão de Edgar Morin sobre os Sete Pilares da Sabedoria.
Afrontar as Incertezas. As ciências fizeram-nos adquirir muitas certezas, mas revelaram-nos no curso do século XX inumeráveis domínios de incerteza que surgiram nas ciências físicas (microfísica, termodinâmica, cosmologia), na evolução biológica e nas ciências históricas. É preciso ensinar princípios de estratégia que permitam afrontar as incertezas e o inesperado, bem como modificar o seu desenvolvimento em virtude de informações entretanto adquiridas. É preciso aprender a navegar num oceano de incertezas, através do arquipélago das certezas. A fórmula do poeta grego Eurípedes, antiga de 25 séculos, é mais atual que nunca: “os deuses reservam-nos muitas surpresas: o esperado não acontece e eles abrem a porta ao inesperado”. O abandono das conceções deterministas da história humana, que acreditavam poder prever o nosso futuro, o exame dos grandes acontecimentos e acidentes do nosso século, todos inesperados, bem como o carácter desconhecido da aventura humana devem incitar-nos a preparar os espíritos para esperarem o surpreendente e para o enfrentarem. É necessário que todos os que têm a tarefa de ensinar se assumam nos postos avançados da incerteza do tempo.
Por outro lado, urge Ensinar a Compreensão. De facto, a compreensão é ao mesmo tempo meio e fim da comunicação humana. Ora, a educação para a compreensão está ausente dos nossos ensinos. O planeta necessita em todos os sentidos de compreensão mútua. Sendo dada a importância da educação para a compreensão, em todos os níveis educativos, e em todas as idades, o desenvolvimento da compreensão exige uma reforma de mentalidades. Tal deve ser obra da educação do futuro. A compreensão mútua entre humanos, seja próximos ou estrangeiros, é vital para que as relações humanas saiam do seu estado bárbaro de incompreensão. Daí a necessidade de a estudar, nas suas raízes, modalidades e efeitos. Um tal estudo é tanto mais necessário quanto deve ater-se não aos sintomas, mas às causas dos racismos, xenofobias e desprezos. Tal constituiria uma das bases mais seguras da educação para a paz, à qual estamos ligados por fundação e vocação.
Por fim, importa cultivar uma Ética do Género Humano. O ensino deve conduzir-nos a uma antropoética, pela consideração do carácter ternário da condição humana, envolvendo o indivíduo, a sociedade e a espécie. Neste sentido, a ética indivíduo / espécie necessita de um controlo mútuo da sociedade pelo indivíduo e do indivíduo pela sociedade. Isto é a Democracia, em que a ética individuo / espécie apela no século XXI a uma cidadania terrestre. A ética não deve ser ensinada por lições de moral. Deve formar-se nos espíritos a partir da consciência do humano como parte da sociedade e parte da espécie. Trazemos connosco esta tripla realidade, todo o desenvolvimento verdadeiramente humano deve comportar o conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e da consciência de pertença à espécie humana. A partir daí desenham-se as duas finalidades ético-políticas do novo milénio: estabelecer uma relação de controlo mútuo entre a sociedade e o individuo pela democracia, consumando a Humanidade como comunidade planetária. A aprendizagem deve contribuir não apenas para a tomada de consciência da nossa Terra-Pátria, mas também permitir que esta consciência se traduza numa vontade de realizar a cidadania terrena.
Devemos, assim, compreender os sete pilares que Edgar Morin considera numa cultura de autonomia e responsabilidade: prevenção do conhecimento contra o erro e a ilusão; ensino de métodos que permitam ver o contexto e o conjunto, em lugar do conhecimento fragmentado; o reconhecimento do elo indissolúvel entre unidade e diversidade da condição humana; aprendizagem duma identidade planetária considerando a humanidade como comunidade de destino; a exigência de apontar o inesperado e o incerto como marcas do nosso tempo; a educação para a compreensão mútua entre as pessoas, de pertenças e culturas diferentes; e o desenvolvimento de uma ética do género humano, de acordo com uma cidadania inclusiva.
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Folhetim de Verão - Capítulo 12
OS SETE PILARES DA SABEDORIA
Edgar Morin e Federico Mayor, dois membros do Centro Nacional de Cultura, concordaram na necessidade de encontrar ideias sobre a essência da Educação do Futuro no contexto do pensamento complexo. Edgar Morin pôs, assim, a tónica em sete princípios chave que considera necessários. A UNESCO considerou através do seu Diretor-Geral, contribuir para as profundas alterações do pensamento indispensáveis para a preparação do futuro. O saber científico, no qual se apoia esta reflexão, é não apenas provisório, mas ainda assenta nos profundos mistérios respeitantes ao Universo, à vida e ao nascimento do ser humano. Aqui se abre o indecidível no qual intervêm as opções filosóficas, as crenças religiosas através das diferentes culturas e civilizações. Eis os sete saberes necessários.
Começamos pelos obstáculos ao conhecimento – o erro e a ilusão. É estranho que a educação que visa comunicar os conhecimentos seja cega relativamente ao conhecimento humano. Considerem-se deste modo os seus dispositivos, as suas doenças, as dificuldades, as propensões para o erro e para a ilusão, sobre que infelizmente a escola não se preocupa devidamente, evitando fazer conhecer o que é conhecer. Com efeito, o conhecimento não pode ser considerado como um instrumento “ready made”, que se poderia utilizar sem examinar a sua natureza. O conhecimento do conhecimento deve aparecer como uma necessidade primeira que serve de preparação para o confronto com os riscos permanentes do erro e da ilusão, que não cessam de paralisar o género humano. Torna-se necessário armar cada espírito para o combate vital da lucidez. Importa introduzir e desenvolver no ensino o estudo dos caracteres cerebrais, mentais e culturais dos conhecimentos humanos, dos seus processos e das suas modalidades, disposições físicas como culturais que favorecem o erro e a ilusão.
Em segundo lugar, urge salvaguardar os princípios de um conhecimento pertinente. Há um problema capital, sempre desconhecido, que é o da necessidade de promover um conhecimento capaz de considerar os problemas globais e fundamentais, para aí se inscreverem os conhecimentos parciais e locais. A supremacia de um conhecimento fragmentado segundo as várias disciplinas torna muitas vezes impossível um elo entre as partes e o todo. Importa considerar um conhecimento capaz de tratar os seus objetos, no contexto, no complexo e no conjunto. É necessário desenvolver a aptidão natural do espírito humano para situar todas as informações num contexto e num conjunto; daí ser necessário ensinar os métodos que permitam tratar as relações mútuas e as influências recíprocas entre as partes e considerar tudo num mundo complexo.
Em terceiro lugar, trata-se de Ensinar a Condição Humana. O ser humano é ao mesmo tempo físico, biológico, cultural, social e histórico. É essa unidade complexa da natureza humana que está desintegrada no ensino, através de diversas disciplinas, pelo que se torna difícil ensinar a condição humana. É preciso restaurá-la, de modo a que cada qual, onde quer que esteja, tome consciência quer da sua identidade complexa, quer da sua identidade comum relativamente aos outros seres humanos. Como é possível reconhecer a unidade e a complexidade humanas, a partir da educação contemporânea, reunindo e organizando conhecimentos na dispersão das ciências da natureza, das ciências humanas, da literatura e da filosofia e mostrar o elo indissolúvel entre a unidade e a diversidade de tudo o que é humano?
Em quarto lugar, urge Ensinar a Identidade Terrena. O destino doravante planetário do género humano é uma realidade-chave ignorada pelo ensino. O conhecimento dos desenvolvimentos da era planetária deverá crescer no século XXI, e o reconhecimento da identidade terrena, que deverá ser cada vez mais indispensável para cada um e para todos, tornar-se-á um dos objetos maiores do ensino. Convém ensinar a história da Era Planetária, que começa com a comunicação de todos os continentes desde o século XVI, e mostrar como se tornaram inter-solidárias todas as partes do mundo, sem ocultar as opressões e dominações que assaltam a humanidade e não desapareceram. Será necessário indicar o complexo da crise planetária que marca o século XX, mostrando que todos os seres humanos, agora confrontados com os mesmos problemas da vida e da morte, vivem numa mesma comunidade de destino.
[continua]
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Folhetim de Verão - Capítulo 11
O "NOSSO" EDGAR MORIN
Em Portugal começou a falar-se de Edgar Morin nos anos sessenta do século XX, quando o francês era uma língua dominante entre nós. Para a direita Morin era um homem de esquerda; para a esquerda como comunista tradicional: um traidor. Para o setor mais jovem que fazia da crítica ao revisionismo o seu principal ponto de honra, era um neorrevisionista a ignorar. Só aqueles que se situavam fora dessas ortodoxias encontravam matéria para reflexão numa obra como Introduction à une Politique de l’Homme. E foi precisamente através destes que Morin como pensador do político veio pela primeira vez a Portugal. A partir desse momento, num processo já longo, o seu nome conquistou progressivamente espaço noutros setores: uma parte significativa da sua obra foi traduzida em português; convites para colóquios e congressos sucederam-se e no final dos anos setenta surge citado no ensino secundário e em alguns setores do ensino superior.
Até 1974 apenas duas obras suas tinham sido publicadas em Portugal : O Cinema ou o Homem Imaginário (Moraes, 1970) e La Rumeur d’Orléans (Início, 1971). As duas obras começaram por ter saída reduzida, mas alguns anos depois esgotaram-se. A história de La Rumeur d’Orléans é particularmente curiosa e faz-nos pensar num dos numerosos insólitos que escapam às muito objetivas estatísticas de vendas. Neste caso o insólito tem a ver com uma capa. A primeira versão desta tradução era branca, sóbria, sem qualquer ilustração. Depois da revolução de Abril, certamente para ultrapassar as dificuldades financeiras da casa editora (que entretanto abrira falência) alguém decidiu compensar o investimento falhado na Sociologia, através de uma nova estratégia de marketing. Aproveitando os ventos da liberalização dos costumes, surgiu uma capa insinuante – uma teenager nua numa posição provocante – e o inacreditável aconteceu: quando, em 1979, o livro se tornou matéria de estudo obrigatório na disciplina de Psicossociologia na Universidade Nova de Lisboa, os estudantes foram encontrar La Rumeur d’Orléans nos alfarrabistas do Parque Mayer entre matéria pornográfica. Uma vez descoberto o segredo, houve que refazer o itinerário dos “especialistas” na matéria, e comprar os últimos exemplares disponíveis que custavam cerca de 20 escudos cada.
Depois de um vazio de quatro anos, as Publicações Europa-América e Francisco Lyon de Castro empenharam-se na divulgação da obra de Edgar Morin, que se inicia em 1975 com a tradução de Le Paradigme Perdu. Depois de um ano de insucesso, assiste-se ao crescimento das vendas, que viria a justificar uma terceira edição. Depois, L’Homme et la Mort conhece um ritmo de aceitação rápido. 1982 é o ano da grande aventura editorial: os dois volumes de La Méthode são publicados com poucos meses de intervalo. O primeiro tem uma venda que se pode considerar boa, já o segundo terá uma saída mais lenta. Um ano depois, é a vez de De la Nature de l’URSS, cuja aparição é marcada pela presença de Morin. E, em outubro do mesmo ano, Science Avec Conscience é publicado e, em dezembro, sob o patrocínio do mesmo editor, realiza-se em Lisboa um Colóquio sobre a complexidade, no qual participam Edgar Morin e sete professores universitários portugueses ligados a diversos domínios da investigação. Este debate foi publicado em 1984 com o título Le Problème Epistemologique de la Complexité. Finalmente surgiu Sociologie precedido de Pour Sortir du XXe Siècle, este último publicado pela Editorial Notícias.
Com esta rápida incursão na paisagem editorial, parece legítimo afirmar-se que Morin é um dos pensadores contemporâneos mais traduzidos em Portugal. (…) Não é ilógico afirmar-se que tendo em conta a entrada de Morin no ensino, há em Portugal um mercado significativo de leitores potenciais. Para completar esta perspetiva no panorama cultural português, refira-se que entre 1978 e 1981 o seu nome surge como Conselheiro Cultural da revista “Raiz e Utopia – Crítica e Alternativas para uma Civilização Diferente” – dirigida por Helena Vaz da Silva. Em seguida por convite do Instituto Piaget português esteve envolvido em diversas iniciativas nos domínios da Aprendizagem e Desenvolvimento, Epistemologia de Piaget e Novas Revoluções da Ciência. As relações com o Centro Nacional de Cultura desde então tornaram-se permanentes, o que deu lugar à publicação do volume “Pensar o Milénio com Edgar Morin” em diálogo com: Alberto vaz da Silva, Ana Barbosa, António Alçada Baptista, Emílio Roger Ciurana, Frederico Mayor, Francisco Lyon de Castro, Guilherme d’Oliveira Martins, Helena Vaz da Silva, Jean Louis Le Moigne, José Mariano Gago, Maria Calado, Maria de Lourdes Pintasilgo, Mário Ruivo, Raissa Mézieres, Roberto Carneiro e Emílio Rui Vilar.
É um percurso cheio de ligações afetuosas e reflexivas.
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Folhetim de Verão | Capítulo 3
A PRESENÇA DE HELENA…
Que melhor modo de prosseguir esta caminhada, senão reproduzir ipsis verbis as palavras de Edgar sobre Helena Vaz da Silva?
Na época da ditadura, em 1965 ou 1966, fui convidado a ir a Lisboa pela revista “O Tempo e o Modo”, dirigida por António Alçada Baptista. “O Tempo e o Modo” desenvolvia uma resistência intelectual obstinada, que lhe valeu o branqueamento frequente de inúmeras páginas. Descobri em volta de António um grupo jovem, ardente, de reflexão, talentoso, no qual se distinguia a juventude, o ardor, a reflexão e o talento de Helena Vaz da Silva.
Que deslumbramento o meu ! A Helena apareceu-me como um ser solar, “a minha irmã solar”, disse-lhe eu. E o nosso elo imediato enraizou-se ao longo dos anos, aprofundou-se numa fraternidade infinita. Voltei várias vezes a Lisboa e todas as vezes era a alegria dos reencontros com os amigos de “O Tempo e o Modo”, com a Helena, com o Alberto cuja personalidade me inspirou um sentimento muito profundo que completou a minha ligação com a Helena.
De 1965 a 1973, a Helena e a maioria dos seus amigos do grupo de “O Tempo e o Modo”, sofreram em curtos anos uma evolução comparável a meio século. Partindo de um catolicismo que se tornava cada vez mais social, abriram-se a todas as correntes de cultura, incluindo as da contra-cultura californiana, e creio que viveram com exaltação e avidez uma evolução tão rápida que em 6-8 anos transpuseram meio século e os fez mudar de mundo e de tempo.
Voltei e fiquei instalado em casa deles na altura da revolução dos cravos. Portugal estava a abrir-se. A Helena levantou voo como uma ave migratória até então encarcerada na gaiola. Ajuda a lançar o “Expresso”, funda a revista “Raiz e Utopia” na qual tive a alegria de colaborar, desdobra-se em todos os domínios culturais acabando naturalmente por presidir ao Centro Nacional de Cultura. Outros textos evocarão as suas múltiplas actividades entre as quais as do Parlamento Europeu. Por meu lado gostaria sobretudo de insistir na sua energia resplandecente, na sua abertura extrema, no seu espírito europeu ao mesmo tempo que universal, como o é todo o grande espírito europeu.
Em 2001 ela ofereceu-me, no meu aniversário, o mais belo presente do mundo, um colóquio “Pensar o Milénio” que organizou em Sintra em torno das minhas ideias. Desse colóquio resultou um livro, que ela compôs com arte e ternura.
Esse livro, nosso filho espiritual, ela não mo pôde entregar pessoalmente, por ocasião da cerimónia que organizara com esse objectivo em Julho de 2002. A sua energia indomável, a sua coragem, o amor do Alberto e dos seus filhos haviam-lhe permitido ultrapassar uma doença reputada incurável. Em Junho desse ano eu encontrara-a curada, o mal parecia vencido, e jantámos juntos à beira Tejo, com ela resplandecente, afectuosa e forte.
Mas o mal recalcado permanecia escondido, e retomou a ofensiva. Quando vim a Lisboa em 12 de Julho para a cerimónia que ela organizara, encontrava-se hospitalizada. Eu quis vê-la, mas, por “coquetterie”, ela preferiu que nos ficássemos por uma conversa telefónica. Voltei a Paris, não demasiado inquieto, certo de que a sua força vital levaria a melhor uma vez mais.
E um dia em Agosto, subitamente um telefonema de um dos seus filhos informa-me do seu falecimento.
Continuo inconsolável, mas a Helena habita indefectivelmente em mim, resplandecente como no primeiro dia, luminosa para sempre.
Edgar Morin
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Folhetim de Verão - Capítulo 2
AS PALAVRAS DE EDGAR MORIN
Edgar Morin tem uma ligação especial a Portugal e manifestou desejo de o deixar claro neste momento de sua vida, quando jubilosamente ultrapassa o limiar dos 100 anos de idade. Subscreveu, por isso, um testemunho singelo e impressivo, onde fica clara essa relação e que constitui a demonstração de um apreço especial.
«António Alçada Baptista, que animava, nos anos 60, a oposição cultural ao regime de Salazar, convidou-me a ir a Portugal fazer uma conferência no quadro das suas atividades democráticas. O meu nome foi-lhe sugerido pelos seus amigos da revista Esprit, entre os quais Jean-Marie Domenach. A partir desse momento, nasceu entre nós uma amizade indissolúvel. Fiz esta conferência e liguei-me, também, a muitos dos seus amigos de “O Tempo e o Modo”, como Helena Vaz da Silva, uma mulher maravilhosa, além de seu marido Alberto, do João Bénard da Costa e do Pedro Tamen, todos, pessoas notáveis.
Voltei várias vezes a Portugal e a relação com o António tornou-se cada vez mais profunda. É uma das maiores amizades da minha vida. Estive com ele na sua casa de campo. Uma destas visitas foi a seguir à minha estadia na Califórnia, nos anos 70, e lembro-me como foi entusiasmante participar com ele na sua luta pela democracia em Portugal.
O paradoxo da Revolução dos Cravos foi que, normalmente, os militares fazem golpes de Estado para subjugar. Em Portugal, de uma forma única e excecional, foram os militares colonialistas que fizeram o golpe de Estado democrático que derrubou o sucessor da ditadura de Salazar, Marcelo Caetano. O próprio António ficou surpreendido com este golpe mas, claro está, depois ficou muito contente. E eu tive a oportunidade de participar nesses dias maravilhosos de libertação, de euforia.
Continuámos a ver-nos até ao momento em que percebi que ele se sentia muito cansado. Ainda pude vê-lo pouco tempo antes da sua morte, em 2008. Em síntese, direi que António Alçada Baptista é uma figura histórica porque numa época de silêncio total, a revista O Tempo e o Modo e a sua ação foram uma afirmação de liberdade.
Foi o António que me apresentou a Mário Soares que estava exilado em Paris. Levou-o a minha casa e estivemos várias vezes juntos antes dos grandes acontecimentos. Lembro-me de um episódio curioso que se passou no caso “República”, num momento em que houve em Portugal uma ameaça de ditadura, uma espécie de revolução popular com o apoio de uma parte dos militares. O Observateur publicou um grande artigo em que se afirmava – como à época também se dizia no Le Monde - que, em Portugal, o importante era o pão e não a liberdade. Eu escrevi um artigo sobre este caso mostrando que aqui o importante era a liberdade e não o pão. O que reconfortou muito Mário Soares. Esta amizade também só extinguiu com o seu fim.
E tudo isto está ligado. António, graças a quem pude conhecer Mário Soares, graças a quem pude intervir num momento importante da revolução portuguesa, graças a quem me mantenho, em permanência, ligado a Portugal».
Este testemunho foi dado, de um modo emocionado, a Ana Barbosa em Marraquexe, com a preocupação que pudesse ficar registado como sinal de homenagem. De facto para Edgar Morin não apenas é importante destacar o caso singular da revolução portuguesa, como também evidenciar o papel desempenhado por Mário Soares na salvaguarda em Portugal de um Estado de Direito, baseado nos direitos fundamentais e na dignidade humana, numa palavra, num Democracia humanista, com o primado de instituições civis legitimadas pelo voto e respeitadoras do exercício de uma cidadania livre e responsável, e com instituições participadas pelos cidadãos e mediadoras em nome do bem comum. A demonstrar tão grande admiração, Edgar Morin sentiu profundamente o falecimento de Mário Soares, como sentira antes as perdas de Helena Vaz da Silva e de António Alçada Baptista. Foi como se uma parte decisiva do que o ligava a Portugal se tivesse perdido para sempre, não sem que tivesse permanecido a profunda ligação à democracia portuguesa, como exemplo moderno uma cidadania ativa, ciente da exigência da permanência de instituições legítimas.
A lembrança de Edgar é muito sentida e nota-se especialmente quando homenageou Helena e Alberto Vaz da Silva:
«No decorrer dos anos 69 ou 70, descobri o esplendor de Lisboa e, ao mesmo tempo, o esplendor de maravilhosas amizades. Tinha sido convidado por António Alçada Baptista, que animava a revista “O Tempo e o Modo”, rodeado de uma plêiade de espíritos jovens apaixonados por liberdade e por justiça em pleno centro da ditadura salazarista. Entre esses amigos, ligou-me à Helena e ao Alberto um especial entusiasmo. Gostava profundamente de ambos. Ela, com o seu alegre dinamismo, a sua luminosa vitalidade; ele, com a sua reserva, a sua contensão, a sua sabedoria púdica. Nascidos e criados num mundo de tradições, tinham-se emancipado dele, fazendo em alguns anos o itinerário de três gerações: eu acabava de chegar da Califórnia e eles já estavam parcialmente californizados, ainda que conservando a sua lusitaneidade interior. Alberto era advogado e eu nunca soube dessa sua profissão. O que nos ligou foi o seu profundo sentido do mistério da vida, e lembro-me de uma longa noite em que, enquanto a minha mulher falava com a Helena, nós ficámos os dois, com o Alberto a fazer-me o horóscopo com um cuidado meticuloso: ele revelou-me a mim próprio traços da minha personalidade que nunca tinham aflorado à minha consciência. Qualquer coisa de comum nos unia um ao outro. Uma noite inteira nos ligou fraternalmente e esse sentimento fraterno perdurou. Voltei muitas vezes a Lisboa durante os anos 70, e tive a sorte de testemunhar a revolução dos cravos, momento de êxtase na história portuguesa que, como todos os grandes êxtases da História, nos marcou para sempre com a sua poesia, iluminadora e fugitiva, antes que o mundo volte a cair na prosa. Voltei nos anos seguintes, mas consagrei-me depois à América Latina, especialmente ao Brasil, filho de Portugal. Soube, com desgosto, da morte da Helena em 2002, mas não tive conhecimento da do Alberto e só mais tarde a notícia chegou até mim. Tal como o derradeiro brilho duma estrela morta há milhões de anos-luz que nos atinge com toda a sua intensidade muito mais tarde, assim me marcou a morte de Alberto.Direi do Alberto que possuía uma presença poética. Emanava dele uma aura de gravidade sorridente, de bonomia, de doçura extrema. Ser inesquecível, é por mim inesquecido e lamento por razões de última hora não poder estar fisicamente presente na homenagem que lhe é prestada».
Edgar Morin
29 de novembro de 2016
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É sempre uma festa o reencontro com Edgar Morin, na bonita idade de 102 anos. E é oportunidade para lembrarmos os amigos comuns, que já nos deixaram, mas que estão bem presentes nas nossas memórias, num fecundo caminho em prol da liberdade – António Alçada Baptista, Helena e Alberto Vaz da Silva ou Mário Soares. Há dias, tive a honra de abrir a sessão na Fundação Oriente, durante a qual o mestre encantou uma plateia fascinada pelo seu brilhantismo e oportunidade. Lembrei os sete pilares que propõe para a educação contemporânea, e ainda há pouco subscreveu com Elisabeth Badinter, Tahar Ben Jelloun e Pierre Nora um grito de alerta sobre a falta de qualidade da escola, afirmando que saber escrever não se reduz a alinhar frases, mas a dar sentido ao que escrevemos. De um modo singularmente acessível, falou-nos da complexidade, usando ideias claras e distintas – em nome das cabeças bem feitas de Montaigne. Há pouco, publicou De Guerre en Guerre – de 1940 à l’Ukranie (Aube, 2023) e compreendemos que “navegamos num imenso oceano de incertezas, onde existem apenas pequenas ilhas para nos irmos reabastecendo”. A sua vida, desde as origens sefarditas, é o percurso de um intelectual comprometido com a liberdade e a dignidade humana, ao lado de Alain Touraine e de Paul Ricoeur (como salientou Teresa de Sousa). Presenciou conflitos e guerras, tomou posição, denunciou a degradação ambiental, como exigência humana, antes de se tornar moda. Lembrou-nos o relatório do Clube de Roma (1972) sobre “Os Limites do Conhecimento”, salientando a tendência para o rápido esgotamento dos recursos naturais e a lentidão na tomada de medidas. Agora, falou-nos de uma nova carta do humanismo, a propósito da experiência dos países de língua portuguesa e do Atlântico Sul. E pôs a tónica no risco do que designou como trans-humanismo, que leva a sociedade a pensar-se imortal, perante os avanços científicos e técnicos, idolatrando a inteligência artificial, em lugar de a pôr ao serviço das pessoas e da natureza. A sociedade ilusória, baseada numa elite do dinheiro e do poder, esquece os milhões de seres humanos que vivem na pobreza e na precariedade. “O humanismo significa o respeito e a consideração que qualquer ser humano merece. E temos de reconhecer a humanidade na sua unidade e na imensa diversidade”. Vivemos, na nossa aventura coletiva, diversas crises: ambiental, económica, democrática e da mundialização. As democracias têm perdido força. Um país como a China dispõe de meios tecnológicos que controlam os indivíduos e a sua vida, mercê das tecnologias de informação e comunicação e do reconhecimento facial, numa lógica de submissão neototalitária. Países como a Rússia, em parte a Turquia e na América do Sul cultivam o despotismo com fachada democrática. A mundialização, sobretudo económica, levou ao surgimento do racismo, da intolerância, do medo das diferenças e dos novos nacionalismos – até ao que acontece na Ucrânia – o que não tem permitido tornar uma comunidade de destino em fator de solidariedade. “Esta guerra comporta perigos enormes, para além dos massacres em todos os campos e do risco da destruição de recursos alimentares e agrícolas”. Há uma escalada que pode degenerar num novo tipo de conflito mundial, para o qual poderemos a estar a ser arrastados. Se ninguém previu o início da guerra em 1914, bem com a invasão da Ucrânia ou a pandemia, isso significa que temos de saber esperar o inesperado e preparar-nos para tal. Edgar Morin afirma que temos de saber escolher entre a barbárie e a solidariedade, compreendendo o diálogo entre “polemos”, o debate de ideias, “eros”, a importância do amor, e “tanatos”, a consciência da morte. Temendo o risco da regressão, o pensador acredita nas ideias e na esperança que representam. E esperar o inesperado é acreditar na prevalência da dignidade humana como fator de paz.
GOM