Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Eduardo Marçal Grilo acaba de lançar uma obra que merece especial atenção pela dimensão histórica e pelo contributo inestimável para a compreensão da importância da prioridade dada à Educação nos dias de hoje. Educação e Liberdade – A primavera de Veiga Simão, os desmandos do PREC e a renovação de Sottomayor Cardia (Clube do Autor, 2024) é um livro em que nos deparamos com uma análise serena e objetiva, com pormenores muito significativos, capazes de fazer luz sobre a génese das mudanças operadas em momentos decisivos da construção da nossa democracia. Não se trata, por isso, apenas de uma análise historiográfica, mas de uma reflexão crítica, uma vez que o autor tem provas dadas de uma preocupação permanente com a necessidade de um reformismo atuante, gradualista, a um tempo prudente e audaz. No caso da “primavera” de Veiga Simão, acompanhamos um caminho fértil, quer nos ensinos básico e secundário, quer no ensino superior. A experiência de Lourenço Marques do antigo reitor da Universidade tornado Ministro com Marcelo Caetano revela-se de grande utilidade, somando-se a uma arguta compreensão da necessidade de fazer entrar a sociedade na democracia. Daí todas as resistências e incompreensões, mas também as dúvidas e hesitações.
Partimos de dois documentos essenciais de Veiga Simão de 1971: o projeto de Sistema Escolar e as linhas gerais de Reforma do Ensino Superior. No primeiro, a escolaridade obrigatória deveria ser estendida de seis para oito anos, o que não avançaria senão em 1986, para os nove anos da Lei de Bases; o ensino secundário envolveria os liceus clássico, técnico e artístico e o ensino superior seria ministrado em universidades, institutos superiores politécnicos e outros estabelecimentos de ensino superior. Rompendo com a ideia da impossibilidade de autorreforma, as novas universidades foram uma resposta com virtualidades claras que chegam aos nossos dias, e que o autor conhece como ninguém. Houve que intervir renovando a estrutura, e foi o que aconteceu. Francisco Sá Carneiro diria, aliás, com justiça, em 1973, depois de renunciar ao mandato na Ala Liberal, que o setor da Educação Nacional foi o que se revelou mais dinâmico e renovador. Depois de 25 de Abril, as lições da Revolução foram muito duras, obrigando, porém, segundo o autor, a um grande pragmatismo e à defesa dos valores em que se acredita. No I Governo Constitucional, Sottomayor Cardia “entrou no Ministério como um tufão, capaz de derrubar as estruturas que tinham sido erguidas durante o período revolucionário”. O seu papel foi fundamental nos dois anos em que esteve no ministério, empenhando-se na regulamentação da gestão das universidades e das escolas, na definição das questões do ensino da Medicina, na restruturação da Universidade Nova, na educação pré-escolar, no lançamento dos fundamentos de uma nova Lei de Bases do Sistema Educativo ou na atenção ao ensino superior privado. Ao lermos esta obra, indispensável para a compreensão dos avanços significativos alcançados no domínio educativo, ressaltam três referencias – a personalidade de Veiga Simão e a sua orientação estratégica num sentido de abertura e de modernização; a determinação de Mário Sottomayor Cardia em estabilizar uma orientação reformista democrática no campo da educação e a perspetiva assumida por Eduardo Marçal Grilo num sentido de exigência e rigor, com compreensão dos poderosos desafios de modernização, de desenvolvimento humano e de internacionalização.
Eduardo Marçal Grilo em Salazar e a Educação no Estado Novo (Clube do Autor) procede a uma análise em que procura ver as razões do atraso educativo português no salazarismo.
QUE POLÍTICA EDUCATIVA? No livro de Christine Garnier Férias com Salazar (1952) surgem considerações sobre o que Oliveira Salazar pensava sobre as políticas educativas. À pergunta “qual deveria ser o principal fator da educação em Portugal?”, a resposta não se faz esperar: “A família. Por felicidade, nós dispomos ainda em Portugal um fator favorável embora insuficiente; a família conserva uma certa consistência ao lado da desagregação que por toda a parte se lhe nota. Afirmando que a educação é da competência e da alçada da família, a Constituição Portuguesa quis exprimir não só o pensamento de que o Estado não pode fazer obra educativa contrariamente ao espírito da família de que a criança proveio, mas o de que a educação deve fazer-se principalmente no seio familiar”. Na introdução que escreveu para a entrevista que António Ferro lhe fez, as considerações educativas do então Presidente do Conselho tinham sido semelhantes: “pesam sobre nós defeitos tradicionais, que é mister desenraizar das almas, do carácter dos portugueses. Pesa conjuntamente com esses defeitos uma educação viciosa que nos não dá rendimento preciso. (…) A obra educativa a realizar, mormente nesta época de renascimento nacional, tem de partir dum ato de fé na Pátria portuguesa e inspirar-se num são nacionalismo”.
EDUCAÇÃO E ESTADO NOVO… Eduardo Marçal Grilo em Salazar e a Educação no Estado Novo (Clube do Autor) procede a uma análise em que procura ver as razões do atraso educativo português no salazarismo. Além da perspetiva que demonstra o diminuto interesse do governante pela função educativa, compreendemos que esse entendimento se estende ao grave problema do analfabetismo, que não é visto como prioridade primeira: “Considero mais urgente a constituição de vastas elites do que ensinar o povo a ler”. E assim a limitada definição de um quadro global (ler, escrever e contar) tem de ser lida em contraste com a preocupação que encontramos, designadamente em textos emblemáticos desde Garrett a Adolfo Coelho, sem entrarmos em linha de conta com as reformas do início do século XX, que não puderam ir além das boas intenções, considerando a instabilidade política vivida. Se o discurso é propositadamente limitador e se, nas suas origens, há a preocupação de romper com as medidas visando fazer avançar o país, a verdade é que os acontecimentos mundiais irão forçar um gradualismo reformista, sobretudo no pós-guerra. Como diz o Presidente da República no Prefácio: “o autor demonstra por que razão a educação foi um dos flagrantes fatores de retardamento nacional, entre os anos trinta e sessenta, apesar dos esforços meritórios de alguns visionários ou arrojados”. De facto, “o Estado Novo não fez na área da educação o investimento que o país necessitava, mas a taxa de analfabetismo sofreu entre 1930 e 1970, uma redução de 34%: em 1930 haveria em Portugal cerca de 70 por cento de analfabetos, e em 1970 cerca de 26 por cento” … Esta evolução, contudo, só avançará de 1950 até aos anos setenta, havendo vários fatores a considerar, desde a criação das regentes escolares até ao plano de alfabetização dos anos cinquenta, passando pelo efeito do serviço militar obrigatório, que deve ser lembrado.
Importa recordar que a primeira alteração introduzida no ensino primário depois de 1926 ocorreu logo em 1927, na Ditadura Militar, antes do Estado Novo, sendo ministro da Instrução Pública Alfredo Magalhães, que alterou a estrutura do ensino primário adotada em 1919 e que reduziu a escolaridade obrigatória de cinco para três anos, facto sem paralelo no contexto das políticas comparadas, já que a evolução normal seria a de um progressivo enquadramento que permitisse um aumento na taxa de escolarização. A influência republicana no meio dos educadores e professores não terá sido alheia a esta orientação, que viria a ser confirmada após a ditadura militar. A reforma de 1936 de Carneiro Pacheco reforçou esse ponto de vista, baseando-se numa orientação ideológica marcada pela doutrinação da juventude, num sentido eminentemente nacionalista e de afirmação de uma “ordem” centrada num chefe absoluto e incontestado e na clara recusa do pluralismo. “As nações que querem viver baseiam a disciplina interior na autoridade de um governo ‘com autoridade’ e procuram dispor de soldados capazes de fazer triunfar o seu direito” – dirá o ministro da Educação Nacional, na defesa da Mocidade Portuguesa.
QUE MODERNIZAÇÃO A evolução da situação internacional no decurso dos anos quarenta conduzirá, todavia, a uma progressiva mudança no discurso e na concretização política. Em 1940 é posto em prática o ambicioso plano dos centenários, no tocante às construções escolares, havendo inovações no ensino industrial, profissional e agrícola ainda que concebido de forma marginal na relação ao ensino liceal, visto aquele como “ensino dos outros e para os filhos dos outros”. Em 1952, com o ministro Pires de Lima há uma clara tomada de consciência da situação alarmante que se vivia em matéria de analfabetismo, o que obrigou à definição de um plano que envolveu a obrigatoriedade efetiva do ensino primário, o recenseamento escolar, o reforço da fiscalização e a educação de adultos. Pode dizer-se que este momento é o mais importante para o progresso efetivo na luta contra o analfabetismo. Mas será Francisco Leite Pinto o protagonista, no dizer de Rómulo de Carvalho, de uma “política de valorização da educação e da formação dos recursos humanos, como resposta às exigências de uma economia moderna e como forma de promoção de uma certa mobilidade social”. Assim, em 1959, recordo o que aconteceu, o ministro concebeu um plano que denominou de fomento cultural, cuja realização muito ambiciosa necessitaria de meios financeiros e técnicos internacionais. Estabeleceu então contactos com organismos internacionais, a começar na OCDE, no âmbito da aplicação do Plano Marshall, e obteve o apoio indispensável, criando-se a partir daí um núcleo de especialistas, no âmbito do Projeto Regional do Mediterrâneo, que envolveu além de Portugal, a Espanha, a Itália, a Grécia e a Turquia. Deste modo, o despacho do ministro Leite Pinto de 21 de novembro de 1959 cometeu ao Prof. Alves Martins, do ISCEF, a funcionar no Centro de Estudos de Estatística Económica do Instituto de Alta Cultura, a tarefa de proceder à análise quantitativa da estrutura escolar portuguesa, o que coincidiu, na OCDE, à organização da conferência sobre indicadores e técnicas de previsão com largas implicações no ensino. Com esta preocupação, a escolaridade obrigatória foi alargada para os 4 anos, em 1956, mas apenas para o sexo masculino, ao contrário do que o ministro propusera. Só em 1960 as quatro classes passariam a ser obrigatórias para todos. Em 1961, o ministro sairia abruptamente. Estavam, contudo, lançadas as bases de um novo tempo. Por isso, diria: “Afirmo categoricamente que se não acabarmos com a frase rançosa e vergonhosa de que o Tesouro não pode dar prioridade às despesas da Educação, não poderemos ir longe no futuro, nesse futuro que para o Ocidente consiste numa contínua ascensão no caminho da prosperidade”. Com grande cópia de informações úteis, o livro de Eduardo Marçal Grilo é, assim, uma boa base de reflexão, sobre um tema essencial, que não pode ser subalternizado nem esquecido.