Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
De Abílio Leitão e Fernando Luís Sampaio, o documentário sobre Eduardo Prado Coelho intitulado “Resistir à Cegueira do Mundo” teve antestreia no S. Jorge ontem, dia 13, com uma sala cheia. Foi um momento raro em que a vida de Eduardo esteve bem presente! É um filme no qual podemos recordar todas as facetas de um grande amigo, sócio nº 3 do Centro Nacional de Cultura. Guilherme d’Oliveira Martins fez a sua invocação num texto que reproduzimos…
EDUARDO OU O ELOGIO DA ATENÇÃO
O Eduardo Prado Coelho era um apaixonado do “espírito do tempo”, e não podemos esquecer o seu entusiasmo e a sua inesgotável curiosidade. A literatura era o seu lugar por excelência, para a compreensão da realidade e do mundo.
A atenção, a aprendizagem, a inteligência e a novidade eram a sua matéria-prima preferida. Mas se quisermos usar uma fórmula sintética: Eduardo era, antes de tudo, um apaixonado da vida. Isso mesmo o levava a procurar tudo o que pudesse exprimir a evolução, a imaginação, a viagem, a aventura e a modernidade. Comparei-o um dia ao herói de “Emílio e os Detectives”, o romance da aventura em estado puro de Kästner, porque a disponibilidade e a alegria de ver, de viver e de saber eram naturais em si.
Literatura, artes plásticas, linguística, teatro, moda, performances, música, bailado, história, geografia, biologia, psicologia, psiquiatria, pedagogia, ciências, tecnologias – nada na vida era estranho à sua atenção desperta e permanente.
O Eduardo é uma referência fundamental na nossa cultura contemporânea. Cosmopolitismo e abertura tornaram-se seus lugares de culto. Lembramo-nos bem dos novos e inesperados temas e autores que nos trazia no Centro Nacional de Cultura.
Desde os tempos do estruturalismo à descoberta dos novos talentos (a celebridade de Maria Gabriela Llansol muito lhe ficou a dever), passando pela capacidade natural de organizar e fazer leitores e discípulos (não na acepção de seguidores mas de despertados), procurou, no fundo, abrir horizontes para o português sem fronteiras do século XXI.
LEMBRANDO ANNA MASCOLO E A ARTE DE DANÇAR… 2 de abril de 2019
Hoje quero recordar Anna Mascolo e a sua extraordinária influência na Educação Artística em Portugal. Conheci-a bem. Foi, durante toda a vida, uma lutadora. Quem com ela contactou sabe como tinha ideias ambiciosas e arrojadas. Mas nunca era de desistir. Quantas vezes construiu generosos castelos no ar, mas nunca se deixava abater. Tinha a sabedoria necessária para encontrar uma alternativa, que lhe permitisse chegar por outro caminho ao destino que tinha idealizado. Não é possível falar-se no Portugal do último meio século sem contar com os seus projetos, as suas ideias, os seus exemplos e os seus discípulos. Era exigente, era determinada, era rigorosíssima, mas procurava pôr em prática uma visão ampla e generosa, aberta e cosmopolita de Humanidades. E com ela podíamos compreender a essência de ser artista. Arte é fazer como ninguém mais faz. Arte é realizar a beleza de modo irrepetível. Hoje, as neurociências provaram muito do que Anna Mascolo defendeu em termos práticos. No desenvolvimento da infância, as Artes estão em primeiro lugar. Tudo começa no exercício dos sentidos e a capacidade criadora tem a ver com o movimento e com a nossa relação com o corpo. Não há domínio de si mesmo sem recorrer ao valor da Arte. E em homenagem a Anna Mascolo, deixo um poema de Sophia de Mello Breyner e os fragmentos de uma entrevista… Nunca esquecemos que para Sophia dança se deveria escrever com S. Só assim se entenderia o movimento! Só assim se entenderia a singularidade… E assim oiçamos Sophia,
Inventei a dança para me disfarçar. Ébria de solidão eu quis viver. E cobri de gestos a nudez da minha alma Porque eu era semelhante às paisagens esperando E ninguém me podia entender.
Sophia de Mello Breyner Andresen | "Coral", 1950
E ainda a propósito da dança, Sophia disse em entrevista de Maria Armanda Passos:
Maria Armanda Passos - Desde quando este interesse pela dança e como? Desde sempre. A dança é um elemento dionisíaco ligado ao ritmo e à despersonalizacão. (…)
MAP - Chegou a dançar, a aprender bailado? Eu vivia no Porto quando era pequena e não havia nenhuma escola de ballet. Inventava danças sozinha. Anos depois não perdia os bailados que apareciam. Mas era tarde para aprender. Dançava muito sozinha e, quando os meus filhos eram pequenos, dançava para eles.
MAP - Às vezes ainda dança, Sophia? ...Muitas vezes imagino bailados e argumentos para bailados.
E a Eduardo Prado Coelho disse:
«E quando eu era ainda muito pequena, quando estava em Lisboa, logo de manhã ia para o escritório do meu avô - que eram três grandes salas seguidas, cheias de livros, de quadros, de retratos, de mapas e de mil coisas misteriosas - um lugar onde eu entrava em bicos de pés - e o meu avô punha sempre a tocar um disco de Bach - talvez por isso a música de Bach foi sempre a que melhor entendi. E na Granja, à tarde, o José Ribeiro tocava violoncelo, nuns outonos de tardes oblíquas. E quando estava no Porto ia para Matosinhos para casa do Eduardo e do Ernesto Veiga de Oliveira e ouvíamos Das Lied von der Erde do Mahler, que nesse tempo ainda não estava na moda. E em casa do António Calém a música estava sempre no centro de cada encontro».
«Tudo o que não Escrevi» de Eduardo Prado Coelho (2 volumes), edições Asa, 1991-1992, é um retrato em forma de diário de uma das personalidades mais interessantes e ativas do meio cultural português da passagem do século XX para o século XXI.
DEZ ANOS DEPOIS…
Já decorreram dez anos desde que o Eduardo Prado Coelho nos deixou e no entanto a sua memória, a vitalidade do seu exemplo continuam bem presentes, sendo justo que devamos recordá-lo, como ele gostaria. Fora de qualquer ideia retrospetiva, a sua preocupação fundamental estava no culto de uma atenção desperta para o tempo e a realidade que o cercava. Não conheci mais ninguém que estivesse tão atento ao debate de ideias e ao surgimento de novos contributos e de novas perspetivas. No Centro Nacional de Cultura contei sempre com a sua participação ativa nas iniciativas para que era desafiado. Quando o Chiado ainda estava morto, sob os efeitos do terrível incêndio, lançámos as festas no Chiado (na altura, duas por ano). Era um tempo em que ninguém estava certo de que seria possível dar vida àquela capital de Lisboa, na expressão de José-Augusto França, e o Eduardo aceitou o desafio dos cinco livros, cinco autores – para trazer aqui os mais interessantes escritores, ensaístas e poetas. E com que zelo e prazer fazia o seu trabalho… Muitas vezes, os autores que indicava eram ainda pouco conhecidos, mas o tempo veio a provar que o Eduardo tinha um faro verdadeiramente raro para descobrir o que tinha realmente qualidade. Lembramo-nos que, relativamente a um autor hoje consagradíssimo, tivemos 5 pessoas da primeira vez que foi escolhido – mas um ou dois anos depois já havia para a mesma pessoa quase uma centena de presenças… O tempo passou e o Chiado renasceu, pujante, graças a uma extraordinária convergência de esforços e de vontades – entre os quais Siza Vieira teve um papel crucial. E se lembro o entusiasmo de Eduardo, a verdade é que os livros e a cultura foram âncoras essenciais para que o Chiado tenha renascido mais forte do que nunca… O certo é que a ideia de cultura, que sempre esteve presente na sua ação, tinha a ver com a criatividade, a atenção e o cuidado. Educação, formação, ciência, pensamento, cidadania ativa, responsabilidade política, antecipação do futuro, ligação entre tradição e mudança – eis o que o ensaísta soube cultivar e aprofundar (e essa ligação íntima a Eduardo Lourenço deve ser lembrada especialmente). Se nos lembrarmos do seu contributo para os primeiros passos do estruturalismo entre nós, verificamos, antes do mais, a atenção aos novos caminhos, sem se deixar aprisionar pelas leituras exclusivas ou unilaterais. O primeiro entusiasmo dava lugar a outras influências e outros contributos. O mesmo se diga relativamente ao pensamento marxista ou depois à lógica liberal-libertária.
UMA GENUÍNA CURIOSIDADE.
O que Eduardo Prado Coelho tinha era uma curiosidade genuína pelo mundo das ideias. Daí a capacidade de se apaixonar por elas, mas simultaneamente também a disponibilidade crítica para abrir novos capítulos e novas influências. Deste modo, foi um cultor de um pensamento plural, aberto à diversidade. Esse o balanço geral do rico percurso intelectual que assumiu e que teve diversas facetas. E se alguns salientam este ou aquele momento mais marcado por determinada opção, a verdade é que o conjunto da intervenção do ensaísta (que ele foi essencialmente) dá-nos um panorama de abertura à diversidade – e de capacidade para se pôr em causa ao descobrir novos caminhos para a sua reflexão. Quando apoiou Maria de Lourdes Pintasilgo em 1985 teve a lucidez de pôr a ênfase no que essa candidatura tinha de mais novo e enriquecedor, salientando a importância da convergência com o movimento de ideias que Mário Soares pôde suscitar e depois assumir. Fui testemunha dessa fase e sei da importância que teve esse diálogo na renovação das ideias da esquerda democrática, numa fase especialmente difícil, em que havia o risco da fragmentação. A filosofia política anglo-saxónica, a segunda esquerda francesa, a nova escola de Frankfurt punham-se em confronto e em diálogo – num momento em que F. Fukuyama e S. Huntington não poderiam ser lidos de modo simplista, já que o sistema de polaridades difusas gerado no fim da guerra-fria e na queda do muro de Berlim abria caminho a uma imprevisibilidade perigosa. Hoje sabemo-lo: «Brexit», Trump, Putin, Síria, Estado Islâmico, República Popular da China, Coreia do Norte e assim sucessivamente… E fica-nos a grande curiosidade de saber que teria dito o Eduardo perante Houellebecq no seu romance «Submissão», para além da lógica da «Espuma dos dias» de Boris Vian…
O DILEMA EUROPEU.
Estará a Europa condenada à fragmentação e à irrelevância? Muitos são os temas para os quais o Eduardo Prado Coelho seria, certamente, um ativo estimulador de ideias – a partir da capacidade de compreender como o diálogo do pensamento pode ser um fator de progresso e emancipação, compreendendo que nunca descobriremos uma qualquer via de reconciliação definitiva… Não esqueço que a última vez que falámos, poucos dias antes da sua morte. Disse-me que se sentia melhor e que estava disponível para continuar a animar uma iniciativa centrada na literatura… Estava otimista e parecia com uma energia renovada, eis por que razão foi um choque receber a notícia. O certo é que a última lembrança do Eduardo foi positiva, com o seu entusiasmo de sempre… Por isso, escrevi na altura um texto em que recordava «Emílio e os Detetives», uma narrativa juvenil – ciente de que a ficção era para ele uma prova de vida… Por isso, costumava lembrar as suas lágrimas de criança quando leu a descrição de Salgari da morte de Sandokan, na célebre coleção da Romano Torres, envolvendo o inconfundível português Gastão de Sequeira. Na reta final da vida assumiram uma especial importância as cartas que trocou com o Cardeal Patriarca D. José Policarpo, onde a independência de espírito, a inteligência e a compreensão do mundo estavam bem presentes. No seu diário, confessa a dificuldade da relação com o mundo da vida. Há muitas perplexidades, mas sempre a preocupação com o ter os olhos abertos perante a realidade humana: «Há uma frase que me tem seguido pela vida fora. Qualquer coisa como "não tens vida interior". Que significa? Não propriamente que me seja atribuída uma ausência de "pensamento interior" - de modo algum. Mas perpassa a suspeita de que esse pensamento se desenrola numa espécie de impessoalidade indiferente aos relevos afetivos de todos os dias. Confesso que isto me espanta, porque se alguma coisa eu sinto é que tudo aquilo que penso se modela sobre um corpo afetivo extremamente atento e vibrátil. Tudo o que seja um pensamento segregado do quotidiano me parece insignificante».
1. Aquilo a que chamamos cultura é inviável positivá-lo, em termos deterministas, atenta a sua elasticidade e plasticidade. Se inexequível a obtenção categórica de uma noção de cultura, isso não invalida que, por razões funcionais de natureza pragmática, se proceda a uma tentativa de delimitação do seu conteúdo.
Carateriza-se por tudo o que é humano e pode ser transmitido, por tudo aquilo que o ser humano faz, por tudo o que está relacionado com a criação humana, como um sinal de criatividade e humanismo, integrando todas as coisas ou operações que a natureza não produz e que lhe são adicionadas pelo espírito.
Em sentido restrito, numa definição mínima, traduz a herança canonizada e solenizada pelas instâncias clássicas de legitimação, o património artístico, erudito e intelectual de feição humanista, legado pelas artes, saberes e certas tradições, condicente com o universo das belas artes e das belas letras, uma cultura de eleição, superior, mais abonada de assunto e de forma, cujas manifestações, quanto mais criativas e vanguardistas à época, mais se aproximam do mundo ideal e se afastam do que é tido como regra da ordem real.
Numa interpretação intermédia, além de conter a criação e a fruição mais culta, convive com a ciência, a tecnologia, o ensino, a formação, a religião, onde a esfera estadual e do pensamento convivem de modo especial.
Numa aceção mais ampla, engloba uma realidade complexa, agregando elementos de natureza antropológica, filosófica, histórica, sociológica, incluindo raízes, memória, herança e história, com a aceitação de uma noção aberta e policêntrica, atuando na vida corrente a vários níveis, desde a cultura erudita à popular, aglutinando criatividade, inovação, tradição, pluralismo. Esta culturalização global e indiferenciada coloca no mesmo regime a arte, a ciência, a religião, a tecnologia, o desporto, o luxo, a literatura, a poesia, a gastronomia, os monumentos, o património natural. Não surpreende que a região vinhateira do Alto Douro, a paisagem da vinha da Ilha do Pico, a floresta laurissilva da Madeira e a dieta mediterrânica integrem a lista do património mundial da Unesco, ao lado do centro histórico de Guimarães, de Évora, do Porto, de Angra do Heroísmo, do Convento de Cristo em Tomar, do Mosteiro da Batalha, de Alcobaça, dos Jerónimos e da Torre de Belém. Nem que a lista do património cultural e imaterial da humanidade integre o fado e o cante alentejano, a que acresce, desde dezembro de 2016, a arte da falcoaria em Portugal. Ou que em termos de património cultural e imaterial da humanidade se apele para a necessidade de salvaguarda urgente da manufatura de chocalhos em Portugal ou da olaria preta de Bisalhães. Sem esquecer o património cultural subaquático, entre outros.
2. Recriando-se continuamente, é incerto prever em concreto o futuro da cultura, levando a que se defenda uma mudança de paradigma:
“A nova imagem da cultura não é apenas a cultura erudita de recorte humanista (as artes e as letras), nem a cultura de tipo antropológico (tudo o que não é natureza é cultura), nem a cultura de massas no sentido tradicional do termo. É algo que a atravessa, acolhe, mas designa já outra coisa. A cultura é hoje uma dimensão dominante em que está em jogo o que o sujeito faz de si mesmo, sem que se definam intermediários conscientes e explícitos que tutelem o sujeito”. (Eduardo Prado Coelho, “O Futuro da Cultura (1)”, “O Fio do Horizonte”, “Público”, 14.09.05).
A par de uma subjetivização da cultura, com tendência para a sua privatização, em que as novas tecnologias nos permitem ver e ouvir em casa cinema, música, ópera, há o seu reverso, em que o indivíduo mergulha numa realidade envolvente, criando-se um sentimento eufórico do grupo, de que a música entre os jovens e o desporto entre adultos são seu exemplo. A que acresce a globalização da cultura, com uma estetização do quotidiano, desde motivos no calçado, vestuário, latas de conserva, invólucros de sabonetes, revestimentos de prendas, design e capas de livros, música fracionada e de ambiente que se ouve enquanto se corre, espera, estuda ou opera. Onde também emerge o culto e a materialidade do corpo, tomando-o como objeto de arte (esculturas humanas firmes, pintadas de dourado, prateado, num cromatismo chamativo), ou no suporte de várias tendências da arte contemporânea (moda, piercings, tatuagens).
“Verificamos (…) uma alteração das experiências do tempo e do espaço: existe uma compressão do tempo (Giddens) e uma diversificação dos espaços (…). Derivado do espaço temos o culto da velocidade ou os chamados “efeitos especiais”.
(…) implica uma redistribuição das instâncias culturais: de um lado, a cultura erudita, cada vez mais impregnada da cultura de massas; do outro, a cultura de massas, cada vez mais em ser reconhecida pela cultura erudita. Certas práticas artísticas marginais ganham particular relevo: a fotografia, a arquitetura, o vídeo, a banda desenhada, os jogos no computador, etc. No fundo (…) temos a consciência ecológica e a relação cada vez mais intensa entre cultura literária e cultura científica.
É neste contexto que a cultura terá de desenhar o seu futuro” (Ibidem, “O Futuro da Cultura (2)”, “Público”, 15.09.05).
Também a cultura humanista, que coloca o ser humano no centro de tudo, está em transformação, para alguns em decadência, dada a emergência de um novo agente transformador: a máquina, com consequências no ver, falar, ouvir, ler e escrever.
Nesta sequência, a cultura é um universo permanentemente questionado, o mesmo sucedendo com o seu refazer permanente.