A VIDA DOS LIVROS
De 11 a 17 de março de 2024
Emílio Rui Vilar – Memórias de Dois Regimes (Temas e Debates, 2024) constitui um documento de grande importância, da autoria de António Araújo, Pedro Magalhães e Maria Inácia Rezola.
DISCURSO DIRETO
Ao aproximarmo-nos do cinquentenário da revolução de Abril, importa reunir reflexões e testemunhos que nos permitam compreender a génese e o desenvolvimento dos acontecimentos históricos, não numa perspetiva comemorativa, mas num sentido que permita compreendermos a democracia como processo dinâmico, numa lógica prospetiva, de modo que o Estado e a sociedade civil se reforcem, através de instituições mobilizadoras e participativas, que permitam mediações que assegurem a vitalidade e a permanência do Estado de Direito, como sistema de valores baseado no primado da lei, na legitimidade do voto e do exercício e numa cidadania ativa. O melhor método neste sentido deve basear-se no testemunho e no exemplo de quantos se entregaram ao serviço público com inteligência e generosidade. Só o exemplo e a experiência podem ajudar no sentido das mediações eficazes, suscetíveis de impedir as tentações providencialistas que enfraquecem e destroem as democracias. Emílio Rui Vilar – Memórias de Dois Regimes (Temas e Debates, 2024) constitui um documento de grande importância, no qual os autores, António Araújo, Pedro Magalhães e Maria Inácia Rezola, conduziram entrevistas realizadas ao longo de vários meses, que permitiram um relato na primeira pessoa de um percurso de alguém que teve uma intervenção privilegiada na transição entre o final do Estado Novo e o alvor da democracia. Seguimos assim, desde a contestação ao regime anterior, em especial no meio universitário nos anos sessenta, a guerra colonial, a criação da SEDES, o fracasso da chamada “primavera marcelista”, a ocorrência do movimento de 25 de abril e os primeiros anos de institucionalização da democracia, em que Emílio Rui Vilar exerceu funções governativas em três Governos Provisórios e no Primeiro Governo Constitucional.
UM DOCUMENTO FUNDAMENTAL
A leitura da obra é extremamente agradável e útil, acompanhando num ritmo vivo não apenas as raízes familiares do protagonista, mas também a progressiva entrada do jovem na vida social e cultural do seu tempo, avultando o facto de na Universidade de Coimbra ter sido fundador do Círculo de Artes Plásticas, organismo autónomo da Associação Académica, no qual convidou diversas personalidades, com grande sucesso, entre as quais a então surpreendente Maria de Lourdes Modesto, para falar sobre o Olfato e o Gosto, o que lhe valeu surpreendente reprimenda do reitor de então. Contudo, o teatro no CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra) viria a ser um dos grandes motivos de afirmação do jovem Emílio Rui, enquanto presidente ativo e inovador, com uma militância cultural muito apreciada. Miguel Torga, Paulo Quintela, António Pedro, ou os jovens Eliana Gersão e António Barreto encontramo-los nesta imersão teatral que tão boas recordações deixou, apesar dos naturais dissabores com a censura, que impediu a representação de “O Crime na Catedral” de T. S. Eliot. O carro da queima das fitas desenhado por Vilar, apesar da admiração que este tinha por Camus, chamava-se “Les Mains Sales” em homenagem à peça de Sartre, levando os melhores alunos de orientações políticas diversas, mercê de uma camaradagem tolerante.
Em 1962, é mobilizado para o serviço militar e vai para a Escola Prática de Cavalaria em Santarém, no mesmo ano de Cavaco Silva e José Vera Jardim. Parte para Angola como Alferes miliciano, regressando três anos depois. “A situação militar em meados de 1965 era de razoável controlo dos itinerários – explica-nos. Fora dos itinerários principais havia o risco das minas e de emboscadas”. Contudo ainda não havia zonas de conflito fora do Norte, porque o MPLA ainda não tinha iniciado atividade militar. Com o regresso à vida civil, volta para o estágio de advogado no Porto, mas depressa vai trabalhar na Administração, nos setores das Comunicações e Transportes e na Educação, até que lhe chega o convite de Vasco Vieira de Almeida para o Banco Português do Atlântico de Cupertino de Miranda. A experiência da gestão bancária torna-se essencial, permitindo alargar horizontes. O ano 1969 será especialmente profícuo, uma vez que as economias portuguesa e internacional conhecem profundas alterações, ligadas à internacionalização. António Champalimaud lança uma ofensiva junto do BPA, dando sinal de que o tecido económico se movimenta.
OS SINAIS DE MUDANÇA
Perante os sinais de mudança, considera que estes deviam ser aproveitados para a abertura e a fundação da SEDES será um momento fundamental. Vilar é eleito o primeiro presidente da Associação, por ter uma posição equidistante. A SEDES é o resultado de um “caldo de circunstâncias” e da “confluência de outras linhas de força” – “um conjunto de ideias e preocupações que, num grupo muito plural e com trajetos diversos, tinham o denominador comum da consciência de que era preciso encontrar uma saída, que a guerra não podia continuar eternamente”. A nova Associação junta “os católicos pós-concilares, os tecnocratas com o sentimento comum de que era preciso ultrapassar o bloqueio que existia no país”. O método dos cenários é adotado no exercício “Portugal, para onde Vais?”. Trata-se, no fundo de procurar caminhos visando a democracia. No entanto, 1972 é o ano da perda total das esperanças, com a reeleição de Américo Tomás. Francisco Sá Carneiro ainda faz uma tentativa de convencer o General Spínola a candidatar-se. Miller Guerra e Sá Carneiro renunciam aos lugares na Assembleia Nacional e ocorre a vigília da Capela do Rato. Apesar da perda de ilusões, a SEDES lança uma importante iniciativa cívica na Defesa do Consumidor, que leva à constituição da DECO. A experiência da SEDES será, no entanto, muito importante para Emílio Rui Vilar, e em 25 de Abril, torna-se um símbolo, quer ao surgir entre os primeiros responsáveis políticos a ter voz na RTP, quer ao ser chamado para os Governos Provisórios. A sua independência partidária é essencial.
Os pormenores na descrição da vida política no tempo dos governos provisórios têm um interesse indiscutível. Sentem-se as tensões e as contradições, os choques entre o poder militar e o poder civil, e a posição moderada de Rui Vilar é alvo de desconfianças. É importante a sua participação, no início de 1975, na feitura do Programa de Política Económica e Social, sob a coordenação de Ernesto Melo Antunes. “Dentro do grupo havia um razoável consenso. Claro que havia um bloco mais teórico e académico, constituído pelo Vítor Constâncio e o Silva Lopes. A Maria de Lourdes era a mais idealista. E depois havia um terra-a-terra, que era eu, que procurava que as coisas tivessem alguma aderência à realidade e a alguma viabilidade”. Tudo se precipita, porém, depois dos acontecimentos de 11 de março de 1975, finalizando a tentativa de realismo. A unicidade sindical, as nacionalizações, a radicalização do MFA, um difícil pacto para garantir as eleições da Assembleia Constituinte, a um ritmo alucinante. E.R. Vilar conhece o desemprego, mas em outubro de 1975 regressa como vice-governador do Banco de Portugal, e depois de 25 de novembro haverá uma Constituição democrática em 1976 e será Ministro dos Transportes no I Governo de Mário Soares. É um relato fascinante em que emergem o bom senso, a inteligência e a determinação.
Guilherme d'Oliveira Martins
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