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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XV

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   Minha Princesa de mim:

 

             Será por se dispersarem

             Que as flores da cerejeira

             Nos são tão queridas,

             Neste mundo tão efémero

             Em que nada dura muito?

 

   Assim, a dado passo, canta o tanka do conto LXXXII de Ise. Talvez por ler e reler tais contos velhinhos de mais de um milénio, e de neles, para além da distância no tempo, nada estranhar, mas apenas reconhecer tantas facetas da minha própria sensibilidade portuguesa, que me comovo ao ponto de confundir esta minha rebusca do Japão com as cartas do meu sentimento de mim que te vou escrevendo. Se bem que os Contos de Ise se debrucem intencionalmente sobre sucessos e insucessos de namorados e amantes muito humanos, o seu lirismo veicula sentimentos e preocupações mais fundas, como se de raízes fasciculadas se tratasse, pertinentes ao sentido e à perplexidade com que nos defrontamos em súbita presença do nosso próprio destino humano. O aguilhão do sentimento permanente da efemeridade do tempo, das coisas todas e da vida, parece sobretudo destinado a reflectir esse paradoxo que será a consistência permanente do efémero. Lembro, Princesa de mim, este haiku de Basho:

 

           Acima da cotovia no céu

           eis impassível  

           o desfiladeiro da montanha...

 

   Acima do ukyio, deste mundo contingente, flutuante, há sempre uma passagem, um caminho para a permanência. No seu «Diálogo com um Japonês» (in Aus einem Gespräch von der Sprache - Unterwegs zur Sprache, Pfullingen, Neske, 1959), Martin Heidegger, referindo-se à questão da relação entre a letra das Escrituras e o pensamento especulativo da teologia com fonte das suas interrogações (cf. Bernard Stevens in Heidegger et l ́École de Kyoto - Soleil Levant sur Forêt Noire, Les Éditions du Cerf, Paris, 2020) escreveu: Sem essa proveniência teológica, nunca teria chegado ao caminho do pensamento. Proveniência é sempre porvir. E Bernard Stevens, da Universidade Católica de Louvain (la Neuve) comenta, pertinentemente: O que retém a atenção de Heidegger sobre este tema é, no plano da vida efectiva, uma certa experiência do tempo na fé cristã primitiva, antes da dogmática eclesial e a teologia escolástica. Trata-se de uma experiência do tempo e da história, orientada para um evento determinante do porvir: a esperança no regresso de Cristo ou no Juízo Final, para os primeiros cristãos que todavia se tornará, no Sein und Zeit (obra chave de Heidegger), em neutralidade religiosa momento decisivo da morteTal momento não é um instante preciso do futuro, mas no seu repente imprevisível é a nascente desconhecida de uma orientação de vida em função do porvir, pondo o humano em face da necessidade de uma decisão: a de uma opção por uma vida autêntica ou inautêntica. Do porvir imprevisível, indisponível, carregado de ameaças, provirá o sentido que o humano, resolutamente, deverá dar à sua vida presente.  

   A partir daqui, defronto-me com uma surpreendente - para mim - distinção entre a temporalidade «kairológica» e outra, a «cronológica», sendo que a primeira será obliterada, pela Idade Média e a Renascença, em favor do conceito do ser como substância, simultaneamente presença constante (ousia) e visão teoricamente objectivável (theoria), portanto impermeável  à efectividade kairológica da vida efectiva...

   Será que tal obliteração conduziu, como alguns pretendem, a um duradouro esquecimento do ser pelo pensamento ocidental?

Bernard Stevens defende que a própria noção do ser como ousia foi radicalizada durante a Idade Média pela reinterpretação como substantia, sendo o ser, aí subsistente, o sendo, na constância estável de si próprio. E afirma que tal noção de ousia provém da compreensão grega do ser, cuja memória é guardada pela pluri vocação aristotélica do sendo. E prossegue: a compreensão grega do ser como ousia sublinha um só sentido lexical do ser, sentido esse que remonta ao wasami indo-europeu (permanecer, ficar na constância do presente) e que, ao associar-se com o sentido nuclear do «viver» (es-, esti), escamoteará todavia o sentido igualmente essencial do crescer (bhu-, phy-) que, por outro lado, encontramos na palavra physis. Este vocábulo, em tempos pré-socráticos, sobretudo entre os iónicos, designa o conjunto do sendo no seu ser

   Evitando continuar a escrever-te, Princesa de mim, a remar entre escolhos de elucubrações "técnico-filosóficas" (terá tal expressão algum sentido?), vou procurar chegar ao dito do que quero comunicar-te, isto é, ao pensarsentir do tempo e do ser - para recordar o Sein und Zeit de Heidegger - nas culturas ocidental e extremo-oriental. Já entre gregos havia divergência entre reconhecer o ser do sendo na totalidade como porvir, movimento, crescimento, ou seja, enquanto physis, e o conceito de ousia, no qual o ser do sendo na totalidade é identidade consigo na presença constante. Ora, precisamente, é a ideia de physis que mais se aproxima do conceito extremo oriental de ziran (em chinês) ou shizen (em japonês), o qual aponta para o modo de ser do que é por si mesmo e por si mesmo se desenvolve, em incessante dinâmica que escapa a qualquer objetivação estabilizante e ao domínio de qualquer olhar teórico, assim exigindo nova achega. O mundo flutuante é, portanto, inapreensível ou, melhor dito, apreensível apenas na fugacidade de ocorrências surpreendidas em privilegiados momentos. Podemos, pois, dizer que ele é plurívoco, o que nos deixa entender melhor aquela interrogação de Heidegger que, no Japão, foi acolhida e reflectida pela escola de Kyoto, com Nishida Kitaro à cabeça: «Se o sendo é dito com significado múltiplo, qual será então o seu significado director e fundamental? Que quer dizer ser

   A cultura japonesa, ao longo de séculos, tem respondido privilegiando a poesia, tal como a caligrafia, a pintura e a gravura - visões simultaneamente místicas e ambíguas - na intuição de um olhar que interroga o mistério e busca surpreender no fugidio a possível ou impossível permanência... Andará muito longe de um Novalis que diz ser a poesia o real absoluto, ou quanto mais poético mais verdadeiro?

   Proximamente - e, espero, de modo menos árido e, quiçá, confuso do que o desta minha escrita de hoje - voltarei a estes temas. Para que me perdoes, pelo menos tu, Princesa de mim, deixo-te a tradução de uns pensamentos do monge budista Urabe Kenko (século XIV), respigados do seu Tsurezure-gusa (Horas de Lazer...):

   Mesmo eu, que tudo deixei, compreendo que neste triste mundo haja coisas do agrado do meu coração...

   ... Mas não há outro mundo em que possa esconder-me, além deste mundo efémero. Aquilo de que fugi era o meu próprio coração. 

 

                               Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 10.01.2021 neste blogue.

 

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XXIV


Minha Princesa de mim:


   Ando a viver todos os dias com um fantasma. Não me assusta nem faz por isso, tampouco emite sons lúgubres, ou se ri de mim à socapa. Nem sequer se esvanece e desvanece, é quase silencioso, não se faz notar, nem se esconde. Só um cego olhar ausente, desatento a tudo, nos deixa adivinhar que tão ensimesmada peregrinação entre a gente é o vagar vadio de quem já se nos não prende. Anda alhures, talvez não saiba por onde, como não sabe que é por aqui que me aparece. Acontece-lhe esquecer o meu nome, como o de muitas coisas deste mundo que, cada vez mais, sente como detestados invasores do labiríntico universo interior em que arreganhadamente tenta resguardar-se - pois no seu sonho sente sempre salva a vida. A demência é uma forma de sobrevivência que imagina fantasmas. Mas que sobreviverá, em si mesmo, do próprio fantasma que esta manhã acordou no quarto que lhe tem sido familiar, sem saber onde estava? Desde então só se passeia pela casa que sempre lhe pareceu grande, e hoje lhe é enorme, dizendo a cada passo: «Não me lembro de nada, não me lembro de nada...» Será tão somente uma nebulosa consciência de que non memoro, ergo sum («Não me lembro, logo sou»)?


   No Japão, o teatro traz à ribalta os espíritos das coisas e os atores desconhecidos de antigas histórias fantásticas. A obra literária de Ueda Akinari (1734-1809), designadamente a intitulada Ugetsu monogatari (Contos de Chuva e Lua) inspira-se muito no , desde logo no próprio título: Ugetsu (chuva e lua) é um termo carregado de sentido para um japonês: acaba de chover e a lua está semi escondida na bruma, tempo ideal para aparições. Aparições que são criações ou artifícios da memória ou da falta dela, ou ainda, como se canta no nosso hino nacional, vozes que se sentem entre as brumas da memória... Quando lembramos um ente querido que já se morreu, reinventamo-lo - por isso abraçamos a persona revivida mais do que, na verdade, a pessoa que saiu da cena desta vida e dela está agora ausente. Quando "convivemos" com o ser vago e vagabundo que se passeia ainda pelos caminhos desta nossa vida, é conscientemente que atingimos uma pessoa aparentemente presente, mas já dramaticamente ausente da comunicação possível em tempo próprio.


   O conto A Casa nos caniçais, de Akinari, que a seguir resumo, ilustra bem o que acima tento dizer. Os trechos em itálico são traduções de textos autênticos do autor japonês:


   O carácter indolente de Katsushiro, nascido numa família de abastados proprietários rurais, leva-o, em tempos de guerras feudais, à beira da miséria. Para se restaurar, busca mudança em circunstância de mudanças e, graças ao apoio de antiga relação, torna-se negociante em sedas de Ashikaga, o que o leva a ausentar-se de casa e a separar-se provisoriamente de Miyagi, sua bela e fiel mulher. A turbulência bélica e social da época vai-se alastrando e acaba por afastar os tão unidos e amantes cônjuges, obrigando-os a um isolamento mútuo, sem convívio nem notícias. Até que, movido pela solidão e pela saudade, Katsushiro se decide a enfrentar os riscos inerentes à circunstância em que vivem: põe-se a caminho de casa, em esperançosa busca da mulher amada. Mesmo supondo que esta se tivesse tornado numa habitante das regiões subterrâneas, e já não fosse deste mundo, impunha-se encontrar-lhe o rasto e erigir-lhe, pelo menos, um memorial funerário...


   Àquela hora, já o sol se tinha submergido no ocidente. Sob as nuvens de chuva prestes a cair, reinava a sombra, mas disse para consigo que não poderia perder-se, pois estava numa aldeia que muito tempo habitara; continuava a andar, afastando as ervas de verão. A velha ponte desmoronara-se no leito do rio e os cascos dos potros já ali não ressoavam. Os campos, desleixados, voltaram a ser baldios e já não se distinguiam as sendas de antanho. As moradias dos que lá tinham vivido já não existiam. Aqui e além, algumas raras casas que subsistiam pareciam habitadas, mas já não se assemelhavam ao que tinham sido. Assim se quedava ele, perplexo, perguntando-se em qual daquelas casas teria morado, quando, a mais ou menos vinte passos, descobriu, à luz das estrelas que as nuvens filtravam, um pinheiro rasgado por um raio, que dominava ao redor. Era certamente aquele que marcava a sua casa e, em espontâneo movimento de alegria, avançou: a casa nada sofrera. Parecia que alguém a habitava, pelas frinchas da velha porta cintilava a luz de uma lâmpada: estaria ali um estrangeiro? E se, por acaso, fosse Ela que ali estivesse? Ao pensá-lo, sentiu o coração bater com mais força, aproximou-se do portão e tossiu para se anunciar. Lá dentro, alguém sentiu a sua presença e perguntou desconfiadamente: «Quem está aí?» Apesar de envelhecida, era certamente a voz de sua mulher... Estaria ele a sonhar? Com o coração em angústia, respondeu: «Sou eu! Eis-me de volta! Tal como dantes, continuais a habitar, sozinha, esta terra coberta de caniços... É admirável! Reconhecendo-lhe a voz, logo ela lhe abriu a porta: toda de negro e coberta de sujidade, de olhos cavos e cabelos entrançados a cair-lhe pelas costas, não lhe pareceu que estivesse ali a mulher de outrora. Esta, ao ver o marido, nada disse, desfez-se em lágrimas...


   
Entrecortada de choros e suspiros, foi longa a conversa da saudade e do reencontro, da alegria e da dor, da humanidade e do sonho. Até que, para lhe acariciar um soluço, ele lhe disse: «É sempre breve a noite»... e deitaram-se lado a lado. Narrando o decurso da noite, Ueda Akinari dá o passo do sono para o despertar, do sonhado para o experimentado, do real subjetivo para o real objetivo, ou seja, do que se vê por dentro apenas para o que se julga estar a observar. Muito cansado da jornada, Katsushiro dormiu  profundamente, e só de manhã, quando a chuva vem refrescar-lhe o rosto e a luz de alva lhe vai abrindo os olhos, perceberá que não está deitado em casa alguma, que não há qualquer porta de entrada ou saída nem, pior ainda, está a seu lado a mulher que ele julgara ali deitada... Estava ou era invisível...


   Ou nem uma coisa nem outra. Talvez apenas fosse a solidão feita pessoa e fantasma, ou persona e máscara de uma peça de Nô. Como se o espírito simultaneamente habitasse e viajasse entre dois mundos.

 

Camilo Maria   

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XXIII

 

Minha Princesa de mim:


   Nitobe Inazo nasceu em 1862, pelo que a queda do shogunato Tokugawa o pôs em plena restauração Meiji e a duração da sua vida lhe permitiu ainda viver, além da Meiji, as eras Taisho e parte da Showa. Tendo morrido em 1933, foi poupado à loucura e à derrota do Japão na Segunda Grande Guerra. Foi claramente um homem do renascimento japonês do seu tempo, tendo vivido na Alemanha, Reino Unido e, sobretudo, nos EUA, sem todavia jamais deixar de refletir sobre as questões que um processo de modernização coloca ao bom governo e educação de uma sociedade em vias de aculturação. Converteu-se ao cristianismo, casou com uma americana quaker, traduziu abundantemente do alemão e do inglês, chegando ainda a escrever, em ambas essas línguas, obras de sua autoria, mas manteve-se sempre ao serviço da sua pátria, quer como universitário e professor, quer como diplomata (esteve na conferência de Versailles, em 1918, e representou o Japão na Sociedade das Nações). Feita a apresentação, apenas o recordo aqui para citar, em tradução minha, um breve trecho do seu Bushido, l0âme du Japon (versão francesa da Budo Éditions, Noisy-sur-École, 2000):


      A erudição é um legume malcheiroso que é preciso ferver e voltar a ferver antes de se poder consumir.


   Parece-me, minha Princesa de mim, que sendo nós um povo cuja cultura se compraz no amanho de algum exibicionismo e, designadamente nos meios ditos intelectuais, de um alarde de erudição que mais recorda excessos decorativos de um gosto "kitsch" do que, propriamente, a busca e partilha de referências pertinentes, será certamente salutar refletirmos sobre o saber  cozinhar e digerir muito daquilo que, por aí, se afixa ou proclama como "bagagem cultural". Por vezes, aliás, o artifício é tão artificial - como, desta tão enfática forma, me ocorre observar - que torna insuportavelmente vistosa a vaidade irreprimível de um autor ou orador: assim o despropósito de umas citações rebuscadas em discursos cujo pensarsentir deveria ser bem distinto... Até por respeito pelos ouvintes... Mas passa-se como se alguém, inspirado pelo filme Zorro, the Gay Blade, surgisse de sopetão perante a assistência e as câmaras gritando, em jeito de Coucou me voilà! «eis-me aqui, que sou tão "culto"!» Mas deixarei para outra carta, Princesa de mim, mais observações sobre este e outros aspetos da pitoresca construção mediática de fulanismos míticos em Portugal... Por hoje, regresso ao Japão.


   Urabe Kenko, o autor medieval de Tsurezuregusa (Horas de Lazer), de que já falámos, tem, na mesma obra, esta curiosa observação acerca dos valores cultivados pela aristocracia da corte imperial: A verdade encontra-se no estudo sistemático das letras clássicas, na arte da composição chinesa e da poesia japonesa, na prática da arte musical ; mais ainda, no conhecimento das regras da corte imperial e das cerimónias tradicionais... ...ou em possuir mão hábil para a escrita ágil [não te esqueças, Princesa, de que esta é caligrafia, a pincel e tinta da China], ou em poder exibir uma bela voz, marcando o compasso...


   
Pierre-François Souyri, no seu Les Guerriers dans la Rizière - La Grande Épopée des Samouraïs (Paris, Flammarion, 2017), contrapõe aquela nota a outra, constante do Soga Monogatari (Contos dos Soga), realçando assim a oposição histórica da cultura guerreira (bushido ou via do guerreiro) à da aristocracia da corte:


   O canto e a poesia, os instrumentos de cordas, o jogo de bola no pé, o tiro ao arco pequeno, eis alguns divertimentos que se praticam na corte ou em casa do imperador reformado, mas nós cá somos guerreiros, fazemos a guerra a cavalo, combatemos a pé, medimos a nossa força pelo braço de ferro, sabemos galopar os nossos cavalos saltando obstáculos. Estamos hoje aqui reunidos, vindos de toda a parte...  ...Organizemos, pois, um torneio de sumo [combate sem armas] entre nós!


   
Não tenciono alargar por aqui este tema da cultura bushido, ultimamente tão debatida, como nos diz o próprio título de um livro de Olivier Ansart, Paraître et prétendre: l´imposture du bushido dans le Japon pré-moderne (Paris, Les Belles Lettres, 2020), autor que, tal como Pierre-François Souyri, foi diretor da Maison Franco-Japonaise em Tokyo (cuja fundação, aliás, muito deve a Paul Claudel, embaixador de França no Império do Sol Nascente, nos anos 20 do século passado). Mas voltarei ao quaker japonês Nitobe, logo depois desta citação da Crónica Militar de Nitta Yoshisada (morto em 1338): Desde a Antiguidade até aos nossos dias, existe essa divisão entre as armas e a cultura literária. As respetivas virtudes são como o céu e a terra. Se qualquer delas faltar, deixa de ser possível governar o mundo. Assim, os nobres da corte privilegiam a cultura literária, que são as artes dos poemas e da música. Mas no bushido (via dos guerreiros), as armas são o princípio: eis a via do arco e setas, e das batalhas. 


   
Mas a tal via dos guerreiros, afinal, vai tendo, no decurso da história, várias faces moldadas pelas variáveis circunstâncias do tempo e do modo... Bushi se pretenderam e proclamaram sucessivas gerações de guerreiros, com estatutos e condições sociais e morais que iam de bandos de bandidos e salteadores de estradas e aldeias, a funcionários imperiais, vassalos feudais, vinculados por juramentos de fidelidade e serviço que, todavia, nem sempre escaparam a tentações de traição ou mudança de partido, sobretudo quando se apresentavam alternativas mais favoráveis a promoções e enriquecimento próprios... Mas tinham em comum algo a que chamarei "vocação mitológica", quiçá soprada pela contemplação de valores profundamente enraizados na alma ou cultura nipónica: rasgo e resistência, solidariedade, transitoriedade e permanência do efémero.  


   O mito (ou mitos) do bushido, curiosamente, foi inicialmente popularizado no Ocidente pelo livro - escrito originalmente em inglês por um filho de samurai - Bushido, the Soul of Japan (1900). O autor é já nosso conhecido Nitobe Inazo, diplomata e professor universitário, convertido ao cristianismo quaker e casado com uma americana, como acima contei. A imagem exemplar que transmite da via dos guerreiros inspira-se certamente na educação que, enquanto descendente duma família de samurai, Nitobe recebeu e, também, na preocupação e desejo de nobilitar, perante estrangeiros, as gentes japonesas. Por outro lado, sabemos que o autor era cristão, casado em terra estranha com uma estrangeira... Mais ainda: Nitobe Inazo era pacifista e nunca se sentiu bem com a propensão ao autoritarismo e belicismo nacionalista que, pelos anos 20-30 ia desenhando as opções políticas do Império do Sol Nascente, conduzindo-o, finalmente, à guerra.


   Com o devido pudor, não irei, Princesa de mim, emitir juízos nem sobre o drama interior de Nitobe - e tantos outros lúcidos apoiantes da restauração Meiji, entendida como abertura do Japão ao mundo novamente imposto, oferecido e descoberto  - nem sobre a conversão ou teatralização de tradições que, mais ou menos verdadeiras, se tentou que encarnassem a tal "Japanese soul"... Por hoje, apenas quero deixar-te um apontamento que ilumina uma relação com a fidelidade e a morte que, tão japonesa no seu sentido, me parece aqui merecedora de atenção. Trata-se de um episódio da saga da queda final, nos anos 30 do século XIV, do shogunato Hojo, com sede em Kamakura. Conta-nos Pierre-François Souyri:


   Vencido por Ashikaga Takauji, o general Hojo Nakatoki fugiu com alguns dos seus vassalos, mas logo se viu cercado por bandos armados de milhares de homens: «Nã vejo saída nem refúgio possível... Terei pois de abrir o ventre, como é dever de qualquer homem de honra». 


  O general Nakatoki dirigiu-se então aos seus homens, convencido de que um bom senhor deve saber recompensar os seus servidores pelos serviços prestados. Ora, não estando em condições de o fazer, só lhe restava morrer: «Não encontro palavras que falem aos vossos corações leais, a vós que tão fielmente me servistes até ao dia de hoje. Lembro-me do sentido da honra 
que nos ensina a Via do arco e das setas e não me esqueço da vossa solidariedade já tão antiga. Sabeis todavia que a sorte das armas nos não foi favorável, e que o clã Hojo sucumbiria. E como é profunda a minha gratidão! Gostaria, com todo o meu coração, poder recompensar-vos pelo vosso mérito, mas o funesto destino do meu clã não permite que o faça. Vou, portanto, suicidar-me aqui, para saldar a dívida que para convosco contraí» O seu vassalo mais próximo, Kasuya Muneaki, logo se suicidou também, «para poder guiar o seu senhor no mundo das trevas». Mas não foi o único: os quatrocentos e trinta dois samurais presentes abriram simultaneamente os ventres. «O sangue corria-hes dos corpos, como caudal do rio Amarelo, e os corpos cobriam o chão como carne num talho». 


   
Creio, Princesa de mim, que nos ajudará a melhor entender este episódio que Souyri foi buscar ao Taiheiki, recordar aqui a origem da palavra samurai: deriva do verbo antigo saburafu, que significa servir. O samurai é, portanto, inicialmente, um servidor, mas especial: armado, pertencente a uma escolta, uma espécie de guarda-costas. Lado a lado com o termo samurai aparecem muitas vezes outros, tais como bushi, cuja etímolo chinês se refere às artes marciais ou budo, a via das armas, sendo esse bu frequentemente oposto a bun, ou letras. Shi significa alguém de qualidade e, assim, um bunshi é um letrado e um bushi um guerreiro. Com o andar dos tempos, bushi e samurai tornaram-se sinónimos.


Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

EM REBUSCA DO JAPÃO XXII

   

   O segredo do entendimento da essência viva da cultura está em agarrá-la tal como surge, em toda a sua concreticidade real, escreve Kuki Shuzo (Iki no kozo, Tokyo, Iwanami Shoten, 1930). Afinal, quando falamos da cultura de uma dada comunidade humana, no seu habitat, nesta ou naquela época, procuramos entender os valores ou referências que, naquela circunstância de espaço e tempo, orientam (dão sentido) a condutas e modos de vida observados. Assim, por exemplo, as «histórias da vida privada», sobretudo porque escritas de uma perspetiva antropológica, contam-nos muito mais acerca de uma cultura, do que as simples narrativas políticas e militares, literárias ou artísticas... O seu trabalho de observação e análise é, afinal, um labor quase arqueológico, na medida em que busca indícios concretos, quotidianos, que nos permitam ir reconstruindo "a nossa vida antes de nós" (dizia João Ameal). E se o jesuíta Luís Fróis é mundialmente considerado, não só a fonte estrangeira mais segura, mas também o mais abrangente testemunho da vida japonesa no século XVI, tal se deve ao olhar sempre lúcido e descomprometido com que esse português foi observando as realidades concretas que a cultura nipónica naquele tempo envolvia.


   Uma mulher honrada não será tida em grande estima se não souber escrever, dizia ele, tal como, um século mais tarde, Ihara Saikaku (escritor seiscentista de que já falámos aqui) diria que uma senhora fina deve entregar-se às artes da harpa, do jogo de damas (go), dos perfumes 3 dos poemas, e em nada se deve mostrar ignorante. Mas talvez as damas da corte de Heian-kyo, ainda que inultrapassáveis no seu génio literário e poético, tivessem permanecido, durante séculos, como modelos de "classe", ao ponto de as próprias "tayo" (cortesãs, prostitutas "finas") do período Edo (ou Tokugawa) se terem considerado suas legítimas herdeiras... Um dia viremos falar sobre geisha, ou "pessoas de artes", artistas do entretenimento, incluindo conversa literária e recitação de poesia, canto e execução de instrumentos musicais. Poucos sabem que os primeiros gei (artes) sha (pessoa) foram homens, aparecidos quando o shogunato Tokugawa, ainda no século XVII, proibiu a exibição de mulheres em palco, para evitar prostituição não licenciada. Todavia, nos bairros de prazer e noutros locais confinados, as primeiras geisha profissionais foram prostitutas reconvertidas em artistas de entretenimento sofisticado e culto que, com o andar dos tempos, acabariam por ser, conforme desejo próprio ou fados da vida, também prostitutas ocasionais ou nada disso e apenas animadoras de festas... Aliás, chegou-se a emitir licenças para geisha com ou sem exercício de prostituição autorizada. Fosse como fosse, algumas delas tornaram-se "estrelas" sociais e várias foram esposas, concubinas, ou simplesmente amigas e conselheiras, até de primeiros ministros.


   Também o nosso padre Luís Fróis, já em finais do século XVI, observara a prática do divórcio no Japão: no Japão qualquer um pode repudiar sua mulher quando quiser, sem que por isso a mulher perca a honra ou o casamento. Tal repúdio fazia-se normalmente por carta chamada mikudarihan, em três linhas e meia. Explicam Pons e Souyri que dizia: «Tendo em conta a nossa recíproca incompatibilidade, e com base em conversas longamente refletidas, separo-me da minha esposa.» O homem não era obrigado a justificar-se nem a explicar as circunstâncias que o levavam a repudiar a mulher. Bastava-lhe afirmar o desejo de se separar dela. Tal bilhete tinha força de lei perante as autoridades judiciais. A sua formulação lapidar pode interpretar-se como exemplo da omnipotência dos homens sobre a casa...   ...Masem 1987o historiador Takagi Tadashi mostrou quetodaviaas coisas eram bem mais complexas: 


   Apesar de práticas que, aparentemente, punham a mulher  em posição de inferioridade no seio do casal, ela podia, muito bem, divorciar-se por iniciativa sua, se assim o desejasse. Por exemplo, acontecia que, na sequência de uma zanga, a mulher abandonasse o domicílio conjugal, para reintegrar a sua própria família, deste modo obrigando o marido abandonado a redigir o tal famoso bilhete. 
[Luís Fróis comenta: No Japão, são muitas vezes as mulheres  a repudiar os homens...] 


   Na verdade, havia uma forma de divórcio resumida pela expressão popular «tsuba no tobidashi rikon», isto é, por «quando a mulher  se vai embora, batendo com a porta»... Então, se ela se recusar a voltar para casa do marido, este ver-se-á obrigado - «posto que é ele que chora» - a escrever o famoso bilhete. Em tais condições, o divórcio não é a expulsão da mulher, mas o contrário: é ela que toma a iniciativa de partir (ou de fugir de casa?)... 


   Ihara Saikaku conta-nos a história duma rapariga que aceitou o casamento «para não desobedecer aos pais», mas que, na noite de núpcias, se recusa ao marido, porque ama outro homem. Furioso, o marido, «tendo escrito uma carta de repúdio, atirou-lha à cara, mas ela, por seu lado, aceitou-a com gratidão»... No seio da nova burguesia do período Edo, designadamente na classe dos comerciantes, eram frequentes os divórcios, até porque os casamentos eram arranjados pelas famílias e ninguém contava com um amor certo entre os esposos, cujas relações se limitavam a assegurar  a continuidade da "casa", seu nome e património. Além disso, o instituto jurídico da adoção permitia o recurso a esta prática por famílias sem descendência. Assim, as relações amorosas, sexuais, eram parte constante das vidas dos casais das classes rurais e populares dos meios urbanos. 


   No fundo, tudo isto pode ser entendido por qualquer ocidental com experiência ou simples conhecimento das instituições e regras, usos e costumes, pautados ou licenciados pelas nossas próprias culturas... Talvez apenas com a diferença subtil do culto estético da circunstância e da prática do prazer sexual que, no Japão, foi sobrevivendo, desde os tempos galantes da corte imperial de Heian até aos artifícios lúdicos dos bairros de divertimento da era Edo.


   A vida sexual da gente comum, todavia, correspondia à diferença natural das respetivas culturas, sem que fossem necessariamente abalados certos pilares dum sentimento original partilhado por todos: a natural inocência do sexo, a complementaridade dos parceiros, a igualdade dos direitos de cada um ao prazer da união. Aliás, é abundante a literatura de iniciação e instrução sexual, num país onde - é bom recordá-lo - a literacia está muito generalizada. As visitas e encontros noturnos (yobai) eram hábitos frequentes, ao ponto de, mesmo em zonas rurais, os quartos das raparigas nunca estarem longe das portas de entrada das casas. Nada de muito diferente das práticas da corte de Heian. No século XIX, um médico da ilha de Shikoku (onde se situa Tokushima e estão as cinzas de Wenceslau de Moraes) escrevia: Na minha Iyo natal não há qualquer tipo de prostituta. Em contrapartida, as raparigas solteiras, as criadas, as viúvas, e as mulheres maduras, facilmente têm relações sexuais. Mas como tal não é, só por si, caso de prostituição, elas não se entregam a homem que não seja do gosto delas. Também isto era verdade para as geisha, tal como para as tayu que, aliás, faziam muitas vezes gala em só receber um pretendente ao fim de várias insistentes visitas. 

   

Camilo Martins de Oliveira

EM REBUSCA DO JAPÃO XXI

   
   No seu Tsurezuregusa (ou "Horas de Lazer"), cuja versão francesa, de Charles Grosbois e Tomiko Yoshida (Les Heures Oisives) foi publicada pela Gallimard-Unesco em 1968, Urabe Kenko (1283-1350) conta-nos que, referindo-se a um poema do ex-imperador Go Toba, se perguntou ao nobre senhor Teika: será sinal de mau gosto aliar-se o termo "sode" (manga) ao termo "tamoto" (ponta da manga)? 


   Existe um precedente, respondeu o senhor Teika: «A espiga do caniço, no meio das ervas do prado outonal, não nos lembrará a ponta da manga (tamoto) de um kimono? E não revelará seu rosto o seu amor e não se parecerá com a manga (sode) de uma mulher a chamar o seu amante? Não há pois inconveniente algum em aliar estas duas palavras».


   
Para bem entendermos esta referência, convirá lembrarmo-nos de que as mangas dos vestidos, na China, como no Japão, quando largas, permitem exprimir, de forma plástica, sentimentos, e a própria poesia gosta de evocar tais imagens e artifícios. O poema aqui citado por Teika encontra-se no capítulo do Outono da antologia Shin Kokinshu. As alusões à natureza e suas coisas, tal como ao papel e símbolos do vestuário (padrões, desenhos, cores, jeitos de vestir) são correntes na literatura da era Heian e, mesmo depois das cenas descritas deixarem de ocorrer nos palácios da corte imperial e acontecerem alhures, inclusive nos bairros de prazer, tais alusões se foram mantendo.


   A historiadora Tanaka Yuko, autora de várias obras acerca das representações eróticas (incluindo shunga) no imaginário nipónico, sobretudo na arte e literatura do período Edo, chega mesmo a escrever que aquelas gravuras, as shunga, são como que «o reino do vestuário». Recorro a uma longa citação de Philippe Pons e Pierre-François Souyri (L’Esprit de Plaisir, Payot, 2020) para compreensiva explicação de tal afirmação:


   O vestuário tem um papel importante nas cenas eróticas. Por várias razões. Primeiro, porque a maioria das pessoas no período Edo tinha apenas um fato, e admirar lindas mulheres em sugestivas poses, revestidas de kimonos com cores magníficas devia estimular a imaginação. Além disso, fazer amor meio vestido também lembrava práticas bastante comuns, se pensarmos que fazia frio por vários meses do ano e as casas não estavam especialmente bem equipadas para resistir ao Inverno... Os vestidos japoneses (para homens como para mulheres) são além disso fáceis de arregaçar e não se usava mais roupa interior do que uma espécie de tangas, muitas vezes de cor encarnada quando trazidas por mulheres. Os criadores de shunga tiravam disso partido para revelarem à sua vontade os órgãos sexuais.  


   Nas estampas eróticas, os corpos são, portanto, raramente despidos. 80% das personagens femininas estão vestidas. Desde a era Heian que os tecidos de cores atraentes e os acessórios têm sido descritos na literatura e pintados na iconografia. Tal acontece ainda a partir do século XVII nas shunga, graças ao desenvolvimento das técnicas de coloração das estampas. Os vestidos, sumptuosos e representados até ao ínfimo pormenor, eram parte integrante da imagem erótica. Tornam-se então um elemento discursivo central da estampa e não apenas um pretexto ou elemento decorativo.


   ... Aliás, muitos pintores de shunga eram também desenhadores de moda que conservavam «cadernos de moda» (hinagata bon), de que se serviam com frequência para desenhar kimonos.


  
Será ousado - talvez não disparatado - sugerir que a focalização do poder socialmente correto na regulamentação das práticas sexuais deu azo a que o imaginário popular se escapasse para o reino da exploração de novos fantasmas... Mas não terá o mesmo, ou algo semelhante, ocorrido nas sociedades ocidentais, a partir sobretudo dos anos loucos de entre-guerras? Seja como for, a mania da moda testemunha um novo olhar sobre o corpo humano (designadamente feminino) em sociedade, mais focalizado no erótico e sua circunstância, praticamente esquecido da inocência original da nudez. De certo modo, pode-se concluir que a moda, afinal, é a erotização dos corpos depois de lhes ter sido interdita a exposição pública da sua própria nudez inocente.


   Pela mesma altura, a influência moral e jurídica do "Ocidente" na construção japonesa de conceitos politicamente corretos de pudor e virtude, bem como do respetivo suporte legal e regulamentar produziu o aparecimento e divulgação de vocabulário novo, tal como waisetsu (obscenidade) que surge no código penal de 1880 (art.º 259, sobre "atos obscenos" (waisetsu shogyo) que, no código napoleónico, são mencionados como attentats à la pudeur... Cabe aqui outra longa citação do L’Esprit de Plaisir, que inclui referências a vários comentários de estrangeiros e japoneses:


   No quadro da sua política «virtuosa», o Estado Meiji trata com rigor os banhos públicos mistos. Com mais êxito do que as autoridades shogunais. Tais banhos eram mencionados na maioria dos relatos de quase todos os visitantes estrangeiros da época. Suscitavam a curiosidade dos espíritos mais abertos e a ultra reprovação dos apóstolos da pudibonderia vitoriana. No decurso da sua viagem ao Japão, em 1889, Rudyard Kipling (1865-1936) experimentara uma surpresa entre divertida e reprovadora quando, ao tomar um banho no Hotel Oriental de Kobe, uma jovem cortez lhe propusera juntar-se a ele, oferta que recusou... O homem de negócios e arqueólogo alemão Heinrich Schliemann (1822-1890), que o precedera no Japão, ficou, pelo contrário, chocado. Escreve, em 1865: «Nem concebo como é que sentimentos de pureza e de santidade podem existir na vida de um povo em que, não somente ambos os sexos frequentam os mesmos banhos públicos, mas até mulheres de todas as idades se divertem imenso como espectadoras de pinturas obscenas»... [Alusão às estampas eróticas e a certos espetáculos de rua].


   A intrépida viajante britânica Isabella Bird (1831-1904), que chegou ao Japão em 1878 e por lá peregrinou, é mais tolerante. Filha de pastor anglicano, não parece nada incomodada pela promiscuidade «desses lugares de convívio comunitário». Até via «na presença das mulheres uma garantia contra qualquer consequência perigosa». 


   A despreocupação dos japoneses com a nudez, que punha a maioria dos estrangeiros aos berros, era a expressão de uma atitude desinibida perante o corpo. Os britânicos também se tinham sentido muito chocados pela nudez dos indianos, quando aportaram ao subcontinente. Todos eram habitados pelo puritanismo da época: a nudez era assimilada à desordem, à negrura da alma, à impureza, à vergonha e, portanto, ao pecado. No seu etnocentrismo, recusavam-se a conceber que o limiar do pudor pudesse variar com os diferentes contextos, estima a historiadora Kawano Satsuki. Os banhos públicos, fossem mistos ou não, eram geralmente sombrios, e o vapor esfumava as formas dos corpos. O prazer das abluções e a tranquilidade trazida pelo calor da água levavam a melhor sobre o olhar indiscreto. O romancista Natsume Soseki 
[de quem já falei e é um dos pioneiros da moderna literatura japonesa] evoca em 1909 a imagem de uma mulher vislumbrada no banho de uma estalagem:


   «A silhueta que surgiu à minha frente em toda a sua beleza nada tem de ordinário. Se eu dissesse que ela se despiu, caíria no mundo da trivialidade. A visão é natural, como se aquela silhueta tivesse nascido na era dos deuses, no meio das nuvens, num mundo sem artifício, em que o vestido não tinha razão de ser...   ...Tal visão não se impõe à minha vista com o imediatismo do nu. Surge confusamente, como que numa atmosfera sobrenatural que transforma o real para nos deixar adivinhar a sua beleza cheia de graça».


   
Interessante também será registar aqui duas observações europeias. Uma do nosso já conhecido Basil Hall Chamberlain (1850-1935) e outra de um suiço, Aimé Humbert (1814-1900), que foi ao Japão em 1860. Diz o britânico que "a higiene é mais importante para os japoneses do que a pudicícia artificial ocidental". E escreve o suíço: Por muito estranhos que esses costumes nos possam parecer, nenhum japonês, antes da chegada dos europeus, imaginaria  que a prática de banhos públicos pudesse ser repreensível. Foi o olhar europeu que tornou feio o que antes não o era...


   
Neste trecho de «Em Rebusca do Japão» - tal como noutros - procuro registar narrativas de factos e comentários de outros tempos, Não tomo, nem quero tomar, qualquer partido sobre o maior ou menor fundamento ético das atitudes e comportamentos revelados. Deixo-nos, a todos, a oportunidade de nos refletirmos em diferentes circunstâncias. Até por uma questão de higiene mental que nos livre de preconceitos e juízos temerários.  


   Aliás, no próprio Japão abundam outros exemplos de estilos de vida e códigos morais, e até de promiscuidades envoltas em ambientes e culturas de vária natureza, como que disfarçados. Atentemos, por exemplo, na corte e na aristocracia de Heian Kyo (a capital da paz, atual Kyoto) que, de finais do século VIII aos do século XII, foi um centro de convívio e cultura sui generis, em que a atividade literária era exercício quotidiano e a prática poética instrumento sistemático de comunicação amorosa.


   Já aqui se falou de Murasaki Shikibu e de Sei Shonagon, duas enormes escritoras do século X-XI, cujas obras, com discrição e espírito crítico, nos desvendam a vida social da aristocracia da corte imperial do tempo. Ficamos assim a conhecer os segredos do make up, do vestuário, das boas maneiras e da elegância, quer dos homens, quer das mulheres, os seus jogos e passatempos. Hoje, ressalto a importância da vida amorosa e sexual: Para os homens de Heian-kyo, havia muito campo aberto. Eram todos casados, como soía, mas, de acordo com os preceitos confucionistas de governo das sociedades, o casamento era puramente uma questão política tratada pelos pais quando ambos os parceiros eram jovens, tendo em vista a criação de vantajosas alianças entre famílias. Normalmente, marido e mulher passavam pouco tempo juntos e encontravam-se apenas para procriar. Amor e casamento nada tinham em comum, ainda que a posição da primeira mulher no topo da hierarquia devesse ser respeitada. [Ainda há poucas décadas, falando, no Japão, com japoneses que me anunciavam o seu próximo matrimónio, eu lhes perguntava se conheciam bem as noivas e obtinha como resposta que não ou nem por isso, tudo fora combinado na sequência de um omiai entre famílias e empresas... O amor, diziam, se tiver de vir, virá depois...]


   Além da mulher primeira, o homem suficientemente rico e poderoso para poder fazê-lo, tinha concubinas, digamos que entre quatro e oito. Estas eram mulheres de classes altas, que ele tinha de tratar de acordo com os procedimentos formais e desposar em cerimónia formal. Além disso, nada o impedia de ter relações ocasionais com mulheres ou concubinas de outros homens, damas de companhia e, até, senhoras de inferior condição social (com as quais, evidentemente, não podia estabelecer um vínculo formal) ou, ainda, "mulheres de prazer". A promiscuidade era parte da vida, e um homem que fosse fiel a uma só mulher era considerado algo estranho e incitado a corrigir-se...


  
Estas considerações da britânica Lesley Downer (Geisha - the secret history of a vanishing world, Londres, Headline, 2000) desenham bem o cenário em que se desenrolou a vida aristocrática, e se desenvolveu o gosto estético e a literatura, na cidade e era de Heian-kyo. Mas também nos abrem uma janela para o que viria a ser, em séculos posteriores, a íntima ligação do amor e do sexo (ou do tal "espírito de prazer") com as artes e letras, desde a beleza dos tecidos e adereços ao engenho dos poemas compostos para comunicar mensagens.


   A título de exemplo, traduzo um dos Ise Monogatari (sécIX) e, para cotejo, um trecho dos Ukiyo Monogatari (séc. XVII), ou seja, um poema da era de Heian-kyo e outro da era de Edo ou Tokugawa, em que, com o advento de uma nova burguesia mercantil e endinheirada, se levantaram, confinaram e regulamentaram os bairros do prazer.


   Outrora, um homem endereçou o seguinte a uma dama que raramente encontrava:


               O tempo dos nossos encontros,
               digo eu para comigo,
               é instante como relâmpago
               mas longa me parece
               a vossa crueldade...

   Sete séculos depois:
   Vivendo só para o instante, entregando todo o nosso tempo só aos prazeres da lua, da neve, das cerejeiras em flor, e dos momiji. Cantando, bebendo vinho, acariciando-nos, e deixando-nos ir à deriva, sempre sem rumo. Não fazendo caso de não termos dinheiro, nem deixando a tristeza entrar-nos no coração. Só como planta seguindo a corrente do rio: eis o que chamamos ukiyo, o mundo flutuante...


   A  presença sempre aguda do sentimento de fatalidade do efémero, é milenar na cultura japonesa, a nossa permanente circunstância sendo tão só o instante. Esquecê-lo seria abrir à dor a porta do coração. O ukiyo de que, em 1661, nos fala o escritor Ryoi Asai, no texto citado acima, era originalmente um conceito budista referindo a transitoriedade de todas as coisas.

   

  Camilo Martins de Oliveira

EM REBUSCA DO JAPÃO XX

 

   A cultura japonesa, desde os mitos fundadores, nunca tratou com inibição qualquer sexo ou relações sexuais. Estas são tão naturais como o mundo em que vivemos, não há razão para as demonizar como concupiscentes, nem para as culpabilizar como pecado. Já nas duas crónicas mais antigas, o Kojiki (712) e o Nihonshoki (720) isso se afirma. No Kojiki (ou Recolha de coisas antigas) se pode ler a descrição do nascimento da terra japonesa, resultante da cópula de duas divindades, uma masculina, outra feminina: Tenho em mim um sítio que sai para fora, disse Izanagi, e eu tenho um que é côncavo disse Izanami; e Izanagi prosseguiu: disto deveria nascer a Terra. Muito bem, respondeu a deusa. É ainda no mesmo Kojiki que lemos a história da deusa do sol Amaterasu omikami que, por zanga com seu irmão Susanoo, se encerra numa gruta, deixando assim o mundo às escuras. Para a tirar cá para fora, a deusa Ama no Uzume lembra-se de encenar uma dança em que o seu vestido se rasga e abre deixando à vista de todos os encantos da sua feminilidade: A deusa, no furor do transe, arrancou o tecido que lhe tapava o peito e, desatando o cinto, fez cair o vestido para exibir toda a sua nudez... Então, em uníssono, as oito mil miríades  de deuses e deusas do planalto celeste desataram a rir. Eis que aqui se descreve como Amaterasu, alertada por tanto alvoroço, entreabriu a entrada da gruta e foi puxada para fora, ou ainda como o erotismo japonês tem, desde o início, algo de divertimento, de brincadeira, de comédia...


   De qualquer forma, esse universo a que chamamos sexo nunca ali foi, propriamente, objeto ou sujeito de regras morais, excetuando talvez o período Meiji, quando, em sequela da abertura do Império do Sol Nascente ao Ocidente, também certos conceitos e valores de ordem ética foram tentativamente impostos pelas autoridades nipónicas competentes, ao comportamento sexual do comum dos cidadãos. [A moral política e socialmente correta então reinante no mundo anglo-saxónico tornou-se conhecida como moral "victoriana"]. Em contrapartida, apesar da muita consideração e respeito granjeados sobretudo pelas prostitutas de primeira classe, foi prevalecendo uma cultura de proteção da família (ou da "casa", a ie, como já vimos) enquanto pilar importante do sistema económico e social vigente. Este, por um lado, submetia a filha, mulher e mãe a uma vida regrada (e dura), mas garantia-lhes um estatuto funcional de especial qualidade.


   O nosso quinhentista jesuíta Luís Fróis, arguto e rigoroso observador de muitas facetas da vida japonesa - que cotejava sistematicamente com os nossos próprios conceitos, usos e costumes  -  já em 1585 escrevia que a nossa gente lava o corpo sem se mostrar, mas no Japão homens, mulheres e bonzos se lavam em banhos públicos, tal como, à noite, na rua, em frente da porta de casa... Na verdade, confirmam em pleno século XXI Philippe Pons e Pierre-François Souyri (L’Esprit de Plaisir, Payot, 2020), os banhos coletivos, instalados designadamente em templos, existiam desde tempos remotos. Os «banhos públicos», que existiam nos burgos desde o século XIII, desenvolveram-se desde o fim do século XVI, com o nome de yuya. Homens e mulheres banhavam-se juntos sem que alguém se escandalizasse. Estava-se pois habituado a ver, desde a infância, pessoas nuas, homens ou mulheres. Aliás, é por isso que as pinturas eróticas apresentam corpos meio vestidos e raramente nus, porque os corpos, em si, não são eróticos... [Ter isto em conta talvez nos ajude a compreender a inocência básica dos campos nudistas. Tal como será interessante - embora à margem do tema deste texto - interrogarmo-nos sobre  o porquê de Adão e Eva só terem descoberto a sua nudez depois de terem comido o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Pensamos na palavra de Jesus: não é o que entra no humano que é impuro; impuro é o que dele sai.]


   Em 1810, ainda dois terços dos banhos públicos em Tokyo eram mistos, numa altura em que a simples autorização e existência dos mesmos seria impensável na China ou em qualquer país ocidental. Mas a política de restrição e interdição dos mesmos, iniciada já nos finais do período Edo e, rigorosamente, a partir de 1869, no início da era Meiji, conseguiu que em 1890 eles tivessem desaparecido de Tokyo. Para além de testemunhos mais antigos, como o de Fróis no século XVI, muitos outros nos expõem a realidade:


   Carl Peter Thunberg, botânico sueco que residiu um ano na feitoria holandesa de Deshima (Nagasaki), escreve em 1776 que as mulheres não tomam qualquer precaução para cobrir a sua nudez quando se banham num lugar público, nem que se trate de sítio onde se exponham aos olhos dos holandeses e de todos os que por lá passarem; 
o francês conde de Beauvoir, em 1872, já no início da era Meiji, avisa: «Não vos escandalizeis: no Japão vive-se à luz do dia, não se sabe o que é pudor ou impudor...  ...Todos para ali estão, aos molhos, homens, mulheres, rapazes e raparigas, como arcanjos... Esfrega-se, esfrega-se. Passeia-se, até se vem pedir um cigarro aos nobres estrangeiros [presumo que mirones]; as tatuagens mais esplêndidas dos homens brilham no meio de rosas cor de ninfas enleadas que os esfregadores profissionais ensaboam e limpam: aquela boa gente faz tudo isso com muito sangue frio, com ar de achar a coisa tão natural, que por um triz entraríamos no grupo sem pensar derrogar esse preconceito social que se chama «shocking»; o nosso já conhecido Basil Hall Chamberlain - que, em passo anterior desta rebusca do Japão, Lévy-Strauss apresentava como um sucessor de Luís Fróis no século XIX - afirmava que no Japão «a nudez é vista, mas não é olhada»; e Charles Grosbois, estudioso da cultura japonesa, dizia, por volta de 1960, que o banho japonês tradicional reunia homens e mulheres nus sem implicações sexuais.


   
Valerá a pena recorrer aqui à obra de Philippe Pons e Pierre-François Souyri acima referida para evitar conclusões imperfeitas ou apressadas. Cito: A atmosfera do banho público impunha alguma retenção e não era um lugar propriamente erótico. Mas não deixaria de ser um lugar de fantasmas, como testemunha um tríptico de Utagawa Kunisada (1786-1865) representando uma cena orgíaca ali se desenrolando. Muitas estampas apresentam cenas de copulação improvisada num banho público.


   A estrutura das casas japonesas, com as suas leves divisórias e papel translúcido (shoji), não abafava os ruídos, deixava ver as sombras e favorecia a exposição dos corpos. Nas casas de gente abastada, não era raro ser-se visto a fazer amor, por qualquer criada ou criado que espreitasse - cena aliás muitas vezes representada em estampas eróticas. O mais das vezes, a criada contempla a cena com algum desejo, ou até se toca.


   Mirone? Talvez não. Este conceito não aparece antes da era Meiji. Não se trata de surpreender à revelia uma cena considerada interdita. Os japoneses daquele tempo não tinham clara consciência de que fossem tabu as relações sexuais entre um homem e uma mulher que, livres, não eram, em si mesmas, objeto de opróbio. Contavam-se sem rebuço histórias ligadas ao sexo, desenhavam-se figuras sexuais e se, por acaso, se assistisse a jogos amorosos de um casal, tal era considerado permitido. Não existiam, nos meios populares, espaços íntimos como quartos de dormir, e, sobretudo no verão, as casas japonesas abriam-se sobre a rua. O ato sexual era frequentemente considerado como uma brincadeira.


   
Volto-me novamente para o excelente observador que foi o padre Luís Fróis, que notava como as raparigas japonesas (no século XVI!) podem ir onde muito bem lhes apetece, por um ou mais dias, sem terem de prestar contas a seus pais.


   Aliás, as frequentes peregrinações a santuários vários eram pretexto para tais deslocações e, como os peregrinos eram alojados em salas comuns, sucediam encontros mais íntimos e muitas jovens então perdiam a virgindade, sem que tal ofuscasse fosse quem fosse. O nosso quinhentista jesuíta reparou em que as mulheres do Japão não ligam nada à pureza virginal e, quando a perdem, tal não as desonra nem impede de virem a casar-se. Curiosamente, o cônsul plenipotenciário dos EUA, Townsend Harris, anota, com data de 16 de janeiro de 1856, no seu diário, o teor de uma conversa que tivera com o vice-governador japonês: Perguntei-lhe então o que fazia um homem que, tendo casado com uma mulher que supunha virgem, veio a descobrir que afinal ela não o era. «Não faz nada, que poderia ele fazer? Isso já me aconteceu, mas que podia eu fazer? De qualquer modo, a culpa não era minha».


   
Deixo para posterior desenvolvimento temas decorrentes do acima relatado, incluindo questões relativas ao enquadramento social (e administrativo) da sexualidade, bem como ao seu tratamento estético e literário. Sempre que nos debruçamos sobre as diversas perspetivas religiosas, morais, jurídicas, culturais, sociais e legais pelas quais as variegadas humanas gentes foram olhando para essa complexidade a que chamamos "sexo", surpreende-nos o seu carácter e força viral: transmite-se a tudo e tudo influencia, qual princípio fulcral da vida, essa perseverança do ser no ser - de que tão bem fala António Damásio ou tão brilhantemente definiu Georges Bataille (l’érotisme c’est l’affirmation de la vie jusque dans la mort). Mas não serão, afinal, as culturas humanas que tornam complexa, libertina ou tabu, a própria expressão do nosso inescapável princípio vital?  

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XIX


Minha Princesa de mim:


   Como bem sabes, desde muito jovem convivi com os livros e o pensamento de Ortega y Gasset. E fui guardando e remoendo certas ideias que me enchiam o coração. De algumas delas amiúde te falei, sobretudo quando as surpreendia na liça das minhas cogitações. Mas creio que nunca te disse algo especial que me ocorreu aquando da minha primeira visita ao Japão, há décadas.


   Um esforçado professor universitário nipónico procurava explicar-me a "timidez" de pronomes pessoais no falar japonês, recorrendo a conceitos e exemplos - de que já tratei noutras cartas e textos meus - enraizados numa visão abrangente do mundo, do humano e da natureza. Com o desenrolar das explanações, ia-se acentuando em mim uma qualquer impressão de "já visto", mas de pernas para o ar. Ao fim e ao cabo, ocorreu-me então que a noção "gassetiana" de que yo soy yo y mi circunstancia, se poderia traduzir, em japonês, por yo soy mi circunstancia y yo... Pouco ou nada sabendo que, quatro décadas mais tarde,  acharia em Lévi-Strauss, antropólogo que eu pouco lera antes, uma interessante interpretação do "mistério". Descobri-a relendo o texto de uma conferência que ele proferiu em Kyoto, a 9 de março de 1988, sobre o tema de La Place de la Culture Japonaise dans le Monde, de que seguidamente traduzo alguns trechos.


   Os filósofos ocidentais veem duas diferenças maiores entre o pensamento oriental e o deles. A seus olhos, o pensamento oriental caracteriza-se por uma dupla recusa. Primeiro, a recusa do sujeito, já que, de modos diversos, o hinduísmo, o taoísmo, o budismo negam o que, para o Ocidente, constitui uma evidência elementar: o eu, cujo carácter ilusório aquelas doutrinas insistem em demonstrar. Para elas, cada ser mais não é do que uma montagem provisória de fenómenos biológicos e psíquicos, sem elemento duradouro como é um si mesmo: aparência vã, inelutavelmente destinada a dissolver-se.


   A segunda recusa é a do discurso. Desde os gregos que o Ocidente julga que o homem tem a faculdade de apreender o mundo, utilizando a linguagem ao serviço da razão: um discurso bem construído coincide com a realidade, atinge e reflete a ordem das coisas. Pelo contrário, segundo o conceito oriental, qualquer discurso está irremediavelmente inadequado ao real. A natureza essencial do mundo  -  a supor-se que tal noção tenha sentido - escapa-nos. Transcende as nossas faculdades de expressão e de reflexão. Dela nada sabemos, sendo assim melhor que nada digamos. 
[Lembrando a simetria, ou inversão de imagem, de que já vínhamos falando, Princesa de mim, ocorre-me que o próprio São Tomás de Aquino, Doutor da Igreja - e estrela da escolástica - já dizia, no século XIII, que de Deus só não sabia nada. Na verdade, da Sua existência, avançou provas várias, racionais. Mas sabia e reconhecia que, da Sua essência, nada sabia...]. 


   A ambas as recusas 
[do sujeito e do discurso], reage o Japão de modo inteiramente original. Não dá ao sujeito uma importância comparável à que o Ocidente lhe atribui, nem dele faz o obrigatório ponto de partida duma reflexão filosófica, nem de qualquer tentativa de reconstrução do mundo pelo pensamento. Houve mesmo quem dissesse que o «Penso, logo existo», de Descartes é, em rigor, intraduzível em japonês...


   Mas também não parece que o pensamento japonês aniquile o sujeito: antes fará, dele, não uma causa, mas um resultado. A filosofia ocidental do sujeito é centrífuga, já que tudo parte dele. Mas o conceito japonês do sujeito é centrípeto. Tal como a sintaxe japonesa constrói as frases por determinações sucessivas, que vão do geral ao particular, o pensamento japonês põe o sujeito na meta: ele resulta do modo como os grupos sociais e profissionais, cada vez mais restritos, encaixam uns nos outros. O sujeito volta assim a encontrar uma realidade, como se fosse o último lugar em que se refletem as suas pertenças. 


   Este modo de construir o sujeito pelo lado de fora também serve à língua, propensa a evitar o pronome pessoal, tal como à estrutura social em que a «consciência de si» (jigaishi) se exprime no e pelo sentimento que cada um, mesmo o mais humilde, tem de participar numa obra coletiva. Até ferramentas de conceção chinesa, como certas serras e tipos de plainas, só foram adotadas no Japão, há seis ou sete séculos, com um modo de emprego invertido: o artífice puxa a si a ferramenta em vez de a empurrar para a frente. Situar-se à chegada, e não à partida, de uma ação exercida sobre a matéria revela profunda propensão a definir-se pelo exterior, em função do lugar que se ocupa numa família, num grupo profissional, em dado meio geográfico, ou, de modo mais geral, no país e na sociedade. Dir-se-ia que o Japão revirou, como se revira uma luva, a recusa do sujeito, para extrair dessa negação um efeito positivo e aí encontrar um princípio dinâmico de organização social que ponha esta também a salvo da renúncia metafísica das religiões orientais, da sociologia estática do confucionismo e do atomismo a que o primado do eu expõe as sociedades ocidentais.


   A resposta japonesa à segunda recusa é de género diferente. O Japão operou uma completa reviravolta de um sistema de pensamento: posto pelo Ocidente na presença de outro sistema, retém o que lhe convém e afasta o resto. Visto que, longe de repudiar em bloco o logos, tal como os gregos o entendiam - isto é, enquanto correspondência da verdade racional ao mundo - o Japão tomou resolutamente partido pelo conhecimento científico, onde, aliás, vem a ocupar um lugar de primeiro plano.


   
Seja como for, proponho-me agora sublinhar a importância pragmática de pensarsentirmos o indivíduo, o eu, não como centro mas como parte de um conjunto solidário, necessário ontologicamente. O ser humano, e não só, é um ser em relação, não se explica, nem sequer existe por si e para si. Ao cartesiano cogitoergo sumprefiro o gassetiano yo soy yo y mi circunstancia, posto que, sendo arbitrária a ordem dos fatores, o mesmo é dizer que yo soy mi circunstancia y yo... Aliás, as últimas encíclicas do papa Francisco lembram à nossa cultura hodierna o dever de nos pensarsentir prioritariamente na fraternidade da nossa humanidade comum e com a terra, nossa mãe e abrigo. Assim também me ensinou, ao longo destes anos todos, o meu convívio japonês.

 

Camilo Maria    

   

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XVIII


Minha Princesa de mim:


   Apprivoiser l’ Étrangeté, de Claude Lévi-Strauss, aparece encabeçado por uma citação de Platão: Pois que é o mais contrário, acima de tudo, o maior amigo do que lhe é mais contrário... Assim, Princesa de mim, há paradoxos em que os contrários nos surgem como alter-ego do outro. Também é verdade que prudência é grande amiga da perspicácia e, por isso mesmo, ao querer aproximar-me do ignoto, do desconhecido, tenho sempre bem presente aquela definição "agostino-aquinense" da prudência como amor sagaz. Mas hoje vamos deixar Lévi-Strauss falar-nos do padre Luís Fróis. Traduzirei trechos do tal Apprivoiser l'Étrangeté.


   O Ocidente descobriu o Japão por duas vezes: em meados do século XVI, quando os jesuítas, na senda dos mercadores portugueses, ali entraram (mas foram expulsos um século depois); e trezentos anos mais tarde, com a ação naval conduzida pelos Estados Unidos para obrigar o Império do Sol Nascente a abrir-se ao comércio internacional.


   O padre Luís Fróis foi um dos principais atores da primeira descoberta. Papel comparável desempenhou, na segunda, o inglês Basil Hall Chamberlain, de quem Fróis surge hoje como o precursor. Nascido em 1850, Chamberlain visitou o Japão, por lá ficou e lá se tornou professor da Universidade de Tokyo. Num dos seus livros, "Things Japanese", publicado em 1890  e composto como um dicionário, na letra T desenvolve um artigo intitulado "Topsy-Turvy Dom" (
o mundo com tudo do avesso) em que afirma que «os japoneses fazem muitas coisas de maneira exatamente contrária à que os europeus consideram natural e conveniente»...


   ...Se ele tivesse conhecido o tratado de Fróis, teria encontrado um repertório fascinante de observações por vezes idênticas às suas, mas mais numerosas, e conduzindo todas à mesma conclusão...


   
Alimentado pelo seu trabalho antropológico, Lévi-Strauss vai então buscar um interessante termo de comparação das notas de Fróis (séc. XVI) e Chamberlain (XIX) com outras, acerca do Egipto, feitas por  Heródoto no século V antes de Cristo! Diz o grego antigo: «Os egípcios conduzem-se, em todas as coisas, ao contrário dos outros povos.» As mulheres dedicam-se ao comércio, enquanto os homens ficam em casa. E são estes, e não elas, quem tece. E começam a tessitura na parte de baixo do tear, e não pela de cima, como nos outros países. As mulheres urinam em pé, os homens de cócoras... E o antropólogo francês comenta: E não continuo a lista, que põe em evidência uma atitude de espírito comum aos três autores. E acrescenta: 


   Não devemos ver só contradições nas disparidades que enumeram. Têm muitas vezes um estatuto mais modesto: ora simples diferenças, ora presença aqui, ausência ali. E Fróis bem o sabia, pois que, no título da sua obra, as palavras contradições diferenças [em português no texto francês] estão lado a lado. E todavia, nele, muito mais do que nos outros dois autores, existe um esforço para que todos os contrastes caibam no mesmo quadro. Centenas de comparações, formuladas de modo conciso e construídas de modo paralelo sugerem ao leitor que não se lhe assinalam apenas diferenças, mas que todas essas oposições constituem, de facto, inversões. Entre os usos de duas civilizações, uma exótica, outra doméstica, Heródoto, Fróis, Chamberlain, partilharam a mesma ambição: para lá da ininteligibilidade recíproca dessas civilizações, eles insistiam em poder ver relações transparentes de simetria. 


   
Pessoalmente, sempre procurei tentar perceber a razão e o modo de pensamentos, sentimentos e comportamentos que me pareciam estranhos, interrogando-me também, simultaneamente, sobre as razões e modos dos meus próprios. Talvez por isso, cedo compreendi que, antes de qualquer construção mental e afetiva, e por detrás das suas expressões, existe um húmus humano comum, graças ao qual nos podemos reconhecer no que, em primeira abordagem, nos aparecia contraditório. Sei, Princesa de mim, que reincido na tradução de longas citações, mas acho bem deixar-te aqui uma conclusão de Lévi-Strauss:


   Assim, teremos de reconhecer que o Egipto, para Heródoto, tal como o Japão, para Fróis e Chamberlain, tinham uma civilização em nada desigual à deles? A simetria que reconhecemos entre duas culturas une-as ao opô-las. Surgem-nos simultaneamente semelhantes e diferentes, como a imagem simétrica de nós mesmos refletida por um espelho que nos fica irredutível, apesar de nos descobrirmos em cada pormenor. Quando o viajante se convence de que usos em total oposição aos seus o tentariam a desprezá-los e rejeitar com desgosto, na realidade lhes são idênticos quando vistos ao contrário, aprende a domesticar o estranho, a torná-lo familiar. 


   Ao sublinhar que os usos dos egípcios e os dos seus próprios compatriotas estavam numa relação de inversão sistemática, Heródoto punha-os realmente no mesmo plano, e indiretamente dava conta do lugar que cabia ao Egipto segundo os gregos: civilização de respeitável antiguidade, depositária de um saber esotérico ao qual se podiam ir buscar ainda ensinamentos.


   Tal como noutros tempos, posto numa conjuntura comparável em presença doutra civilização, é também pelo recurso à simetria que Fróis, sem o saber, pois era cedo demais, e Chamberlain, sabendo-o, nos deram um meio de melhor compreender a profunda razão pela qual, por volta de meados do século XIX, o Ocidente ganhou o sentimento de se redescobrir nas formas de sensibilidade estética e poética que o Japão lhe propunha.

 

Camilo Maria    

   

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XVII


Minha Princesa de mim:


   A coleção La Librairie du XXIe. Siècle, dirigida por Maurice Olender, publicou em 2011 uma pequena coletânea de escritos do grande antropólogo Claude Lévi-Strauss, intitulando-a L’AUTRE FACE DE LA LUNE - Écrits sur le Japon (Seuil, Paris). Junzo Kawada recorda, no prefácio a essa obra, uma confissão de Lévi-Strauss que, na apresentação da edição japonesa do seu livro Tristes Tropiques, em 1977revela o seu apego ao Japão:


   Nenhuma influência contribuiu mais precocemente para a minha formação intelectual e moral do que a da civilização japonesa. Por vias bem modestas, sem dúvida: meu pai, artista pintor, fiel aos Impressionistas, tinha, na mocidade, enchido uma gorda pasta de estampas japonesas, e deu-me uma pelos meus cinco ou seis anos. Ainda me lembro dela: era uma gravura de Hiroshige, já muito gasta e sem margens, que representava umas passeantes debaixo de uns grandes pinheiros à beira-mar. 


   Entusiasmado pela primeira emoção estética que ressentira, com ela cobri o fundo de uma caixa que me ajudaram a pendurar por cima da minha cama. A estampa fazia de panorama avistado do terraço dessa casinha que, de semana em semana, eu me entretinha a rechear de móveis e personagens em miniatura importados do Japão, e de que uma loja chamada "La Pagode", situada na rua dos Petits Champs, em Paris, fizera especialidade sua. Desde então, uma estampa veio premiar  cada um dos meus êxitos escolares, e assim foi durante anos. A pouco e pouco, a pasta de meu pai foi-se esvaziando para proveito meu. Mas tal não chegava para conseguir o encantamento que me inspirava o universo que eu ia descobrindo através de Shunsho, Yeishi, Hokusai, Toyokuni, Kunisada e Kuniyoshi... Até aos meus dezassete ou dezoito anos, todas as minhas economias se gastaram em estampas, livros ilustrados, lâminas e copas de sabre, indignas de qualquer museu (já que as minhas só me deixavam adquirir coisas humildes), mas que me absorviam durante horas, nem que fosse para - armado de uma lista de caracteres japoneses - apenas decifrar, laboriosamente, títulos, legendas e assinaturas... Posso portanto dizer que toda a minha infância e parte da minha adolescência se desenrolaram tanto, ou talvez mais, no Japão do que em França, pelo coração e pelo pensamento.


   
Todavia, curiosamente, só entre 1977 e 1988 é que Lévi-Strauss fez umas cinco viagens ao Japão, onde nunca estivera, ele que nascera em 1908. Já depois de ter escrito que, apesar dissonão ignoro as grandes lições que a civilização japonesa tem em reserva para o Ocidente, se este quiser entendê-las: que, para viver no presente, não é necessário odiar e destruir o passado; e que não há obra de cultura digna de tal nome onde não haja lugar para o amor da natureza e respeito por ela. Se a civilização japonesa consegue manter o equilíbrio entre a tradição e a mudança, e se o preserva entre o mundo e o homem, sabendo evitar que este não arruíne nem torne feio aquele, por, numa só palavra, permanecer persuadida, conforme o ensino dos seus sábios, de que a humanidade ocupa esta terra a título transitório e de que tal breve passagem não lhe confere o direito de causar irremediáveis danos a um universo que existia antes dela e continuará a existir depois, então talvez tenhamos uma fraca probabilidade  de que as sombrias perspetivas a que este livro chega não sejam, pelo menos em partes deste mundo, as únicas promessas às futuras gerações...


   
Reconheço, minha Princesa de mim, que esta carta te foi escrita mais pelo Claude Lévi-Strauss do que por este Camilo Maria que a subscreve. São, na verdade, muito longas as citações que aqui traduzo, mas também é certo que a minha convivência de décadas com a gente nipónica e a sua cultura me leva a acordar-me com tudo, ou quase tudo, do que aqui transcrevi do prefácio straussiano à edição japonesa (em 1977?) do seu Tristes Tropiques, cujo original francês foi publicado pela Plon, Paris, em 1955. Aliás, tem sido longa a minha própria reflexão acerca das diferenças culturais, tal como da evolução das culturas de, e em, várias sociedades, da aculturação e inculturações que todos os dias vão medrando por esse mundo em que vivemos ou, melhor, convivemos. Aprendi muito, quanto ao Japão, com o padre Luís Fróis, jesuíta português do século XVI, observador perspicaz e amantíssimo das gentes e coisas japonesas. Em próxima carta, Princesa de mim, debruçar-me-ei sobre um capítulo de L’autre face de la Lune, capítulo esse intitulado Apprivoiser l’étrangeté (que traduzo por "Domesticar a estranheza ou o estranho", no sentido de tornar cá de casa o que nos é estranho, ou seja, também, conviver com a nossa própria estranheza. A fonte de tal capítulo é um prefácio de Lévi-Strauss ao livro Européens & Japonais. Traité sur les contradictions & différences de moeurs, versão francesa (Chandeigne, Paris, 1998) dum escrito do padre Luís Fróis, no Japão, em 1585. Veremos então a bem profunda admiração de Lévi-Strauss pelo nosso missionário quinhentista...

 

Camilo Maria

   

Camilo Martins de Oliveira

EM REBUSCA DO JAPÃO XVI

Kenroku-en Garden em Kanazawa.jpg

 

    Mudou certamente, quiçá mais do que os fugidios tempos, o modo em que se dizem os pensamentos e o seu sentir. Mas, do século X de Sei Shonagon ao XIV de Urabe Kenko, através de tantas mudanças, manteve-se o apego nipónico à natureza e seus sinais, o gosto literário das lides amorosas, e o seu culto pela mulher enquanto adorno, ou beleza, ou sedução, tal como a tentação subtil da fuga para a solidão eremítica, em busca do possível buda, mesmo que as orações e purificações rituais se pudessem fazer em templos shintoístas. 

   É bom fazer-se um retiro secreto em qualquer templo budista ou num santuário shinto... Retirar-me num templo perdido nas montanhas e servir Buda. Acabam-se os aborrecimentos e as próprias máculas do coração. Sinto-me purificado...

   Mas, como subtilmente observa Charles Grosbois, seu tradutor, Kenko não condena a paixão, «sal da vida». Descreve complacentemente os arroubos do amor, «o amante molhado de orvalho e de geada, perdido, caminhando sem destino»... Reprova os desejos sensuais, mas diverte-se com a anedota do mágico que perde os seus poderes só por vislumbrar, entre as nuvens, as belas pernas brancas de uma lavadeira... 

   A beleza feminina é apreciada, e o monge Kenko fala das mulheres sem embaraço, como neste trecho: Quanto à mulher, é a beleza do seu cabelo que atrai o olhar. A personalidade de uma mulher e o seu carácter reconhecem-se sobretudo no seu modo de falar, mesmo se ela estiver encoberta por qualquer divisória. Em qualquer ocasião, pelas suas próprias maneiras, ela seduz o coração do homem. Ignorando um sono repousado, não se poupa a qualquer pena e suporta as coisas menos suportáveis, já que o seu coração pensa no amor... ... O que também poderá querer dizer que quem não saborear a vida amorosa será como uma taça de cristal de fundo roto...

   [Abro aqui um parêntese para recordar um trecho do Saint Dominique de Georges Bernanos, que seguidamente traduzo. O santo está na hora da morte:

    Os frades juntam-se para apanhar, se possível, algo da palavra que vai enfraquecendo.Domingos faz um gesto com a mão,eles aproximam-se. Pela humildade do gesto, percebem que tem qualquer confissão pública para fazer, e que sente a  pesar-lhe no coração. Aquele que apareceu ao papa Inocente III num sonho em que levava aos ombros a Igreja de Latrão, e que fora conselheiro de pontífices e de príncipes, árbitro de tantos destinos, mestre e legislador de tantas consciências, terá descoberto, naquele solene instante, com terror, o carácter abstracto, quase terrível, da sua vocação doutrinária? Que escrúpulo o atormentará?

   Põe nos seus irmãos os olhos azuis, o olhar inteiro. «Acuso-me  -  diz o mestre dos Pregadores  -  de sempre ter preferido, à conversa dos velhos, a conversa das mulheres jovens».

   E Bernanos conclui assim a sua lembrança de São Domingos de Gusmão : 

   «A religião do meu filho Domingos é um delicioso jardim, imenso, alegre e perfumado»  -  disse certo dia Nosso Senhor a Santa Catarina de Sena, que o reporta.]

   Pelo outro lado da vida, o monge budista japonês descobre que escolher a frugalidade, recusar qualquer luxo, não possuir riquezas, nem cobiçar os bens deste mundo, é, para todo o ser  humano, o verdadeiro bem. Desde a antiguidade que é raro um sábio ter conhecido a opulência...

   Dilema ou paradoxo, a nossa vida é feita de opções possíveis que nos vão espreitando, posto que, como já disseram os nossos poetas maiores, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades...   ...todo o mundo é composto de mudança...

   Trânsfugas da natureza, como nos definiu Ortega y Gasset, nela ficamos todavia enraizados, a ponto tal que, contemplando-a, nos entendemos melhor. Assim escreve Urabe Kenko:

   A sequência mutável das estações revela todas as coisas comoventes. «Intimidade comovente com as coisas, no outono», dirá cada um, «mais sensível do que nunca». É, sem dúvida, verdade, mas é ainda maior a alegria que nasce no coração perante os espectáculos da primavera. No próprio canto dos pássaros ressoa a renovação ; ao sereno raiar do sol surgem os rebentos das sebes. Já a primavera se manifesta : estende-se a bruma, chega a hora em que as flores finalmente desabrocham. Mas também está aí a chuva e o vento incessante que logo as dispersa. Até na verdura frondosa o nosso coração encontra mil tormentos...

   Este monge budista associa sempre o sentimento da natureza aos seus sentimentos amorosos : «Uma noite perfumada pelo olor das ameixeiras, uma lua velada; a hesitação, em pé, junto à cerca. A lua no céu de alva, quando saímos para o parque imperial e sacudimos o orvalho da relva : quem nunca passou por tudo isso, melhor faria em renunciar às doçuras do amor... 

   ... O ser humano será, eternamente, um escravo medroso da sorte, boa ou má, procurando apenas encontrar o prazer, eliminando a dor. O prazer : amar e apegar-se, busca sem fim...

   Os desejos nascem de um contrassenso fundamental sobre o valor das coisas, e causam muita infelicidade. Mais vale não lhes obedecer.

   Mas a interrogação, a perplexidade humana, a própria vontade de bem querer, afinal, talvez não tenham lei nem resposta certa, e certamente são uma cadeia infinita e misteriosa :

   Um eremita, cujo nome me escapa, disse : «Nada me prende já ao mundo, mas todavia continuo afeito à beleza fugidia das estações no céu». Dito que tem toda a minha simpatia.

   Quando tinha sete anos, fiz esta pergunta a meu pai : «Quem é Buda?» Meu pai respondeu : «É um homem que se tornou Buda». Voltei a perguntar : «Como é que esse homem se tornou Buda?» -  «Tornou-se Buda pelos ensinamentos de um Buda», respondeu o meu pai. Perguntei : « Quem era esse Buda que ensinou o outro?»  -  «Foi assim também pelo ensinamento de um precedente Buda!», respondeu o meu pai. Perguntei ainda : «Quem foi o primeiro Buda que começou a ensinar?» Então o meu pai disse : «Teria ele caído do céu, como a chuva, ou cresceu da terra?» E pôs-se a rir.

   Contou a anedota a muita gente. «Fui entalado pelas perguntas do meu filho, até não conseguir responder-lhe»...

   Seja qual for a nossa fé e a nossa cultura, há ânsias e perguntas que nos mordem sempre. Mas também creio que a descoberta constante da beleza na inconsistência ou imperfeição das coisas, e de nós próprios, nos ajuda a vislumbrar aquilo que ainda não alcança o nosso olhar.

    

                                                                    Camilo Martins de Oliveira