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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  

De 25 a 31 de julho de 2022 


“Alteridade e Transcendência” (Fata Morgana, 1995) de Emmanuel Levinas constitui uma reflexão fundamental na qual a pessoa humana surge no centro da vida. Trata-se do autor do século XX que melhor tratou do tema da importância do rosto na relação humana. A sua leitura permite compreender os grandes dilemas da existência.


«Diz o Povo que o rosto é o espelho da alma. Com os olhos nos olhos entendemo-nos e o carácter demonstra-se na capacidade de nos encararmos frontalmente. Quem foge ao olhar do outro, em boa verdade, foge de si próprio. O outro é, de facto, a nossa natural continuação – a outra metade de nós mesmos. Pelo olhar comunicamos e apercebemo-nos da alegria ou da tristeza, da dúvida ou da certeza, da confiança ou do medo, do pânico ou da indiferença, da atenção ou da dispersão, do conhecimento ou da ignorância, da generosidade ou da ganância, da serenidade ou da perturbação, da violência ou da piedade, do sossego ou do desassossego, da guerra e da paz. E o que é a cultura senão a compreensão da multiplicidade de atitudes, sentimentos e emoções – que o rosto identifica? A razão e o sentimento manifestam-se pela expressão do rosto, mas, como nos ensinou Emmanuel Lévinas, mais de que uma manifestação, do que se trata é da humanidade na responsabilidade para com os outros, que podemos encontrar no diálogo silencioso entre duas pessoas que se encontram através do olhar. A filosofia primeira é uma ética! A palavra grega pessoa, provém de “prosopon”, que significa máscara, ou seja, a identificação pelo rosto da personagem da tragédia helénica. Eis a importância da mais sagrada das marcas do carácter e do “ethos”. O espelho da alma é assim o sinal da dignidade humana. Na pintura, na escultura, nas artes, mas também no canto ou na representação dramática é o rosto a representação da essência da humanidade. Na “Divina Comédia”, no percurso do Inferno, do Purgatório e do Paraíso, Dante é acompanhado  pela bela Beatriz Portinari, na visita das nove esferas celestes do Paraíso – Lua, Mercúrio, Vénus, Sol (símbolo da prudência e do bom uso da teologia), Marte (sinal de coragem), Júpiter (símbolo de justiça), Saturno (da contemplação), Estrelas fixas (da Igreja triunfante), - e é na última esfera do universo físico, que antecede o Empíreo, que se dá o encontro com Deus, como descoberta de um rosto, olhos nos olhos. E quando Beatriz deixa Dante com S. Bernardo, para que a teologia comande, Dante confessa: “não é voo para as minhas asas”… Tal como em S. Paulo, a imagem essencial do supremo encontro faz-se, assim, através do diálogo do rosto. Que melhor expressão? Que melhor descoberta? 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS À PRINCESA DE AGORA E SEMPRE

 

  Princesa ainda de mim:


   Dia chuvoso, ventoso, cinzento e triste... Mas aproveitei umas horas poucas de sol radiante de luz e generoso de calor dado, para abrir a janela do meu gabinete e quedar-me na contemplação amorosa da "nossa" cerejeira do Japão. Caíram-lhe as últimas folhas do ano, mas não a ouvi queixar-se de frio nem de humidade, antes traduz em silêncio a espera paciente de um novo ciclo da vida, essa virtude ontológica e telúrica que é parte essencial da natureza em que habita.


   Como sabes, vai para vinte anos que a plantei e vi nascer em Portugal, quando a trouxemos do seu berço no sol nascente até esta terra onde o mesmo sol vai dormir no mar, neste mar a que sempre vamos referindo a saudade e o mistério de sermos.


   Esta cerejeira não dá frutos, apenas flores efémeras como rosas no regaço de Santa Isabel... E não procura o mar, antes se liga, humilde e forte, à terra mãe que a alimenta e prende. Em jeito de gratidão ao solo que fielmente a sustenta, e ao céu que lhe sacia a sede e lhe dá luz, faz por se substituir ao sol, na grisalha dos dias outonais, acendendo o fulgor das suas folhas de ouro e chama, para colorir a paisagem com promessas de vida futura e garantia de criador incêndio das almas.


   Assim, em simultânea e sucessiva naturalidade, se unem as forças e fraquezas, visíveis e invisíveis, de todos os elementos e do seu conjunto, com todas as suas contradições, em tempos próprios a cada qual, ainda que desfasados... Misteriosa procura de harmonias, secreto repúdio de agressivos conflitos! Pelo menos assim pensossinto, agora já cá fora, gozando o calor de um sol inesperado, sentado mesmo à beirinha da minha cerejeira. E ocorre-me um passo do Totalité et infini de Emmanuel Levinas:


   A face do ser que se mostra na guerra fixa-se no conceito de totalidade que domina a filosofia ocidental. Aí, os indivíduos reduzem-se a portadores de forças que à sua revelia os comandam. Os indivíduos vão buscar a essa totalidade o seu sentido (invisível fora dessa totalidade). A unicidade de cada presente sacrifica-se incessantemente a um porvir chamado a lhe revelar um sentido objetivo. Porque só o sentido último conta, só o último ato mudará os seres em si mesmos. Eles são aquilo que vierem a aparecer nas formas, já plásticas, da epopeia...


   Mas, antes, já Levinas explicava que, como a guerra moderna, qualquer guerra usa armas que se viram contra aqueles que as têm. Instaura assim uma ordem contra a qual ninguém pode ganhar distância. Portanto, doravante, nada será exterior. A guerra não manifesta nem a exterioridade, nem o outro enquanto outro: apenas destrói a identidade do Mesmo.


   
Não preciso de explicar seja a quem for - e muito menos a ti, Princesa que já vives fora de todas as guerras - esta parábola do eremita que vai aprendendo com a vida das árvores aquilo tudo que a morte das guerras nunca conseguiu ensinar-lhe. Cerro os olhos e recito mentalmente uns trechos do Cântico do Irmão Sol de São Francisco de Assis:


          Louvado sejas (Laudato si), meu Senhor, com tudo o que criaste,
          especialmente o senhor irmão Sol
          que dá o dia e por quem me alumias...


          [...] Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Vento
          e pelo Ar, e pelo cinzento...


          Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Água...


          Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Fogo...


          Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa mãe Terra,
          que nos sustenta e nos governa
          e nos dá diversos frutos com coloridas flores e erva...


          Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam por amor de ti...


          Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa morte corporal...


   
Estes são pedaços de versos em bom tempo traduzidos por Pedro Tamen, e recentemente republicados pela Paulinas, sob orientação de Maria Isabel Tamen. Bem hajam, sejam quais tiverem sido os seus caminhos!


   
Há coisas que nos ficam dos nossos verdes anos e nos enchem a alma, com música de Carlos Paredes. E pelo gosto dum reencontro com a mocidade que nos resta, e um velho Papa Francisco vai reacendendo. Como esta lembrança de ti, Princesa, num coro de esperança em que ainda escutamos a voz límpida do nosso frei Bento...

 

Camilo Maria               

Camilo Martins de Oliveira

DOIS DIAS PARA A MORTE E O SENTIDO

 

Há muito que para mim é claro que, para perceber uma sociedade, mais importante do que saber como é que nela se vive é saber como é que nela se morre e nela se trata a morte e os mortos. Aí está: hoje a morte é tabu, mais: vivemos numa sociedade assente sobre o tabu da morte, tendo nele o seu fundamento. Da morte não se fala. Não é de bom tom. E o que é que isso revela? Que vivemos numa sociedade desorientada, que não sabe o que há-de fazer com a morte e, por isso, também não sabe viver na fundura ético-metafísica que o pensamento da morte dá e exige.

 

O que aí fica, talvez intempestivamente, para os dois dias 1 e 2 de Novembro, que tradicionalmente eram consagrados à meditação sobre a morte e o seu sentido, que é o sentido da vida, são breves reflexões sobre este tema incómodo, mas sem o qual se deriva para o inessencial.

 

A morte é o mistério pura e simplesmente. Ninguém sabe o que é morrer. Ainda nenhum de nós, felizmente, morreu, e os mortos, esses, não falam. Não temos experiência do que é morrer nem do estar morto nem do Além. A morte escapa a todas as categorias. Como escreveu o filósofo Emmanuel Levinas, “a morte é o mais desconhecido de todos os desconhecidos. Ela é mesmo desconhecida de modo totalmente diferente de todo o desconhecido”. Perante o rosto morto de uma pessoa, concretamente  da pessoa amada ou de um amigo, sabemos que qualquer coisa de dramático e único aconteceu: o fim da existência no mundo, o “stop” definitivo e irreversível. Mas o que é que isto quer dizer verdadeiramente? “Nunca saberemos o que é que a morte significa para o próprio morto. Não sabemos sequer o que pode haver de legítimo na fórmula: para o próprio morto.” Em última análise, não é possível fazer um juízo definitivo sobre a vida de alguém, porque nunca nos é dado saber o que foi a sua morte. No confronto com a morte, é com a irrepresentabilidade total que deparamos. Só os vivos falam da morte. Os mortos, esses, calam-se definitivamente. Sigmund Freud também escreveu: “O facto é que nos é absolutamente impossível representar a nossa própria morte, e todas as vezes que o tentamos apercebemo-nos de que assistimos a ela como espectadores. É por isso que a escola psicanalítica pôde declarar que, no fundo, ninguém crê na sua própria morte ou, o que é o mesmo, que, nos seu inconsciente, cada um está persuadido da sua própria imortalidade.” No fundo, nenhum de nós acredita que há-de morrer: a morte é sempre a morte dos outros, só acontece aos outros, cada um de nós pensa que será excepção. Porque é impossível eu conceber a minha consciência, a consciência de mim, morta.

 

Por outro lado, paradoxalmente, no núcleo da própria existência, há uma experiência vivida da morte enquanto limite último insuprimível e insuperável. No centro da vida, a morte está presente como mistério, o impensável que obriga a pensar. A vida vê-se inevitavelmente confrontada com a morte enquanto barreira intransponível. Porque o ser humano é o ser da antecipação, toma consciência de que é inevitavelmente mortal: dada a sua condição corpórea, no horizonte da sua vida, antecipando o futuro, a morte surge-lhe como termo inescapável. E, se a morte enquanto totalização põe em questão não só o aquém, mas também o seu além, falar da morte humana enfrenta-se com a pergunta inevitável: e depois? Porque, se também o animal pode ter medo de morrer, só a pessoa humana, porque é autoconsciente, se angustia face à morte. O medo relaciona-se com um objecto concreto; a angústia é difusa, é esse temor único, em última análise, do nada, da morte enquanto dissolução do eu. Unamuno exprimiu-o com estas palavras: “O meu eu, ai que me roubam o meu eu!”

 

Hoje, predomina o tabu, o recalcamento, da morte. Nas nossas sociedades científicas e técnicas, urbanas e consumistas, hedonistas e invadidas pelo niilismo, a morte tornou-se realmente tabu. Ela é umas realidade quase obscena. Repare-se, neste sentido, como se inverteu a relação com o sexo e com a morte: nas sociedades tradicionais, tabu era o sexo; hoje, tabu é a morte, talvez o último tabu. Como é que uma sociedade que gira à volta da organização sócio-económica, determinada pelo individualismo concorrencial feroz e insolidário, onde os valores considerados são o prazer, o êxito, a juventude, a beleza, a eficácia, a produção, o lucro, acumulação de bens e fortuna, progresso e riqueza, pode ainda acompanhar afectivamente os doentes, os velhos e os moribundos (agora, diz-se “pacientes terminais”) e suportar o supremo fracasso da morte?

 

Mas não se pense que se deixou de falar da morte por ela já não constituir problema. É exactamente o contrário que se passa: de tal modo a morte é problema, o problema para o qual uma sociedade que se julga omnipotente não tem solução que só resta a solução de ignorá-la, ocultá-la, reprimi-la. Aquilo que provoca dor infinda e para que não há solução é recalcado.

 

Mas, quando uma sociedade precisa de afastar a morte do seu horizonte, temos aí um sinal de desumanização e alienação. Paradoxalmente, essa sociedade torna-se mortífera, tanatocrática e tanatolátrica. Pode perguntar-se: ao contrário das aparências, não revelará a ocultação da morte precisamente um medo-pânico da morte que se pretende exorcizar? Viktor Frankl mostrou que “a angústia  perante o vazio existencial e a neurose noógena de sentido estão às portas de quem por medo foge ao medo.” O homem das nossas sociedades possui ingência de meios e bens materiais, mas vive no deserto de fins autenticamente humanos e de sentido que preencha a existência. Sofre por falta de orientação existencial, tendo, por isso, medo dos aspectos negativos da existência. As sociedades da opulência actuais satisfazem necessidades materiais, ma não a vontade essencial, constitutiva, de sentido.

 

Preso do prazer imediato, o homem actual perdeu o sentido da totalidade, pelo qual o confronto com a morte inevitavelmente pergunta. A consciência da inevitabilidade de morrer abala na sua raiz a existência enquanto totalidade, convocando o ser humano para a pergunta absoluta, que não é mera curiosidade: Quem sou eu? Que será de mim? Qual o sentido da minha vida e da História? O que é que, em última análise, habita no seu núcleo?

 

Sem a consciência da morte, haveria filosofia, religião e exigência ética? Com a ocultação da morte, o ser humano pretende viver na ignorância do futuro, e perde o seu ser. Então é fácil a ética dissolver-se no simples utilitarismo e hedonismo. Já Ortega e Gasset se queixava: “Esta é a questão: a Europa ficou sem moral”. De facto, é confrontados com a morte que somos colocados perante a urgência da decisão, a unicidade, dramaticidade, densidade e responsabilidade irrevogável da vida e a questão do sentido total da existência. Pela antecipação da morte, a vida é-nos dada como totalidade e no seu carácter de definitividade e ultimidade, numa só vida e com uma só morte, ambas irrepetíveis. Sem essa antecipação, o homem fica na situação do animal, para o qual tudo se passa em “aquis” e agoras” sucessivos, sem possibilidade de totalização, e, portanto, regido exclusivamente pelos impulsos de prazer e desprazer imediatos.

 

Perante a angústia da morte, o homem actual remeteu-se para a morte neutra e abstracta, como estratégia para continuar a viver na vulgaridade, na dispersão banalizante e na banalização dispersante, na existência inautêntica, para cuja ameaça nos alertaram os filósofos Martin Heidegger e Sören Kierkegaard. Por isso, é urgente reconquistar a sabedoria da meditação da morte, para que a existência readquira autenticidade, porque é a morte que faz a triagem entre o que verdadeiramente vale e o que realmente não vale, entre o decisivo e o banal, entre superficialidade e liberdade que liberta, entre ter e ser, entre o que verdadeiramente quero e o que é mera ilusão. Na antecipação da morte, capto o valor único da pessoa, que vale mais do que todas as coisas: as coisas são meios, só a pessoa é fim, insubstituível. Assim, o pensamento da morte impõe-se, não como veneno para a vida, mas como antídoto contra a vulgaridade vaidosa e vazia da existência inautêntica.

 

É verdade que a consciência da necessidade de morrer me pode atirar para o abismo da dissolução nos prazeres imediatos: “Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”. Muitas vezes também, o poder devastador da morte serviu satanicamente de instância fundadora de poderes totalitários, tanto na ordem temporal como espiritual. Mas é igualmente verdade que, na antecipação de todos os rostos mortos, se encontra talvez o único lugar autêntico da compaixão, da paz e da fraternidade, que, entretanto, se torna imperativo construir, evitando a catástrofe: Somos mortais: logo, somos irmãos, como viu até Herbert Marcuse, que, dois dias antes da sua morte, já no hospital, confessou a Jürgen Habermas: “Vês? Agora sei em que é que se fundamentam os nossos juízos de valor mais elementares: na compaixão, no nosso sentimento pela dor dos outros”.

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 27 OUT 2018