Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
1. É evidente que é necessário defender o princípio essencial da liberdade, mas é igualmente necessário defender os outros dois princípios, o da igualdade e o da fraternidade. É a tríade que tem de estar sempre vinculada: liberdade, igualdade, fraternidade.
Se toda a pessoa tem dignidade inviolável e, portanto, o direito de viver com dignidade e desenvolver-se e realizar-se integralmente, impõe-se que o Estado não seja apenas o garante da liberdade, nomeadamente da liberdade de empresa e de mercado. Quem nasceu em boas condições económicas, quem recebeu uma boa educação, quem é bem alimentado, quem possui por natureza grandes capacidades..., esses “seguramente não precisarão de um Estado activo, e apenas pedirão liberdade. Mas, obviamente, não se aplica a mesma regra a uma pessoa com deficiência, a alguém que nasceu num lar extremamente pobre, a alguém que cresceu com uma educação de baixa qualidade e com reduzidas possibilidades para cuidar adequadamente das suas enfermidades. Se a sociedade se reger primariamente pelos critérios da liberdade de mercado e da eficiência, não há lugar para essas pessoas, e a fraternidade não passará de uma palavra romântica.”
2. Aí está, portanto, a necessidade de uma política sã e melhor. Quando hoje muitos têm uma má ideia da politica, e isso também por causa da corrupção, das mentiras, da ineficiência de muitos políticos, Francisco pergunta: “Mas poderá o mundo funcionar sem política?”, para insistir que não é possível “encontrar um caminho eficaz para a fraternidade universal e a paz social sem uma boa política”, e uma política transnacional, verdadeiramente global, para defesa do bem comum, salvaguarda da paz, preservação da natureza. Aliás, “hoje nenhum Estado nacional isolado é capaz de garantir o bem comum da própria população.” Exige-se pensar numa possível forma de autoridade mundial regulada pelo direito, que “deveria prever pelo menos a criação de organizações mundiais mais eficazes, dotadas de autoridade para assegurar o bem comum mundial, a erradicação da fome e da miséria e a justa defesa dos direitos humanos fundamentais”. Neste sentido, “é necessária uma reforma quer das Nações Unidas quer da arquitectura económica e financeira internacional, para que seja possível uma real concretização do conceito de família de nações.”
3. Neste quadro, Francisco apela ao exercício da grande caridade, “a caridade política”, que gera processos sociais de fraternidade e justiça para todos: “Convido uma vez mais a revalorizar a política, que é uma sublime vocação, é uma das formas mais preciosas de caridade, porque busca o bem comum.” O amor não se exprime só nas relações íntimas e de proximidade, “também nas macrorrelações como relacionamentos sociais, económicos e políticos”. O amor implica a amabilidade no trato, que leva alguém a dizer uma palavra de ânimo e também palavras como “com licença”, “desculpe”, “obrigado”; o amor está vivo na proximidade de “alguém que ajuda um idoso a atravessar um rio, e isto é caridade primorosa; mas o politico constrói-lhe uma ponte, e isto é também caridade. É caridade se alguém ajuda outra pessoa fornecendo-lhe comida, mas o político cria-lhe um emprego, exercendo uma forma sublime de caridade que enobrece a sua acção política.”
Para honrarem actividade tão nobre, os políticos não podem pensar só nas sondagens e numa mera busca de poder. Precisam de amor, coragem, lucidez, a favor de uma política da “globalização dos direitos humanos mais essenciais”, para uma humanidade justa, livre, num mundo onde todos possam viver em paz e realizar adequadamente a sua dignidade. Para isso, ajudará também que façam a si mesmos “estas perguntas, talvez dolorosas: Quanto amor coloquei no meu trabalho? Em que fiz progredir o povo? Que marcas deixei na vida da sociedade? Quanta paz social semeei? Que produzi no lugar que me foi confiado?”
4. Na impossibilidade de apresentar todos os domínios sobre os quais deve incidir esta actividade da “amizade social” universal, indico sumariamente alguns.
4.1. Francisco não se cansa de insistir na necessidade primeira de “assinar um pacto educativo global para fazer frente à virulenta pandemia do descarte”.
4.2. Não se assegura a dignidade das pessoas através de subsídios. “Ajudar os pobres com dinheiro deve ser sempre uma solução provisória para resolver uma urgência. O grande objectivo deveria ser sempre permitir-lhes uma vida digna através do trabalho”. Porque “não existe pior pobreza do que a que priva do trabalho e da dignidade do trabalho”. O verdadeiro caminho para a paz: terra, tecto e trabalho para todos.
4.3. Contra a lógica da guerra, impõe-se um “diálogo perseverante e corajoso”. “É muito difícil hoje defender critérios racionais, amadurecidos noutros tempos, para falar de uma possível ‘guerra justa’”. Com Paulo VI na ONU Francisco clama: “Nunca mais a guerra!”. E pede que com o dinheiro gasto em armas se crie um Fundo Mundial contra a fome, que é uma tragédia e uma vergonha. A pena de morte deve ser abolida em todo o mundo.
4.4. “O ideal seria evitar as migrações inúteis e, para isso, seria necessário criar nos países de origem a possibilidade efectiva de viver e realizar-se na dignidade.” Quando isso não é possível, é necessário avançar com os quatro verbos: “acolher, proteger, promover e integrar”.
4.5. É essencial o conceito de ecologia integral, para entender a conexão desta encíclica com a Laudato Sí. (Continua).
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 24 OUT 2020
1. Ninguém é uma ilha. Só somos uns com os outros e precisamos de amor e de reconhecimento. Que importa a existência se ninguém nos reconhecer, se não valermos para alguém? Não é desse reconhecimento que todos andam à procura? Só o valer para alguém é que justifica a existência. E, quando se descobre que valemos para Deus, que Deus nos dá valor e nos reconhece, então a vida está salva, encontrando a plenitude de sentido.
Um dos pressupostos na nova encíclica— “Todos irmãos e irmãs” — é exactamente esta verdade fundamental: “Ninguém pode experienciar o valor de viver sem rostos concretos a amar. Aqui reside um segredo da verdadeira existência humana.” E daqui arranca a revolução de Francisco, a da dinâmica da fraternidade universal. Este é um ponto de partida, porque esta experiência, se autêntica, irradia e torna-se contagiante, num contágio bom de felicidade: começa-se por baixo, por um, pela família, e vai-se “pugnando pelo mais concreto e local, até ao último recanto da pátria e do mundo. Mas não o façamos sós, individualmente. Todos, retomando a parábola do bom samaritano, somos responsáveis pelo ferido que é o próprio povo e os povos todos da Terra.” Quem na vida foi meu próximo e de quem é que eu fui e sou próximo? Vai-se dando assim o encontro entre o concreto local e o universal, evitando tanto um localismo individualista fechado como um universalismo abstracto, homogeneizante e dominador. Realiza-se, pelo contrário, aquele ideal do poliedro, tão caro a Francisco: a unidade que floresce na variedade da riqueza de perspectivas, do tesouro de cada cultura, um mundo com “o seu colorido variado, a sua beleza e, em última análise, a sua humanidade”.
Outro pressuposto é a dignidade sagrada de cada ser humano. Aqui, vamos tocar a transcendência. Onde assenta a dignidade da pessoa, que é fim e não meio? Certamente, o ser humano é finito e mortal, mas tem algo de infinito nele. O quê? A pergunta ao Infinito pelo Infinito, se quisermos, a pergunta a Deus por Deus. Independentemente da resposta que se lhe dê, positiva ou negativa, todos os seres humanos são confrontados com esta pergunta, que revela neles o Infinito. Ora, o que é que há para lá do Infinito? Nada. Por isso, o ser humano é fim em si mesmo e não pode ser tratado como simples meio. As coisas são meios e, por isso, dirá Kant, têm um preço, o ser humano é fim e, por isso, não tem preço, tem dignidade. É livre, autopossui-se na liberdade e só é verdadeiramente no encontro com outras liberdades. Por isso, desde o início, a Bíblia diz que o ser humano foi criado à imagem de Deus, é imagem de Deus, e esta imagem está viva na liberdade e no reconhecimento de todo o ser humano como humano, digno.
A dignidade da pessoa humana é inviolável, e isso não por simples convenção ou convicção subjectiva, ela tem um fundamento real, de ser, transcendendo, portanto, as condições de nascimento ou as fronteiras..., como escreve Francisco: a dignidade da pessoa “não se fundamenta nas circunstâncias, mas no valor do seu ser. Quando não se salvaguarda este princípio elementar, não há futuro nem para a fraternidade nem para a sobrevivência da Humanidade”.
2. O que fica dito e a consciência mais aguda que nos é dada pela pandemia de que “hoje ou nos salvamos todos ou não se salva ninguém — a pobreza, a decadência, os sofrimentos de um lugar da Terra são um silencioso caldo de cultura de problemas que acabarão por afectar todo o planeta” — obrigam à conversão a uma nova Economia, que não nega o lucro justo, mas que diz ‘Não’ “ao lucro a qualquer preço”, fazendo do Dinheiro um ídolo absoluto. A dignidade da pessoa humana, de todas as pessoas, exige, em ordem à sua realização, esta conversão urgente. “O mundo existe para todos, porque todos os seres humanos nascem nesta Terra com a mesma dignidade.”
Aqui, Francisco retoma João Paulo II: “Deus deu a Terra a todo o género humano para que ela sustente todos os seus habitantes, sem excluir nem privilegiar ninguém.” Por isso, arremete contra “o direito absoluto e intocável à propriedade privada”. “O direito à propriedade privada só pode ser considerado como um direito natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados.” Ninguém pode ficar excluído. “O direito de alguns à liberdade de empresa e de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos nem da dignidade dos pobres nem do respeito pelo meio ambiente.”
3. O Papa Francisco não é economista nem escreve como tal: anuncia o Evangelho e denuncia o ter de viver na indignidade.
De qualquer forma, neste domínio, ergue-se, inevitavelmente, uma questão de suma complexidade, que tem que ver com o conflito da eficiência e da equidade na Economia. Pessoalmente, quando tenho de falar sobre o tema, dou um exemplo: estão aqui 300 pessoas, partamos de zero, eu vou dar a cada uma 1000 euros; passado algum tempo, uns ainda têm 1000 euros, outros já têm 10 ou 20 mil e alguns terão dívidas. Sim, o liberalismo quer a liberdade, também de possível exploração, mas já vivi num regime comunista e lá nem liberdade nem justiça, só fome para a quase totalidade da população. Como pôr a Economia a funcionar, salvaguardando a dignidade de todos?
Exige-se uma política sã. Em que sentido? Este será o tema da próxima crónica. Entretanto, sobre este magno problema, aconselho uma obra recente, Deus e o Mercado, com um diálogo provocador entre José César das Neves e o P. Vítor Melícias.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 17 OUT 2020
1. “FRATELLI TUTTI” (irmãos todos) é o título da nova encíclica do Papa Francisco, abrindo horizontes novos para a Humanidade mergulhada numa profundíssima crise global. Cita Francisco de Assis escrevendo aos seus irmãos e irmãs para lhes propor uma forma de vida segundo o Evangelho, convidando-os a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço: feliz quem ama o outro, “o seu irmão que está longe ou que está perto”. Inspira-se, pois, em Francisco de Assis: não é acidental que, publicada com a data de 4 de Outubro, a tenha ido assinar na véspera sobre o seu túmulo, em Assis. Não é a única fonte de inspiração: estão também presentes outros líderes espirituais e políticos, como Charles de Foucauld, Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma Gandhi...
O subtítulo da carta: “Sobre a fraternidade e a amizade social”, explicitado nestes termos: “Entrego esta encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim de que, perante as várias formas actuais de eliminar ou ignorar os outros, sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras.” Embora partindo das suas convicções cristãs, quer dirigir-se a todas as pessoas de boa vontade, num diálogo sincero e plural, para a realização de um sonho comum de dignificação de todos. “Sonhemos como uma única Humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma Terra que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos.”
2. Começou a ser escrita antes da pandemia, mas esta parece ter agravado ainda mais a situação e há sombras negras que pairam no horizonte, obrigando a pensar e a exigir que se mude de rumo.
Exemplos de sombras e “tendências que dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal”.
Não há um sonho comum mobilizador, “um projecto para todos”, o que se impõe é uma “cultura do descarte mundial”. A própria Europa avançava para variadas formas de integração, havia um anseio semelhante na América Latina e tentativas de pacificação e reaproximações noutras regiões. Mas “a História dá sinais de regressão”, reacendendo-se conflitos que se considerava superados, ressurgem nacionalismos “ressentidos e agressivos”. A ditadura do mercado quer impor um modelo cultural único e num mundo cada vez mais massificado perdemos a dimensão comunitária e encontramo-nos cada vez mais sós. O avanço da globalização favorece normalmente a identidade dos mais fortes e ameaça as identidades das regiões mais frágeis e pobres e, deste modo, “a política torna-se cada vez mais frágil perante os poderes económicos transnacionais.” Acentua-se a perda da memória, das raízes e do sentido da história, ficando em pé “apenas a necessidade de consumir sem limites” e um individualismo vazio. Aí estão “novas formas de colonização cultural”, sem pensamento crítico: “Que significado têm hoje palavras como democracia, liberdade, justiça, unidade? Foram manipuladas para utilizá-las como instrumento de domínio.” As redes sociais tomaram conta de muitos e a verdade esvai-se em fake news e no controlo das mentes, sem capacidade para pensar, tanto mais quanto se nega a outros “a capacidade de existir e pensar”, recorrendo-se “à estratégia de ridicularizá-los, insinuar suspeitas sobre eles e reprimi-los”. A sociedade acaba “reduzida à prepotência do mais forte” e “um projecto com grandes objectivos para o desenvolvimento de toda a Humanidade soa a um delírio.” Precisamos de nos construirmos como um “nós” que habita a casa comum de todos, mas isso “não interessa aos poderes económicos que necessitam de um ganho rápido”. Pairam no horizonte ameaças de novas guerras, e a Natureza dá sinais de alarme. Aumenta a riqueza, mas nascem novas pobrezas e morre-se de fome aos milhões. “Os direitos humanos não são iguais para todos”. O clamor de migrantes e refugiados é ensurdecedor. Cresce a raiva das vítimas de racismo. As mulheres continuam a ver-se sem os seus direitos garantidos, e as condições de escravatura não acabaram. E continuam as guerras, os atentados, as perseguições, os muros..., e a solidão, os medos, as inseguranças. E “a terceira guerra mundial aos pedaços” é visível.
Será que aprendemos alguma coisa com esta crise dramática? É que não se pode ignorar que “o princípio ‘salve-se quem puder’ traduzir-se-á rapidamente no lema ‘todos contra todos’, e isso será pior que uma pandemia.”
3. Frente a este horizonte sombrio — excessivamente pessimista, dirão alguns —, a encíclica é um convite à esperança activa, com o samaritanismo. O exemplo é o bom Samaritano. Ele era um estrangeiro, mal visto pela ortodoxia, e também tinha os seus afazeres. Mas, à beira da estrada, jazia um desgraçado semi-morto, e ele parou, ajudou-o no que pôde, levou-o para a estalagem, pagou e que pagaria todas as despesas... Foi ele e não os dois religiosos (o sacerdote e o levita) o próximo daquele abandonado. “Vai e faz o mesmo.”
Para os cristãos, todos os seres humanos são irmãos e irmãs, porque há um Pai comum, Deus. Mas a fraternidade podemos ir bebê-la também, paradoxalmente, à mortalidade, como viu Herbert Marcuse, que não era crente. Já em vésperas de morrer, voltou-se para o amigo Jürgen Habermas: “Agora sei, Jürgen, em que é que se fundamentam os nossos juízos de valor mais elementares: na compaixão, no nosso sentimento pela dor dos outros. Somos mortais: logo, somos irmãos.” (Continua)
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 10 OUT 2020