Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
E chegamos ao termo deste folhetim de Verão de 2023, para o qual escolhemos como tema a fantasmagoria. O que significou essa escolha? A compreensão de que ao falar de literatura estamos sempre a falar de quem, apesar de já não nos acompanhar fisicamente, persiste em estar connosco. Que é a memória? Foi Mia Couto quem um dia disse, relativamente a seu Pai (que aqui lembrámos), que a presença e a memória daqueles que nos acompanharam não pode cair no esquecimento. A lembrança, acompanha-nos sempre. E tivemos a agradável surpresa assistir a um fenómeno inesperado e feliz. Carolina Michaelis de Vasconcelos tornou-se no folhetim deste ano uma heroína viva. De súbito (e sem que pudéssemos suspeitar ou adivinhar) criou-se um movimento espontâneo de milhares de opiniões, de elogios, de saudades a dizer que há mais de cem anos houve uma mulher que acreditou na audácia de dizer que a liberdade e a igualdade vivem de braço dado e que, indo às raízes da nossa cultura, a ideia de saudade não era uma melancolia triste, mas um apelo de esperança. E se Carolina o disse ao estudar desde os trovadores até à lírica moderna, a verdade é que fomos até ao caminho audacioso de Aurélia de Souza, que com um dedo determinado nos indicou a via de uma cultura viva, moderna, apaixonada…
E foi essa paixão que uniu os fantasmas que fomos encontrando – desde Bernardim Ribeiro a Diadorim, de Gil Vicente à Joaninha dos Olhos Verdes (e até poderia ter sido a Morgadinha dos Canaviais), desde as almas descobertas por Ruben A. ao cair da noite até ao crioulo de Germano Almeida ou de Nhô Baltas, desde a língua mirandesa até às gaitas de foles e aos pauliteiros… E nos confins da Ásia, descobrimos mercadores e missionários a papiar a nossa língua franca, e para maior surpresa Fernão Mendes Pinto tornou-se o verdadeiro intérprete de João de Barros, o Velho, e de Diogo do Couto. E se Garcia de Orta descobriu tudo no Colóquio dos Simples, D. João de Castro revelou os mistérios do magnetismo e importou para a Europa as mais belas plantas da Ásia, enquanto Pedro Nunes abriu os caminhos da navegação pelos números e pelos astros. E de súbito ouvimos:
“O Portugal futuro é um país Aonde o puro pássaro é possível E sobre o leito negro do asfalto da estrada As profundas crianças desenharão a giz Esse peixe da infância que vem na enxurrada E me parece que se chama sável Mas desenhem elas o que desenharem É essa a forma do meu país E chamem elas o que lhe chamarem Portugal será e lá serei feliz Poderá ser pequeno como este Ter a oeste o mar e a espanha a leste Tudo nele será novo desde os ramos à raiz À sombra dos plátanos as crianças dançarão E na avenida que houver à beira-mar Pode o tempo mudar será verão Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz Mas isso era o passado e podia ser duro Edificar sobre ele o Portugal futuro.”
Sim. Aqui está o enigma todo, que Carolina Michaelis procurou encontrar, sem melancolia, mas com o entendimento de que Amadis e Binmarder eram a matéria-prima que fazia deste cadinho um conjunto que permitia fazer sonhar com Pasárgada, sem esquecer os diálogos entre Todo o Mundo e Ninguém com as risadas em fundo de Maria Parda e com as revelações de Frei Dinis. “Mudam-se os tempos, muda-se a vontade; muda-se o ser, muda-se a confiança” … Mil tentativas há para definir a cultura, mas ninguém o fez melhor do que o nosso maior: “E afora este mudar-se cada dia, / Outra mudança faz de mor espanto, /Que não se muda já como soía”. Eis por que não poderíamos ter pensado este folhetim senão com fantasmas, sérios, presentes e poéticos, capazes de dizer: “Sonho que sou um cavaleiro andante, / Por desertos, por sóis, por noite escura, / Paladino do amor, busco anelante / O palácio encantado da Ventura”. Mas, em volta da Torre que imaginámos, mesmo escura, mesmo vazia, reuniam-se os antigos familiares “primos vestidos em séculos diferentes e com bigodes conforme a época”. E eis-nos perante o inefável Dom Raymundo, poeta e primo de Dom Afonso Henriques. Não foi por acaso que começamos por ele, ao lado de quem combateu contra os leoneses. Por isso aprendemos o mirandês. E o cavaleiro das aventuras percorreu os montes com Vilancete (que outro nome poderia ter o ginete?). O grande garrano da Ribeira de Lima acompanha-nos, seguido do falcão Abelardo, fiel auxiliar da nossa caça. E para compor o magnífico cenário, eis D. Mafalda, vestida a rigor, com os modelos aconselhados por Garrett, o janota, com desenhos de Watteau e Fragonard e a aprovação de Beckford, mas igualmente a princesa Brites, e sobretudo Madeleine, “prima que veio de Paris cheia de cores”, além de Frey Ciro, com cheiro de santidade e da Bruxa de São Semedo. Era lá possível viver-se sem um bruxedo a sério? Há fantasmas? Não há uma dúvida. Eles encontram-se onde menos se espera. Manuel Bandeira demonstrou-o. «E quando estiver cansado / Deito na beira do rio / Mando chamar a mãe-d’água / Pra me contar as histórias / Que no tempo de eu menino / Rosa vinha me contar / Vou-me embora pra Pasárgada». Moral da história? Há sempre mais alguma coisa a contar. Percorra-se, por isso, de novo, cada um dos capítulos do folhetim e veja-se que todos contêm enigmas por resolver…
E eis-nos chegados ao epílogo deste nosso Folhetim de Verão, de 2021. A última imagem que deixamos é a da cerimónia de inauguração, da primeira linha de caminho de ferro portuguesa, entre Lisboa e o Carregado, reinava Sua Majestade o Rei D. Pedro V de saudosíssima memória. É uma referência simbólica, que recorda um tema que ciclicamente se torna atual. O desenho é de Bernardo Marques e pretende apenas dizer que as trinta boas razões que encontrámos adicionalmente às de há um ano para gostarmos de Portugal pressupõem uma ligação permantente entre o passado que recebemos e o futuro que preparamos.
E lembrei-me neste cenário de um saudoso amigo queiroziano dos quatro costados que um dia me fez entrar numa narrativa meio policial, que se iniciava num almoço nas imediações do Passeio Público e numa minha descoberta, para mal dos meus pecados, do fantasma de Carlos Fradique Mendes, que, para surpresa de muitos, continuava vivo a deambular pela cidade. O resultado foi incómodo. Descobri-o, e ele não me perdoou e jurou vingança. Essa sanha foi, porém, passando com o tempo, e a verdade é que o redescobri, há dias, de novo nas imediações do Salitre, junto da estátua romântica da morgadinha de Valflor, sempre igual a si mesmo – um verdadeiro dandy, com a sua cultura flamante de sempre.
Se há um ano encerrei a prosa do folhetim com o inefável Oliveira da Figueira, que nos irá visitar em breve, vindo do universo de Hergé e do Tintin, hoje fecho portas com esta derradeira conversa com Fradique.
De que falámos? Recordámos o amigo comum Zé Fernandes e, com ele, a revelação do poeta sublime nas páginas da “Revolução de Setembro”, afilhado de Antero e Jaime Batalha Reis. Depois fomos até ao capítulo XXX de O Mistério da Estrada de Sintra, de Eça e da Ramalhal figura, publicado em folhetins no “Diário de Notícias”: “sentado no sofá com um abandono asiático”, “verdadeiramente original e superior”, “um excêntrico, distinto”, de “caráter impecável”, “originalidade violenta, quase cruel”, “amigo de Baudelaire” – que “tocava admiravelmente violoncelo, era um notável jogador de wist, tinha viajado no Oriente, estivera na Meca e contava que fora corsário grego”…
Mas então queixou-se-me. De quem? Do nosso José Maria Eça de Queiroz, do próprio, por este se ter apoderado da sua figura. O certo é deixou de ser um mero símbolo, algo marginal na obra de uma geração, tornando-se marca da sua própria identidade. E assim deixou o anonimato e tornou-se uma figura central, base de um verdadeiro romance epistolar – ao lado de Amaro, Basílio, Carlos da Maia, João da Ega, Jacinto, Zé Fernandes ou Gonçalo Mendes Ramires. E confessou-me que a celebridade o perturba. Em bom rigor, é uma personagem multifacetada, capaz de gerar fascinação e de se constituir em voz de um tempo singularíssimo, mas preferiria manter-se na sombra. Então reli-lhe o que José Maria escreveu. “A minha intimidade com Fradique Mendes começou em 1880, em Paris, pela Páscoa – justamente na semana em que ele regressara da África Austral. O meu conhecimento porém com esse homem admirável datava de Lisboa, do ano remoto de 1867. Foi no Verão desse ano, numa tarde, no Café Martinho, que encontrei num número já amarrotado da ‘Revolução de Setembro’, este nome de C. Fradique Mendes, em letras enormes, por baixo de versos que me maravilharam”… Os versos significavam uma definição nova, muito mais do que um estilo inolvidável. Este estava representado pela própria personagem, que se tornou símbolo de uma geração, de uma obra, de uma força crítica. Carlos pertencia a uma velha e rica família dos Açores. Descendia por varonia do navegador D. Lopo Mendes. E surpreendeu-se que eu soubesse um conjunto de pormenores sobre tal figura recôndita. Julgo ter sido esse o ponto que permitiu voltarmos à paz na nossa relação tempestuosa…
“Com o ímpeto de ave solta”, viajou por todo o mundo, “a todos os sopros do vento, desde Chicago até Jerusalém, desde a Islândia até ao Sara. Nestas jornadas sempre empreendidas por uma solicitação da inteligência ou por ânsia de emoções, achara-se envolvido em feitos históricos e tratara altas personalidades do século”. A geografia era o seu domínio preferido para continuar uma conversa. E a sua qualidade única de ser longevo e ubíquo levavam-no a falar-me com numa ciência exata nos grandes mistérios contemporâneos da Síria, do Líbano ou do Afeganistão. Tudo se explicaria pela cegueira e pela ganância. Os factos contemporâneos tinham explicações claras, que ele conhecia perfeitamente…
Mas antes de nos separarmos neste último encontro em que ele desejou mesmo desvanecer-se sem que eu pudesse voltar a vislumbrá-lo citou-me o meu velho e saudoso amigo Zé Fernandes: “É curioso que o José Maria, com a sua perspicácia crítica, nunca tenha posto suficientemente em relevo esse meu lado negativo como ser social, suficiente também para diminuir, se não para ofuscar de todo a valia dos meus supostos talentos”… (José Pedro Fernandes, Autobiografia de Carlos Fradique Mendes, Editorial Notícias, 2002). E não perdoou a Ramalho Ortigão o excesso: “Fradique marcha cinco léguas sem parar, bate ao remo os melhores remadores de Oxford, mete-se sozinho no deserto a caçar o tigre, arremete com um chicote na mão contra um troço de lanças abissínios”. Puro exagero! Puro exagero! E nisto, não sei por que fas ou porque nefas, Carlos desvaneceu-se subitamente. Com se tivesse voado ou tivesse feito um genial número de prestidigitação… Desconfio que não voltarei a reencontrá-lo. Sei o seu segredo essencial, mas não sei onde se esconde verdadeiramente. Mas ao menos ficámos em paz… E fui Avenida abaixo, qual Borda d’Água sem companheiro. Chegado ao fim Agosto, é tempo de eu voar com o ímpeto da ave solta.