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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA

 

Erasmo-de-Roterdao.jpg

 

INDO A ERASMO DE ROTERDÃO…
por Camilo Martins de Oliveira

 

Dizia eu que um dos motivos do meu regresso ao espólio do meu homónimo Camilo Maria fora uma edição discográfica inspirada no "Elogio da Loucura" de Erasmo de Roterdão". (Mais uma iniciativa de Jordi Savall, na sua preocupação com itinerários de diálogos pluriculturais). Aquele que foi amigo de Thomas More e Damião de Góis, entre outros, e que foi considerado um "reformador" da Igreja - com Melanchthon e Lutero, e outros mais (no entanto, contra o próprio Lutero recusou-se a abandonar a fé católica) -, era um homem de sageza e espírito aberto e benevolente, que se manteve fiel à confissão pública de uma Igreja que, por vezes "oficialmente" pouco atenta ao mundo e receosa dos homens e da história, nem sempre foi capaz de entender os ideais de informação racional e crítica, e de diálogo, do humanismo renascentista. Terá muitas vezes sentido - ele que recusou o barrete cardinalício proposto pelo papa Paulo III, mas foi conselheiro de Carlos V e amigo do papa Adriano VI - quanta fé e serenidade inteligente são por vezes necessárias para se cultivar e manter bem viva a fidelidade à misteriosa comunhão dos santos.

 

Foi este apego simultâneo à fidelidade na fé e na comunhão da Igreja, mas também ao exercício da liberdade responsável - já que, como disse S. Paulo aos Coríntios, "em cada um se manifestam os dons do Espírito para o bem comum" - que levou o Marquês de Sarolea a interessar-se por Erasmo, como, mais tarde, pelo pensamento eclesiológico do Padre Yves Congar, dominicano perseguido, depois perito do Concílio Vaticano II e, finalmente, cardeal.

 

Apesar de nos desviar deste discurso - e só por citar Erasmo de Roterdão (Erasmus van Rotterdam) e o seu "elogio" ou "Laus Stultitiae" ou, ainda, "Encomium Moriae" - não resisto a traduzir uns passos de uma carta de Camilo Maria à Princesa de... aqui vai:

«Posto que o bom senso se deve à experiência, a quem deve ele ser reconhecido? Ao Sábio que nada empreende, por modéstia ou timidez de carácter; ou ao Louco, isento de modéstia, que não pode ser tímido porque não conhece o perigo? O Sábio refugia-se nos livros dos antigos, e nada aí aprende, além de frias abstrações; mas o louco, abordando as realidades e os perigos, adquire, a meu ver, o verdadeiro bom senso...". "Ocorre-me, minha muito querida, este passo de Erasmo, por me ter lembrado da nossa visita, em Roma, à igreja de San Luigi dei Francesi. Parámos longamente a contemplar "O chamamento (ou a vocação) de S.Mateus" de Caravaggio: um raio de sol entra pelo lado superior direito do quadro, apanha a mão direita, indicadora, de Cristo, e vai iluminar a mão de Levi (Mateus) que ao seu próprio peito pergunta: sou eu?

 

No Evangelho atribuído a Mateus (pouco importa se o seu autor material foi a mesma pessoa) o episódio é descrito com intensa brevidade: "Ao passar (Jesus), viu Levi, filho de Alfeu, sentado no posto de cobrança, e disse-lhe: Segue-me. Ele levantou-se e seguiu Jesus". Eis um ato de loucura simples: Levi abandona-se ao perigo, a um salto no desconhecido...

 

Mas não será o desconhecido metade, pelo menos das nossas vidas? O que é, afinal, a realidade? Aquilo que presumimos nosso e segurável, indiscutível, inalterável?

 

Por me teres dito que relesse o evangelho de S. Mateus, dei com os versículos seguintes a este relato: "Encontrando-se Jesus à mesa em casa de Levi, muitos publicanos e pecadores estavam também à mesa com Jesus... ao verem-no comer com eles, os fariseus interrogavam os discípulos: Porque é que ele come com publicanos e pecadores?... Jesus respondeu-lhes: eu não vim chamar os justos mas os pecadores!"

 

Jesus Cristo, pelo seu desafio das convenções e da morte, era certamente louco. Isso mesmo concluirá Moria (Loucura, em latim) no "Elogio". Como se, parafraseando S. Paulo, dissesse que a loucura de Deus é mais sábia do que a sabedoria dos homens.

 

As lembranças são como uma sobremesa de cerejas... com "champagne" a refrescar a gorja e a memória e as cerejinhas a puxarem por uma e por outra!

 

A esperança dos pecadores, levou-me de Roma a Washington, ao “Regresso do filho pródigo" do Bartolomé Murillo, exposto na National Gallery of Art. Não sei porquê, há nessa cena de um pai velhinho que se debruça para abraçar um filho suplicante, não só uma representação, quiçá edificante, da misericórdia de Deus. Há mais: há uma alegoria do Amor. Tout court. Como escreveu um grande poeta português: "Transforma-se o amador na cousa amada..."

 

Transforma-se, digo agora, o misericordioso no perdoado... A misericórdia - chamemos-lhe mesmo perdão - está na essência do Amor. Não é possível perdoar sem sentir o que é a sublime alegria de se ser perdoado. Não quero ser blasfemo: mas muitas vezes me ocorreu que a compaixão de Deus - esse sofrer (com os homens) que é a crucifixão e morte de Jesus e que se repete na eucaristia - é Deus que perdoa e pede perdão. É a única resposta possível à existência do mal. Fora disto, tudo é absurdo. Nem haveria ressurreição.

 

Também de misericórdia recíproca se alimenta afinal o amor humano. Recordo aqueles versos que há anos te escrevi:

     Amo a transparência  
     do teu olhar magoado
     e guardo em meu silêncio
     a memória desse olhar...
     e é tão bom tê-lo em mim
     assim guardado
     por muito que me pese
     o seu pesar:
     tão leve é o peso
     das penas partilhadas
     e tão manso e doce
     podê-las partilhar.


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs.: Reposição de texto publicado em 01.02.13 neste blogue.

A VIDA DOS LIVROS

De 9 a 15 de agosto de 2021


Eduardo Lourenço em “Nós e a Europa ou as duas razões” (INCM, 1994), tendo na capa a figura de Erasmo, assume claramente a linhagem da Geração de Setenta, e fala de “ressentimento” e de “fascínio” como referências polarizadoras que coexistiam na atitude dos intelectuais de Setenta, sendo a consciência da distância e da marginalidade uma marca permanente.


FASCINADOS E RESSENTIDOS
Portugal precisaria de ser outro, mais consonante com o continente civilizado, menos condenado à periferia e à distância. Fascinados ou ressentidos, a verdade é que precisaríamos da Europa – “com a mesma ironia calma com que Caeiro se vangloriava de oferecer o universo ao universo, nós, primeiros exilados da Europa e seus medianeiros da universalidade com a sua marca indelével, bem podemos trazer a nossa Europa à Europa. E dessa maneira reconciliarmo-nos, enfim, connosco próprios”. A receção do Realismo e do Naturalismo constituiu um momento fundamental em que uma geração intelectual procurou romper com o fatalismo do atraso e da mediocridade. Para tanto, haveria que seguir as tendências da modernidade, mesmo que isso representasse o assumir do escândalo da rutura. Mas se essa diferenciação era mister de gente culta, importava comparar, até para tentar perceber o que deveria fazer-se para romper com a inércia da repetição conformista ou dos nossos males que tanto irritavam os viajantes estrangeiros. Em maio de 1885, Oliveira Martins, no primeiro número de “A Província”, órgão do movimento da “Vida Nova”, afirma: “Esta é a vida nova que surge dentro do nosso partido, não como um renegar do passado, mas sim como uma afirmação positiva das suas tradições mais nobres e invariavelmente defendidas”. E nesse texto, invoca a referência europeia: “Toda a Europa se acha numa época de reação vitoriosa contra a anarquia económica; em toda ela predomina o pensamento da nacionalização do trabalho e da proteção dos trabalhadores”. Trata-se, assim, da invocação de um projeto claramente socializante, centrado na criação económica e na valorização do trabalho e dos trabalhadores. A Europa e a comparação com a Europa nunca são indiferentes à Geração de 70. Mas não se trata da Europa do livre-cambismo e das injustiças, mas do continente das ideias novas, da liberdade e da igualdade. Por outro lado, há sempre uma preocupação com o tentar perceber por que razão seremos menos europeus.


SEMPRE A EUROPA…
Continue a ler-se Eça de Queiroz, e veja-se como o tema europeu é quase obsessivo – o Primo Basílio vem de Bordéus, Maria Eduarda e Dâmaso Salcede também viajam num paquete vindo de Bordéus, “Os Maias” não se podem compreender sem a referência europeia, Alencar no célebre jantar do Hotel Central fala da “democracia humanitária de 1848” e diz querer “uma república governada por génios, a fraternização dos povos, os Estados Unidos da Europa” e em “A Cidade e as Serras” o que temos é um diálogo sui generis entre Portugal e a Europa. De qualquer modo, há sempre um confronto entre a Europa aceite como um horizonte referencial e a Europa considerada como desafio contra o fatalismo. O Alencar que fala dos Estados Unidos da Europa é o romântico, influenciado pelos engenheiros de Saint-Simon de que Fontes Pereira de Melo é o principal dos émulos. E o sentido crítico que Eça introduz a propósito de Tomás de Alencar aponta o dedo à inconsequência do utopismo romântico, contra o qual se ergue o naturalismo de Ega. A mesma crítica está, aliás, simbolizada no conde de Gouvarinho, representante do fatalismo e da mediocridade aceite. Quando lhe é posta a possibilidade de sobraçar a pasta dos Negócios Estrangeiros: “- essa nunca! – prosseguiu ele muito compenetrado. – Para se poder falar alto na Europa, como ministro dos Estrangeiros, é necessário ter por trás um exército de duzentos mil homens e uma esquadra de torpedos. Nós infelizmente, somos fracos… E eu, para papéis subalternos, para que venha um Bismarck, um Gladstone, dizer-me ‘há de ser assim’, não estou!...”. Como é sabido, Gouvarinho não foi para os Estrangeiros, mas para a Marinha e Ultramar, e então tomou a medida fundamental de criar um teatro normal em Luanda. Ainda em “Os Maias”, Carlos, no final do romance, cético e distante dos entusiasmos reformadores de dez anos antes, vindo da Europa, descreve o viver bem: “Passeio a cavalo no Bois; almoço no Bignon; uma volta pelo boulevard; uma hora no clube com os jornais, um bocado de florete na sala de armas; à noite a Comédie Française ou uma soirée; Trouville no Verão, alguns tiros às lebres no Inverno; e através do ano as mulheres, as corridas, certo interesse pela ciência, o bricabraque e uma pouca de blague. (…) Nada mais inofensivo, mais nulo, e mais agradável”. Eis o retrato de uma decadência perigosamente atrativa. E Carlos da Maia vê Portugal como uma realidade dividida: entre o dever ser civilizado e europeu e o peso do atraso e da sociedade antiga. De um lado, a “gente feísssima, encardida, molenga…”; de outro os sinais de imitação do que vem de fora – a Avenida, o obelisco dos Restauradores, a moda das botas aguçadas na ponta… A Europa aparece, assim, com um sentido nitidamente ambivalente – ora como referência externa que se imita sem consequência séria, ora como desafio transformador que não esqueça as nossas características próprias.


O CASO DA CIDADE E AS SERRAS
O caso de “A Cidade e as Serras” é bem ilustrativo. Jacinto está cansado da civilização e vem para as serras, não para a capital. Mas sabemos que, de certo modo, a insatisfação permanece. É verdade que Jacinto assume a clássica “aurea mediocritas”, que Gonçalo Mendes Ramires sonha com o Portugal em África, que Fradique Mendes entroniza a Quinta de Refaldes e outras deambulações no país genuíno – mas isso não significa a recusa queiroziana da referência europeia, antes representa o assumir de um mal-estar moderno europeu, simbolista. É, de algum modo, por influência da Europa que a crítica do excesso de civilização se faz. E, se bem virmos o que está em causa, não estamos perante um apelo isolacionista, mas um cosmopolitismo, que se centra no horizonte europeu. Em suma, o que está em causa é a recusa da condenação ao atraso, o apelo à vontade, às diferenças e à abertura de espírito e de fronteiras. Entre o fascínio e o ressentimento, sobretudo num tempo em que a história europeia prepara um século de incerteza máxima, e em que Portugal sofre uma crise muito profunda de credibilidade e de vontade, a Geração de Setenta sentiu no íntimo de si o peso de todas as contradições. A referência europeia é, no entanto, permanente e marcante, mas não pode ser superficial e mimética. A Europa de Alencar é aquela de que foge Jacinto. Ao invés do tédio que enfastia Jacinto, a Geração de Setenta tem no horizonte uma “sociedade outra” (na linha de Henriques Nogueira e de Lopes de Mendonça, influenciados pela “Primavera dos Povos” de 1848). Daí que o ceticismo de Carlos da Maia e o sentido crítico de João da Ega recusem a claustrofobia do país isolado e só. O “europeísmo” que a Geração assume é sempre o da abertura e da emancipação, não o da burguesia instalada e do bem-estar que entedia Carlos da Maia. “Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada” – continua bem presente – na perspetiva de “adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam, na Europa”.

 

Guilherme d’Oliveira Martins