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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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PAZ ENTRE AS RELIGIÕES, PAZ ENTRE AS NAÇÕES


1. A Basílica de Santa Sofia, em Constantinopla/Istambul, inaugurada pelo imperador Justiniano no século VI e dedicada a Cristo, Sabedoria de Deus, foi durante quase mil anos o maior templo cristão, impondo-se pela sua beleza e majestade. Muitos que lá entraram e contemplaram a cúpula, com 55 metros de altura e 30 de diâmetro, e o Cristo Pantocrator a olhar do alto disseram ter feito uma experiência do Céu.

A sua história tem sido atribulada. Foi realmente durante quase um milénio (537-1453) o santuário mais significativo da cristandade; a seguir ao Grande Cisma (1054), tornou-se a igreja mais importante dos cristãos ortodoxos, que os católicos, no tempo das cruzadas, conquistaram e dominaram (1204-1261); depois, durante quase 500 anos (1453-1931), tornou-se, com a conquista de Constantinopla, a mesquita “imperial” mais importante do islão, tendo Constantinopla passado a chamar-se Istambul, pois era tal o esplendor e a força de Constantinopla que não se dizia “ir a Constantinopla” mas “ir à cidade” (em grego: eis tên polín). Em 1931, depois da dissolução do império otomano,  Mustafá Kemal Atatürk, fundador da Turquia moderna, como sinal da laicidade do Estado, dessacralizou-a e transformou-a num “museu oferecido à Humanidade”, aberto ao público em 1935 já com os vitrais e os ícones cristãos, que tinham sido cobertos com gesso, porque o islão proíbe as imagens, e, em 1985, declarado património mundial da Humanidade pela Unesco. O actual presidente da Turquia, Recep Erdogan, decretou, no passado dia 10, que voltasse a mesquita, recomeçando a ser lugar de oração a partir de ontem, dia 24. Entretanto, o Governo turco assegurou que terá os mosaicos com imagens cristãs tapados durante as orações e que continuará aberta ao turismo, nacional e estrangeiro, com entrada gratuita (até agora, as visitas rendiam 50 milhões de euros anuais).

 

2. As reacções à reconversão em mesquita por Erdogan choveram de todo o lado. A Grécia, a Unesco, a Rússia, os Estados Unidos manifestaram inquietação. O governo grego foi dos primeiros a reagir, qualificando a decisão de “provocação ao mundo civilizado”. O Papa Francisco, logo no dia 12, na oração do Angelus, disse: “O meu pensamento vai para Istambul, penso em Santa Sofia e sinto muita dor”. É natural que os cristãos ortodoxos se exprimam de modo mais contundente, pois Santa Sofia é simbolicamente para a Igreja ortodoxa o que São Pedro é para os católicos. Assim, a Igreja da Grécia, antes ainda da reconversão, lembrou que Santa Sofia é uma “obra-prima, mundialmente reconhecida como um dos monumentos eminentes da civilização cristã. Toda a mudança provocará um vivo protesto e a frustração entre os cristãos de todo o mundo, e prejudicará a própria Turquia.” Sua Beatitude Jerónimo II, arcebispo de Atenas, qualificou a decisão de “insulto à ortodoxia, ao cristianismo em geral e a toda a pessoa sensata”, instrumentalizando a religião para conveniências partidárias, geopolíticas e geoestratégicas. A Igreja ortodoxa russa antevê que possa ter “graves consequências para toda a civilização humana”. O patriarca Cirilo de Moscovo declarou que “uma ameaça a Santa Sofia é uma ameaça ao conjunto da civilização cristã.” O Conselho Ecuménico das Igrejas, que reúne 350 Igrejas cristãs no mundo, exprimiu o seu “pesar e consternação”; para o seu secretário-geral, I. Sauca, Santa Sofia era uma bela prova da “ligação da Turquia à laicidade”. A França “deplorou” a mudança, enquanto a Unesco poderá rever o seu estatuto, considerando “lamentável” a decisão tomada “sem diálogo nem notificação prévia”.

3. Sempre que se fala em religião/religiões vem inevitavelmente à mente a declaração célebre do teólogo Hans Küng: “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos (atitude ética) global, sem um ethos mundial.”

Condição essencial para a paz entre as religiões e  para que haja liberdade religiosa é a laicidade do Estado, a não confundir evidentemente com laicismo. O Estado não pode ser confessional, não pode ter nenhuma religião, precisamente para garantir a liberdade religiosa de todos. Erdogan, porque está a perder poder, quer apoiar-se nos sectores mais islamistas e ultranacionalistas. De facto, como disse o turco Ohran Pamuk, Nobel da Literatura, “esta reconversão é dizer ao resto do mundo que, infelizmente, não somos um Estado laico”. Deste modo, acabou por dar um duro golpe no diálogo inter-religioso, que tem a sua prova de verdade no combate comum pela paz, pela justiça, por aquele ethos que Hans Küng refere e que está presente no documento histórico, a que aqui me referi amplamente, “A Fraternidade Humana”, assinado em Abu Dhabi pelo Papa Francisco e pelo Grande Imã da Universidade Al-Azhar, no Cairo. Não há dúvida de que, transformando Santa Sofia em mesquita e aliando religião e nacionalismo, Erdogan “pode criar um terreno fértil para a intolerância religiosa e a violência”, alertou a Conferência de Igrejas Europeias.

Erdogan foi perigosamente muito longe, ao celebrar, no discurso oficial em árabe —a referência não é mencionada nem na versão em turco nem em inglês —, esta reconversão como um primeiro passo de um “renascimento” islâmico, que deve ir de Bucara, no Uzbequistão, a Al Andalus, Espanha: ele “é o símbolo do regresso do sol nascente da nossa civilização islâmica”.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 26 JUL 2020

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Dizes-me que, em cartas recentes, ao chegar-me tanto a factos concretos e relatos circunscritos, também eu me imiscuo em política... Respondo que talvez sim, é difícil fugir de falar de acontecimentos, pessoas e narrativas que, de um modo geral, se diz que são políticos. Mas penso que talvez não, no sentido em que não assumo uma perspetiva partidária, facciosa, nem sequer simplesmente anrogular, não tenho nem tomo qualquer ponto de vista que me limite ou segmente uma visão global. Procuro uma visão tão abrangente quanto possível, distanciada de tomadas de posição preliminares, privilegio um olhar antropológico, um esforço para entender psicologias e culturas, espíritos e circunstâncias. Mais, muito mais do que afirmar, interrogo. Interrogo a análise e a interpretação de outros, e a minha também. Nem sempre conseguimos entender tudo, nem sequer reunir informação mínima, a necessária para desvanecer cortinas de nevoeiro que apenas nos deixam adivinhar vagas sombras da realidade.

 

   Dou-te um exemplo recente: quantos de nós poderemos total e infalivelmente reconhecer e apontar os fatores, agentes e responsabilidades da presente situação na Turquia? Ou de qualquer outra que nos seja presente? E será que podemos tentar reconstituir o clima, ou as circunstâncias históricas, em que essa situação foi surgindo e evoluindo, mesmo que ganhemos a serenidade necessária ao indispensável distanciamento dos nossos preconceitos, inclusive das nossas mais queridas memórias históricas? - o que quiçá será mais fácil para um estranho do que para um "nacional".

 

   Na trincheira do campo de batalha, em que se agachava, em 1917, escreveu o historiador Jules Isaac (cf. Un historien dans la Grande Guerre, Paris, Armand Collin, 2004): Desconfiemos, pois, das nossas recordações históricas: longe de nos ajudarem a compreender, elas enganam-nos, despistam-nos, expõem-nos a manobras falsas...

 

   Não tenho, nem formação disciplinar, nem informação suficiente, para te ajudar a inteirares-te da situação atual da Turquia. Posso tão somente lembrar-te de que ela, apesar de toda a sua complexidade popular e pululante, do drama vivido por seres humanos, nossos irmãos - que talvez só desejem uma vida menos complicada e discutida, mas mais fraterna e feliz - pode desenhar-se num quadro de referências históricas, ideológicas, políticas e religiosas, concordantes ou concorrentes umas, contraditórias ou exclusivas outras: o presidente Erdogan reclama-se hoje da herança kemalista (de Mustafá Kemal, mais conhecido por Ataturk), porque os princípios definidos, entre 1927 e 1934, pelo fundador (Ataturk ou Pai dos Turcos) da República que substituiu, em 1923, o Império Otomano, o podem ajudar a alicerçar uma legitimidade, num país dividido entre islão e laicidade, entre lembranças imperiais e exigências republicanas. São eles «as seis setas»: laicidade, nacionalismo, estatismo, republicanismo, populismo e revolução. Mas tal não torna Erdogan num autêntico kemalista, ele que sempre defendeu uma reislamização da Turquia e, nesse particular, até será mais islamista do que o seu adversário de eleição, o imã Fethullah Gülen, exilado nos EUA.

 

   Este, líder religioso de um movimento que se foi profundamente infiltrando no aparelho do Estado, desde as forças armadas à justiça, ao ensino e à administração pública, tal como em empresas e suas associações, a ponto de o compararem à Opus Dei, procurava, diz-se, defender o diálogo inter-religioso, herança espiritual do sufismo, o que faz dele um nacionalista turco mais preocupado com a liderança do islão sunita, do que propriamente com a confusão desta com a saudosa preponderância otomana. Talvez bata aqui o ponto da sua divergência potencial e atual com Erdogan. Não sei. 

 

   O poder político deste, reforçado pelo proclamado falhanço de uma conspiração contra si, aponta ao outro a motora responsabilidade da mesma, e não está sozinho: parece que mais de metade do povo turco assim pensa, tal como certos intelectuais, personalidades políticas, como Murad Akincilar, o qual, tal como Gülen e Erdogan, também teve de sofrer prisão por razões de Estado. E os próprios kemalistas, republicanos e laicos, apoiam a tese do AKP, partido do governo de Erdogan, de inspiração islâmica conservadora.

 

   Porquê, quando, afinal, como julgou o politólogo Soli Özel, a Turquia enfrenta hoje, depois da derrocada da República laica, a primeira batalha da República religiosa? Não sei. Tudo isto tem ar de alianças de maior ou menor verdade e conveniência... Com todos à espreita. Ou, talvez, espreitados por um certo olhar teimoso do passado... Não sei, repito, nem posso adivinhar, qual a verdade íntima da proposta de diálogo inter-religioso do hoca efendi (venerável mestre) Fethulah Gülen. Mas posso imaginar a possibilidade de um passo de islamitas convictos em direção aos infiéis. Sobretudo se o cotejar com esta declaração do editorialista Abdurrahman Dilipak, do jornal oficioso Yeni Akit: Se a organização [a de Gülen] tivesse tido êxito, ele teria sido acolhido como triunfador. Todo o mundo sabe que, por detrás dessa organização, estão os EUA, a NATO, o Reino Unido, a França, o Vaticano, Israel, a União Europeia e as lojas maçónicas...

 

   Tudo a conspirar contra Erdogan? Talvez, embora me pareça mistura de gente a mais. Não sei. Mas lembro-me de que a República implantada em 1923 trouxe para Ankara a capital do Estado, desde que Istambul, a Sublime Porta, não só deixara de ser o ponto de encontro, central, de um Império tão euro-asiático como o bizantino, como se situava longe da Anatólia, donde foram então evacuadas as populações gregas... Ankara, pelo contrário, fora o refúgio dos republicanos, a capital de Ataturk. A República turca configurava-se em modelo diferente do Império otomano, com a imposição das reformas kemalistas que, em carta antiga, te contei.

 

   Mas verificamos hoje que oito décadas não apagaram da memória afetiva e eletiva de um povo o apego à grandeza passada do sultanato, ou califado, otomano. Aliás, o Império teve, durante séculos, um olhar sobranceiro para a cristandade e o ocidente. Só quando começou a sofrer algumas derrotas, pensou o turco que algumas reformas seriam necessárias para poder concorrer, mas logo desde o século XVII os próprios sultões reformistas tiveram de enfrentar a oposição do radicalismo religioso conservador, sobretudo o seu ódio a tudo - a todos - o que não se coadunasse ao preconceito tradicional da superioridade da religião e do povo eleitos.

 

   E ocorrem-me agora dois pensamentos que guardei. Um de Raymond Aron, outro do meu querido Georges Bernanos. Escreveu Aron em Évidences (Dezembro de 1955):
   O fenómeno decisivo são os ódios abstratos, o ódio de qualquer coisa que não conhecemos, e sobre o qual projetamos todas as reservas de ódio que os homens parecem trazer no fundo deles mesmos..

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   De Les Grands Cimetières sous la Lune, esse magnífico protesto contra a guerra de Espanha, que Bernanos escreveu em 1938 - e que tantas vezes noutras cartas te citei - traduzo:

   O medo, o medo autêntico, é um delírio furioso. De todas as loucuras de que somos capazes, ele é, certamente, o mais cruel. Nada se compara ao seu impulso, nada pode aguentar o seu choque. A cólera, que se parece com ele, não passa de um estado passageiro, uma súbita dissipação das forças da alma. E, além disso, é cega. O medo, pelo contrário, desde que lhe ultrapassemos a primeira angústia, forma, com o ódio, um dos componentes mais estáveis da nossa psicologia. Até me pergunto se o ódio e o medo, espécies tão próximas uma da outra, não terão chegado ao último estádio da sua evolução recíproca, e se não se confundirão, amanhã, num sentimento novo, ainda desconhecido.

 

   Há vozes proféticas, Princesa de mim, acredita. E não as recordo, nem só, nem sobretudo, por me lembrar da Turquia republicana, de otomanos impérios e sonhos, de sultões ou imãs... Pensossinto, mais do que por mim, no poder do medo que vai afligindo o mundo. Mais do que o ressentimento na história, tema de Marc Ferro, de que também já te falei, pesa sobre nós todos um fantasma que se chama "prestígio do passado", que cristaliza afetos e aversões, e nos paralisa ao ponto de nos impedir a invenção do futuro. O projeto de Ataturk, a revolução kemalista, também nos ensina que pouco ou nada se consegue pela força, por decreto e imposição. Nada de novo acontece sem essa libertação que começa pela cultura do espírito. Tudo o mais é confusão.

 

       Camilo Maria 

 

 

Camilo Martins de Oliveira