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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


No filme ‘Le Genou de Claire’ é exatamente neste sítio, justamente no verão, que se permite o fluir incerto do conhecimento de um eu.


No filme ‘Le Genou de Claire’ (Eric Rohmer, 1970) o espaço exterior físico manipula e influencia a vida das personagens. O espaço exterior é assim entendido como um campo de mútua interação entre a esfera espiritual e a esfera material.


A história deste filme só existe porque se dá naquele determinado lugar e naquele preciso momento. Abre-se numa porção vaga e desocupada do tempo. Jérôme aceita as regras de Aurora para justificar o seu amor fiel e verdadeiro a Lucinde. Na opinião de Carlos F. Heredero e Antonio Santamarina, Aurora, é a verdadeira narradora desta história ao conduzir as cegas acções de Jérôme. É o carácter demiurgo de Aurora que transporta Jérôme para momentos de escolha. É através de Aurora que Jérôme se fragmenta e se transforma em corpo que sente sem restrições. É um momento de prova, de resistência e de decisão para Jérôme de modo a encarnar algo sublime.


Em ‘Le Genou de Claire’, a película foi filmada cronologicamente de modo a proporcionar uma acentuação das verdadeiras e objetivas variações e instabilidades do tempo e do espaço que se refletem nas personagens. As montanhas, o lago, as cerejeiras, o sol, a chuva, as diferentes horas e a distinta luz contribuem para explorar o movimento aleatório que permite o advir da reflexão e da narração. C. G. Crisp, no livro “Eric Rohmer. Realist and Moralist.”, escreve que nos filmes de Rohmer, a moral parece originar-se natural e inevitavelmente de uma observação objectiva do mundo, em vez de ser uma ordem imposta a esse mundo: “the world must seem to generate the ideology, rather than the ideology the world.” (Crisp 1988, 34). 


Deste modo, apesar das tentativas permanentes do narrador em controlar as circunstâncias exteriores, este filme de Rohmer é meteorológico porque parece estar constantemente dispostos à mudança e ao acaso. São os lugares que ajudam a construir as personagens de Rohmer. É precisamente junto do lago Annecy que Jérôme se vai construindo e se marginalizando. O filme faz crer que é exatamente neste sítio, justamente no verão, que se permite o fluir incerto do conhecimento de um eu (lugar de reflexão) através do inesperado confronto com os outros (lugar de relações humanas).


“Rohmer’s Moral Tales should deal with the unstable, the relative - as must any narrative - and that the ‘pre-destined beloved’ should be more or less absent from the films. Love, in this reading, is ’something else’ - or rather ‘somewhere else’ - it is outside time and outside narrative. Only the digression from that state, only the sensual desire with its implication of movement and process, can let itself be told.” (Crisp 1988, 66)


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


No filme Le Signe du Lion, a cidade é usada como metáfora para o caminho de encontro com o destino.


No filme Le Signe du Lion (Eric Rohmer, 1959) a cidade aparece como o último refúgio do ser humano. Revela-se abrigo mas também uma claustrofóbica prisão. Neste filme, a cidade é a condutora para a redenção e para o arrependimento.


A história de Le Signe du Lion acompanha a transformação de Pierre Wesselrin, um artista fracassado e boémio que vive em Saint-Germain-des-Prés. Pierre ficou sem casa logo após ter sido deserdado. Apesar do seu talento para a música, Pierre sempre dependeu dos seus amigos para viver. É verão e todos estão ausentes. Pierre procura em vão alguém que o salve.


Objetivamente vai-se seguindo, a degradação desta personagem. Ao seguir Pierre pelas ruas de Paris, presencia-se ao que ele está exposto, permite-se a participação da consciência da personagem e a uma visão objetiva de uma sucessão de factos. O espaço físico de Paris é descrito sob um sol tórrido e o andar lento, perdido e abandonado de Pierre. A cidade é assim usada como metáfora para o caminho de encontro com o destino. É uma odisseia de quem anda sem parar, de quem quer encontrar um poiso num espaço duro e cheio de pedra. A cidade descobre-se árida e desolada e a pedra, neste filme, representa a rigidez, a ordem, a opressão e a restrição urbana.


No livro “Eric Rohmer. Realist and Moralist.” de C. G. Crisp lê-se que Rohmer, em Le Signe du Lion abstem-se de inserir no filme alusões explicitas às implicações religiosas da narrativa - é a exploração de um trajeto de uma personagem na sociedade e a sua relação com os outros que aqui importa. Rohmer confia que será através de uma paciente e meticulosa acumulação de observações do mundo real exterior que irão revelar inevitavelmente a evolução da personagem. (Crisp 1988, 26)


Pierre perdeu o seu lugar, o seu território e quer voltar a tê-lo. Mas o desalento e a resignação dominam os passos deste homem.


Rohmer filma Paris meticulosamente, seguindo percursos com precisão topográfica. No livro “Eric Rohmer”, Joël Magny escreve que Rohmer filma o estado de alma de Pierre, indiretamente, através da cidade visível. Por meio da composição, do som, da música repetitiva, da luz, de símbolos e da montagem - o mundo objetivo segue assim como sendo o reflexo do mundo subjetivo de Pierre. Para Magny, Rohmer realiza um cinema que dá a conhecer, que dá a ver através do espaço e do tempo. Na verdade, os trajetos físicos estão ligados a motivos e a aspirações espirituais. Magny explica que cada gesto, cada passo e cada movimento têm um duplo significado físico/material e intelectual/metafísico. Cada percurso é revelador da essência das coisas. Por isso, ao procurar abordar objetivamente o mundo e os indivíduos, Rohmer consegue também aproximar-se do acaso e do inexplicável. O modo de vida de Pierre, em Le Signe du Lion consistia em acreditar simplesmente na sua sorte e não no seu talento e em esperar por um meio de subsistência vindo do exterior (de amigos ou de uma tia com herança).


Crisp escreve que no decorrer da sua degradação física, Pierre, despojado de tudo e preso num labirinto de pedra quente, é forçado a seguir caminhos (urbanos e suburbanos) sob o olhar impiedoso de Deus. Nesse momento a cidade recusa-se a abrir qualquer horizonte. Na opinião de Crisp, a luta contra a pedra das paredes da cidade é uma metáfora que descreve o combate que Pierre tem de travar contra si próprio e contra a sua natureza mundana. Como se de um grande peso se tratasse, Pierre quer libertar-se das pedras assim como deseja aprender a rejeitar o domínio das coisas do mundo.


Para Rohmer, a existência de Deus não é deduzida diretamente através da ordem terrena, é sim, um compromisso total e irracional. Para Crisp, embora seja possível interpretar as experiências de Pierre como uma provação, os vários momentos em que parece não haver intervenção divina afiguram-se arbitrários, ambíguos e até mesmo acidentais (a herança perdida, o óleo derramado, o bilhete de metro caído, os amigos ausentes, o sapato quebrado).


“On peut lire alors cette fable comme une parabole chrétienne: aide-toi, le Ciel t'aidera! C'est lorsque Wesselrin utilise ses dons musicaux (qu'il avait galvaudés jusque-là) pour gagner les quelques piécettes nécessaires à sa subsistance, en jouant du violon à la terrasse des cafés remplis de touristes, que le ciel lui enverra la Grâce. C'est par sa musique que ses amis vont le retrouver.” (Magny 1986, 35)


Só no final, ao tocar violino, no limiar do abismo e da total desintegração, Pierre realiza que as suas pretensões eram vazias e irrelevantes. A salvação de Pierre é assim racionalmente injustificável, é ordem acaso. Magny esclarece que o plano divino, que faz de Pierre de novo um herdeiro, é a expressão do momento em que, quando não há mais perigo de decadência, quando não se pode cair mais fundo, o milagre acontece e o movimento da esperança ressuscita.


Para Crisp, Pierre personifica toda a humanidade ao ter de ultrapassar sucessivas provas físicas que o levarão da queda à culpa e da graça e à salvação. E a cidade é a testemunha deste prodígio e a possibilitadora desse momento fora do tempo - é espaço onde todas as regras são suspensas, onde a fenda se abre e a ordem sobrenatural se manifesta. É a cidade que faz com que de novo Pierre encontre o seu caminho.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Em Les Nuits de la Pleine Lune opõe-se espiritualidade e fisicalidade.


O espaço físico reflete o interior de cada ser. A atenção, ao mundo que nos rodeia, recai sempre sobre aquilo que nos dá outra dimensão. Os filmes de Éric Rohmer promovem frequentemente a analogia entre o pensamento e o espaço físico.


No livro “Eric Rohmer. Realist and Moralist.”, C. G. Crisp explica que, no filme Les Nuits de la Pleine Lune (Rohmer, 1984) , a obsessão de Louise em estar sempre no centro, onde acontece tudo, transmite-se nas constantes viagens entre as duas casas que se situam em Marne la Vallée e Paris. Louise tem vontade de estar no lugar de maior artifício, pretensão e movimento e não à margem. Crisp explica que até para Louise as outras personagens servem somente para fornecer olhares de admiração e estabelecer uma infinita rede de conexões.


O provérbio, que aparece no genérico, lembra que quem tem duas casas pode enlouquecer e pôr em perigo a sua alma. Segundo Crisp, o erro de Louise é o de confundir o centro geográfico e social (neste caso Paris) com o centro espiritual (lugar onde que a vida fará sentido). Nos filmes de Rohmer, as verdades essenciais e as relações permanentes só são descobertas na periferia das coisas, na borda, no que está perdido, em instantes fugazes ou em momentos em que a cidade (espaço) se torna enganosa e indiferente. A intensidade da vida metropolitana faz o indivíduo perder-se no anonimato da agitação.


O novo conjunto habitacional de Marne la Vallée (onde Louise habita com Rémi) parece ser sombrio e taciturno e Louise sente-se aí aprisionada. Louise, durante todo o filme, não deseja encontrar-se em Marne la Vallée. Louise anseia sim pelo alvoroço e a inquietação da cidade central para se esvaecer. Crisp escreve que Louise é acima de tudo seduzida pela necessidade de ser completamente livre e de manter todas as possibilidades em aberto.


“Louise: (…) J’ai besoin d’être seule, de temps en temps, vraiment seule. (…)
Octave: La solitude, ce n’est pas marrant du tout.
Louise: Je verrai. Qu’on me laisse au moins voir par moi-même!
Octave: Qui t’empêche?
Louise: Les autres, les gens qui m’aiment, en général. On m’aime trop.” (Rohmer 1999, 13)


Para Crisp, o filme explora motivos já conhecidos na obra de Rohmer, no que diz respeito à oposição e confronto entre espiritualidade e fisicalidade. Na série dos contos morais, a personagem principal conseguia, como que por milagre escapar às fraquezas espirituais. Porém, em Les Nuits de la Pleine Lune, a éterea Louise não é resgatada por nenhuma moral. Mas é no final, sob a lua cheia, que a casa de Paris (o espaço central) passa a ser cativeiro. É a própria Louise, que propõe a Rémi a abertura de outras possibilidades (sem imaginar o desgosto que irá ter).


Para Crisp, a angústia de Louise, no final, é um sinal de derrota, mas é principalmente um sinal de conversão tardia a sentimentos profundos. Na opinião de Crisp os jovens deste filme são descrito através de uma existência sombria e sem sentido - incapazes de escolher, ávidos de experiência e de tudo ao mesmo tempo e carentes de princípios (pelo menos inicialmente). Louise não suporta a natureza - a vida no campo provoca-lhe angustia - mas Crisp sublinha que é o seu estilo de vida noturno que a fará redescobrir precisamente o domínio dos seus impulsos através da natureza lunar.


Sendo assim, Crisp termina, esclarecendo que este é um dos filmes que mais efetivamente explora as oposições estruturais que estão presentes na obra de Rohmer. Neste filme, opõe-se liberdade e pertença; multiplicidade e unidade; espiritualidade e fisicalidade. Na busca pela liberdade, Louise toma consciência da sua dependência. Na procura pela sua individualidade, Louise encontra-se apenas solitária. Na vontade em viver no centro de tudo, Louise descobre que é na margem que estão os sentimentos mais profundos e permanentes. Estas e outras ironias servem para demonstrar que, dentro da estrutura fixa, característica dos filmes de Rohmer, existe infinito espaço contentor de contradições, isto porque o espaço físico é mesmo reflexo da dimensão interior.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR


Nos filmes de Éric Rohmer a cidade representa o confronto de contradições.


A cidade de Eric Rohmer está sempre viva, porque está sempre em movimento contínuo. É porosa, permeável, isotrópica, transparente e atua em todas as direções. 


Ao longo dos filmes, percebemos que as constantes conexões urbanas (o andar, o movimento, a multidão) tornam possível a existência de relações entre os personagens. Há cidades cheias e ruas vazias, campos a perder de vista, comboios com passageiros e carros a circular.


Nos filmes de Rohmer, a cidade, ou seja, o mundo físico exterior, promove o encontro humano e não há medo em enfrentar o outro, pois entende-se que a existência das cidades depende desse constante aglomerado de pessoas. Depende do movimento para a sua vitalidade - depende da complexidade da rede de cidades, depende do cruzamento permanente de ruas e praças, dos diferentes níveis de velocidade e circulação, das diferentes perspetivas e dos muitos momentos de pausa.


No filme L’amour l’après midi (1972), a cidade representa o confronto de contradições - o profano com o sagrado, a multidão com a solidão, a certeza com o desejo, a imaginação com a salvação. 


Segundo Vittorio Hösle, em ‘Éric Rohmer. Filmmaker and Philosopher’, Rohmer considera que a realidade para Rohmer é mais do que uma conexão entre causas e efeitos. Rohmer vê a realidade física como uma ordem integral, como sendo a perfeita junção entre a natureza e o ser humano, ao estar impregnada de significados e de princípios e ideais. As várias partes da realidade, por isso estão interligadas e os objetos e os espaços físicos são reflexo de um determinado estado mental. 


Hösle também refere que Paris como metrópole representa o dinamismo necessário para que Frédéric viva aberto a diversas possibilidades e para que viva numa nuvem de sonhos e fantasias imparáveis. Frédéric, ao ter escolhido casar com Hélène, conhece já o que desejou ter tido, e por isso agora, é na cidade que se proporcionam diariamente alternativas possíveis e a inevitável desilusão de algumas expectativas desencadeia naturalmente segundas reflexões: “Pourquoi, dans la masse des beautés possibles, ai-je été sensible à sa beauté? C’est ce que je ne sais plus três bien. (…)


Depuis que je suis marié, je trouve toutes les femmes jolies. (…) Que se serait-il passé, si j’avais, il y a trois ans, rencontré cette jeune femme? Aurait-elle frappé mon attention? Aurais-je pu m’éprendre d’elle, désirer un enfant d’elle?” (Rohmer 1998, 211)


Rohmer move-se entre diferentes conceitos nos seus filmes, que parecem transmitir a mesma mensagem, ou seja, que o espaço tem um impacto nos indivíduos e nas suas relações. Este impacto pode ser físico ou emocional e abre a possibilidade do inesperado, que pode atuar contra a vida organizada e planeada - nalguns casos o imprevisto é bem-vindo, noutros é perturbador. 


Assim, o modo de vida urbano é sempre definido através de mudanças e deslocações constantes, condensadas e aceleradas. Para Rohmer, a cidade é, portanto, sinónimo de transformação contínua. Na sua opinião, é o lugar, por distinção, onde estranhos se podem encontrar, e onde as margens podem ser centrais e a vida no centro pode até significar exílio.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Os filmes de Éric Rohmer abrem a possibilidade do milagre infundir a vida com sentido.


“There is a crack in everything.
That’s how the light gets in.”, Leonard Cohen ‘Anthem’


O cinema, segundo Éric Rohmer, não cria significados através de símbolos. O seu cinema simplesmente dá a mostrar. No texto ‘Truth, Beauty and Goodness: Freedom and the Platonic Triad in Eric Rohmer’s Film Theory’ de Hanne Schelstraete (Film-Philosophy, Volume 26 Issue 3, Page 331-351, Sep 2022) lê-se que em vez de afirmar uma camada por de trás da realidade que se experiencia e que se tem de interpretar, Rohmer antes declara que aparência já é essência. O cinema ao ser o meio que revela a essência na realidade visível, procede de uma visão cristã sobre o mundo. E Rohmer expressa esta crença na transcendência imanente do mundo palpável através do seu cinema que, naturalmente, revela a realização divina.


Schelstraete explica que desde início da era moderna, a sociedade ocidental progressivamente substituiu o absoluto pelo particular, a certeza pelo relativismo e os dogmas religiosos por um ceticismo generalizado. Desde o séc. XIX, a sociedade tornou-se industrial e a existência humana deixou de ser somente justificada pela existência de Deus. Não é Deus omnipresente, mas sim o indivíduo que detém o poder soberano sobre a sua própria liberdade e as suas próprias incertezas. O espaço reservado ao desconhecido e ao irresoluto diminuiu. 


Porém, Schelstraete argumenta, que dentro deste panorama Eric Rohmer acredita que o cinema é ainda a arte que possui intrinsecamente a verdade e por isso deve fazer da beleza o seu fim supremo. Em alguns dos seus textos, Rohmer considera a lógica, a estética e também a ética como ideais absolutos que fundamentam e precedem todas as experiências e os pensamentos do ser humano. Para Schelstraete, Eric Rohmer aborda o cinema como meio mecânico, como forma de arte em movimento mas sobretudo como expressão que explora a metafísica e a essência do ser humano. 


O cinema de Rohmer tenta, assim, recuperar esse espaço reservado ao transcendente em ocasiões aparentes quase impercetíveis. Para Keith Tester, em ‘Film as Theology’ (2008), os filmes de Rohmer abrem de facto essa possibilidade de um sentido mais sublime se concretizar. O cinema de Rohmer permite que haja espaço para os sinais divinos se manifestarem na realidade objetiva. 


Para Tester, o sinal ou graça não se manifesta através de grandes momentos. Os milagres nos filmes de Rohmer aparecem subtilmente, não são óbvios e por isso a sua receção e entendimento é mais exigente. A graça manifesta-se em momentos frágeis, insignificantes e facilmente ignoráveis - um encontro inesperado, a forma de um joelho, o despir de uma camisola, um reflexo…  


Um milagre, nos filmes de Rohmer, é uma irrupção de novas possibilidades mas também a invasão súbita de novas incertezas. Por isso, Tester esclarece, que muitos filmes terminam em momentos que não ficam resolvidos - parecem, muitas vezes, terminar em novos começos. A circunstância em que surge a transmissão do sinal é só reconhecida por aqueles que estão prontos para receber a graça. Para Tester, os filmes de Rohmer exploram sobretudo a capacidade das personagens (que são pessoas empiricamente reais) em conseguirem, através da perseverança, continuar a procurar ver ou pelo menos em possuírem a disponibilidade para continuar à procura dos sinais - mesmo se estes ficarem perdidos ou se não forem vistos com evidência. 


Na opinião de Tester, os filmes de Rohmer abrem caminho para algo prometedor porque permitem a possibilidade do milagre infundir a vida com sentido. O indivíduo poderá assim abrir-se à possibilidade de um sentido vivencial mais sublime e não somente superficial e experiencial. E essa abertura implica estar mais atento e sensibilizado em relação ao mundo real e físico. 


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


A arquitetura e a cidade em Rohmer expõem falhas, modificações, reflexos, imagens, encontros.


“Dans le fond, ça me rassure, dis-je, j’aime bien qu’il y ait du monde dans les rues, à n’importe quelle heure. C’est ce qui fait l’agrément de Paris. Je ne connais rien de plus sinistre que les après-midi de province ou de banlieue…”, Fréderic In L’Amour, l’après-midi (Rohmer 1998, 214)


No filme L’Amour, l’après-midi (Eric Rohmer, 1972) a metrópole, neste caso Paris, apresenta-se como um lugar que salva da angústia e do aborrecimento quotidiano. A cidade oferece a possibilidade de o indivíduo desaparecer para emergir.


Lê-se em ‘Film as Theology’ de Keith Tester (2008) que o território dos filmes de Rohmer têm um sério compromisso com a realidade. Segundo Tester, o realismo dos seus filmes, distingue-se ao refletir a importância da graça teológica para a vida empírica de cada pessoa humana. Nos filmes de Rohmer, o território cartografado é precisamente o lugar para aprender a olhar e para atender às manifestações da graça.


Em L’Amour l’après-midi a cidade revela-se como sendo o lugar onde a imaginação se desenvolve e onde suposições se poderão eventualmente cumprir. É durante a hora de almoço tardia que Fréderic fantasia viver uma vida paralela. Mas assim que dá a possibilidade da vida imaginária se concretizar, através de Chloé, Fréderic escolhe conservar-se firme na sua vida real.


Na opinião de Tester, os filmes de Rohmer exploram o conceito de graça que está incorporado no mundo da experiência e da prática. Graça para Rohmer é o momento capaz de transformar o indivíduo de modo a poder perseverar na vida real. Rohmer revela assim a importância de cultivar o olhar aberto ao milagre que irrompe inesperadamente através dos outros e do mundo objetivo que nos rodeia.


A arquitetura e a cidade em Rohmer têm esse papel, porque é através desse espaço físico que se expõem falhas, modificações, reflexos, imagens, encontros... Segundo Rohmer é a graça divina que salva e que indica o caminho e o verdadeiro destino.


Tanto o cinema como a arquitetura, para Rohmer, moldam o espaço e têm a capacidade de influenciar e determinar o trajeto humano. Porém é sobretudo a arquitetura, que através da sua forma e escala pode ser uma abertura para a compreensão que transcende. A cidade onde Fréderic se move e trabalha é o espaço da sua vontade e da sua imaginação mas também lugar de uma vontade sublime. Para Tester, Rohmer com sua objetividade, explora sobretudo os momentos em que a infusão divina se perde e se manifestam erros, ilusões e estratégias na tentativa das personagens se preservarem da tentação.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


A metrópole revela-se como um lugar único, que se desenvolve através de correntes opostas, onde a nossa existência fugaz é apenas mais uma pequena célula.


“Je marche dans la foule qui sort de la Gare Saint-Lazare, et s’écoule dans les rues avoisinantes. 
J’aime la grande ville. La province et les banlieues m’oppressent. Et, malgré la cohue et le bruit, je ne rechigne pas à prendre un bain de foule. J’aime la foule comme j’aime la mer, non pour m’y engloutir, m’y fondre, mais voguer à sa surface, en écumer solitaire, docile en apparence à son rythme, pour mieux reprendre le mien propre, dès que le courant se brise ou s’effrite. Comme la mer, la foule m’est tonique et favorise ma rêverie. Presque toutes mes pensées me viennent dans la rue, même celles qui concernent mon travail.”, Éric Rohmer In L’amour l’après-midi


No filme L’Amour l’après-midi (Rohmer, 1972) Frédéric confessa o seu gosto pela grande cidade. A metrópole facilita oposições e vive de contradições. É através do mergulho na multidão, que Frédéric consegue revigorar-se e encontrar o seu próprio ritmo - e apesar de todo o barulho quase todos os seus pensamentos lhe vêm à cabeça na rua.


No texto “The Metropolis and Mental Life” ((adapted by D. Weinstein from Kurt Wolff (Trans.) The Sociology of Georg Simmel. New York: Free Press, 1950, pp.409-424)), Georg Simmel escreve que as condições da vida numa metrópole estão associadas a rápidas aglomerações de imagens em constante mudança, a descontinuidades acentuadas, a apreensões inesperadas e a impressões que se precipitam. O ritmo e a multiplicidade da metrópole contrasta com a vida das aglomerações mais pequenas onde há mais espaço e mais tempo para que as imagens mentais e sensoriais fluam mais lenta e uniformemente. Simmel explica que a vida nos círculos mais pequenos assenta em relações emocionais mais profundamente sentidas que crescem rodeadas em ritmos constantes e costumes ininterruptos. 


Já a vida metropolitana tem como base o predomínio do intelecto. Segundo Simmel, o intelecto é a mais adaptável das forças interiores. O intelecto ajusta-se à mudança e ao contraste dos fenómenos sem choques, nem convulsões interiores. São as forças racionais que dominam o ser metropolitano. A intelectualidade é assim vista como uma capacidade menos sensível e mais afastada da profundidade da personalidade. E Simmel pensa ser esta a capacidade que preserva a vida subjetiva contra o poder esmagador da vida metropolitana. 


A economia monetária e o intelecto estão intrinsecamente ligados na metrópole, ao partilharem a atitude mais dura e irrefletida perante pessoas e coisas. Simmel afirma que o intelecto pode ser indiferente a toda a individualidade genuína e a racionalidade extrema reduz tudo e todos a um número indiferenciado. 


O individuo metropolitano relaciona-se com as outras pessoas de acordo com interesses e realizações objetivas. No pequeno círculo as pessoas conhecem-se e a produção tenta satisfazer a pessoa particular. Na metrópole a produção é feita em massa, para satisfazer pessoas anónimas, e por isso os interesses puramente individuais sobrepõem-se e tomam uma importância desmedida.


A metrópole, como organismo composto, só se concretiza na agregação de muitas pessoas com interesses muito diferenciados e na integração de muitas atividades e relações dentro de um espaço estável e impessoal. A pontualidade, a calculabilidade e a exatidão são impostas a todas os indivíduos por causa da extensão e da complexidade da metrópole.


Em contraste com a exatidão, a precisão e a impessoalidade na metrópole pode surgir uma incapacidade em reagir a novas sensações. Esta atitude de indiferença, resultado também da importância da economia monetária, pode provocar o alheamento em relação ao sofrimento e à exploração do outro.


O metropolitano tenta preservar o eu. O individuo da grande cidade ao ser mais reservado torna-se mais insensível - e a indiferença pode provocar estranheza, aversão, e até repulsa mútua, e que levada ao extremo pode transformar-se em ódio e em conflito físico. 


Porém apesar do perigo da indiferença é a distância e a estranheza que protegem os indivíduos na grande cidade. Simmel explica que a dissociação da vida metropolitana é, na realidade, apenas uma das suas formas elementares de socialização. A reserva é o fenómeno mental mais geral da metrópole, pois pode conceder ao indivíduo liberdade pessoal e tolerância.


Um círculo social pequeno somente permite aos seus membros um campo limitado para desenvolver determinadas qualidades e movimentos individuais. Assim que uma pequena associação se expande (numérica e espacialmente) a unidade interior enfraquece e a rigidez da demarcação original contra os outros é suavizada através de múltiplas relações e ligações. E o indivíduo ganha liberdade de movimentos e adquire também uma individualidade específica e diferenciada, à qual a divisão do trabalho no grupo alargado dá ocasião. 


Segundo Simmel, quanto maior for o círculo que forma o nosso meio e quanto mais abertas forem as relações com os outros, mais se dissolvem as fronteiras, mais se quebra o círculo que limita realizações, condutas de vida e perspetivas do indivíduo, e mais facilmente se dá uma especialização quantitativa e qualitativa.


A proximidade corporal e a estreiteza do espaço tornam a distância mental, entre indivíduos, muito visível e mais dificilmente suportável. Por isso, a reserva e a indiferença recíprocas sentidas na multidão da metrópole até estimula a independência e a aceitação de cada indivíduo. 


Não é apenas a dimensão alargada da área e o elevado número de pessoas que faz da metrópole o local da liberdade. É também através da transcendência da extensão visível, onde o horizonte de cada indivíduo se expande de acordo com aspetos quantitativos da vida. No pequeno círculo, o indivíduo é reduzido aos limites do seu corpo. Mas, na metrópole o indivíduo não se esgota nos limites do seu corpo ou no espaço da sua atividade imediata. Na metrópole, alcance físico de uma pessoa é antes constituído por uma alargada rede de conexões que se disseminam temporal e espacialmente. 


A liberdade individual, da metrópole, não deve ser entendida apenas no sentido da mera liberdade de mobilidade e da eliminação de preconceitos. O importante é que a particularidade e a incomparabilidade, que cada ser humano possui, se possa também exprimir na elaboração de um modo de vida particular e inconfundível. A grande diversidade de serviços, a enorme concentração de pessoas e a intensa dependência em relação ao outro, obrigam, o indivíduo a especializar-se numa função que é insubstituível. O indivíduo tem assim de afirmar a sua personalidade dentro das dimensões da vida metropolitana - a brevidade e a escassez dos contactos inter-humanos contribuem para que o individuo se possa destacar. 


Na opinião de Simmel, o desenvolvimento da cultura moderna caracteriza-se então pela preponderância do "espírito objetivo" sobre o "espírito subjetivo”. A atrofia da cultura individual através da hipertrofia da cultura objetiva é uma das razões do ódio amargo que os pregadores do individualismo mais extremo nutrem contra a metrópole. Apesar de livre, o indivíduo sente-se igualmente só e perdido na multidão metropolitana. Na metrópole assiste-se igualmente a um retrocesso da cultura do indivíduo no que diz respeito à espiritualidade e ao idealismo. Esta discrepância resulta essencialmente da crescente divisão do trabalho e da crescente importância dada à economia monetária, como já foi atrás referido. O indivíduo é uma pequena peça inserida numa enorme organização de poderes - que lhe retira todo o movimento, toda a espiritualidade e todo o valor, de modo a transformar a sua forma subjetiva numa forma de vida puramente objetiva. 


Por isso, Simmel explica que embora a vida se torne mais fácil para a personalidade se afirmar na medida em que os estímulos, os interesses, o uso do tempo e da consciência lhe são oferecidos por todos os lados, na metrópole a pessoa é transportada como se estivesse numa corrente, sem quase precisar de nadar por si própria. Mas, a vida metropolitana é composta por conteúdos e ofertas impessoais que podem provocar incomparabilidades. Isso faz com que o indivíduo recorra ao máximo à singularidade e à particularização, a fim de se preservar.


A metrópole contribui para a independência individual e para elaboração da própria individualidade mas também é o terreno que ultrapassa toda a vida pessoal. É desta tensão e conflito que vive a metrópole. É função da metrópole proporcionar espaço para esta luta e para esta reconciliação. Pois a metrópole apresenta as condições peculiares que nos são reveladas como oportunidades e estímulos para o desenvolvimento do indivíduo. A metrópole revela-se como um lugar único, que se desenvolve através de correntes opostas, onde a nossa existência fugaz é apenas mais uma pequena célula.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Ma Nuit chez Maud
entre a luz e a escuridão.


“I was concerned above all with exploiting the contrast between black and white, between light and shadow. It’s a film in colour in a way, except that the colours are black and white. There’s a sheet which is white, it's not colourless, it's white in the same way the snow is white, white in the positive way, whereas if I had shot it in colour it wouldn't have been white any more, it would have been smudged, and I wanted it really white.”,  Rohmer, 1971 (Handyside 2013, 8-9)


Os Contos Morais, de Éric Rohmer, é uma série de seis filmes que explora o interesse em descrever o que se passa dentro do pensamento de uma pessoa. A preocupação maior relaciona-se com a narração de estados de espírito, de ideias e de sentimentos. Determinadas emoções, impressões, perceções e sensibilidades são investigadas através de um só ponto de vista - o ponto de vista de um narrador. 


Rohmer explica que esta série de filmes não é o que se espera. O desenrolar da ação destes filmes vai até contra os desejos do próprio narrador e são uma concretização de um conflito. O narrador, omnipresente, cria um mundo para si mesmo, cujo centro é ele próprio. Tudo é perfeitamente lógico, dentro desses princípios em que o narrador é criador e manipulador. Tudo parece muito simples, o narrador é obcecado com uma lógica e toda a sua vida pode ser explicada segundo esse sistema e método por ele construído. 


Em Ma Nuit chez Maud (1969, quarto filme dos Contos Morais) o narrador Jean-Louis vive isolado dentro do tempo e do espaço de Clermont-Ferrand. Ma Nuit chez Maud foi filmado propositadamente a preto e branco, de modo a fornecer uma base e a dar unidade. Segundo Rohmer, a cor não teria acrescentado nada à atmosfera do filme, pelo contrário, poderia até ter introduzido elementos de distorção. Na verdade, Rohmer revela que não havia cores no que foi filmado - as casas da cidade Clermont-Ferrand eram já cinzentas e também não havia cores na igreja. 


“… when the film is in black-and-white you get less of a feeling of the different moments of the day, and there is less of what you might call a tactile impression about it.”, Rohmer, 1971 (Handyside 2013, 10) 


O inverno rigoroso e a neve revelam assim um contraste acentuado entre a luz e a escuridão e determinam a opressão de determinadas ideias e sistemas, num espaço hermético e fechado. Heredero e Santamarina, no livro Éric Rohmer (Cátedra, 1991), escrevem que a neve tem, dentro do filme, um papel fundamental como instrumento de oportunidade e de azar que move as personagens e que propícia encontros e separações: “De hecho, si una nevada es el pretexto para que el ingeniero pase la noche en casa de Maud (la mujer-2), otra nevada le permitirá acompañar a Françoise (la mujer-1) a su domicilio en las afueras de la ciudad.”(Heredero e Santamarina 1991, 140)


Estamos perante um filme espacial. Jean-Louis deseja controlar todos os espaços por onde passa (Rohmer filma a geografia do lugar com precisão e todas as trajetórias são respeitadas). A igreja, a cidade, a neve são elementos impregnados, encerrados e cercados pela perceção do narrador. Jean-Louis persegue Françoise (a rapariga da igreja e da bicicleta) e através do seu ponto de vista apercebemo-nos de que o seu desejo e a sua obsessão é o de controlar o destino de ambos, de modo a assemelhar-se a um acaso - como se de uma graça divina se tratasse. Jean-Louis quer ver sem ser visto, quer ter posse sem se apoderar. O pensamento racional e a coerência interna de Jean-Louis anseiam dominar todos os sentidos e todas as circunstâncias exteriores que o rodeiam. 


Todos os pensamentos, palavras, movimentos e ações de Jean-Louis vêm, deste modo, dessa aspiração de controlo total, desse estado de permanente vigilância e da vontade de ser coerente com os seus princípios. Para evitar a angústia da escolha, Jean-Louis agarra-se a um amor construído. A eleição de Françoise para sua mulher, manifesta por isso a ambição rígida e perseverante, de Jean-Louis, em dominar a direção da sua vida por meio de ideias abstratas - mesmo que isso implique considerar a ideia do acaso apenas para reforçar uma missão moral do destino.


Porém, é, aquilo que está sujeito ao azar, neste caso à meteorologia, que neste filme, funciona como verdadeiro destino, como incontrolável e como indeterminado. Aqui, o imprevisto e o obscuro, tal como em muitos outros filmes de Rohmer, está associado a fenómenos naturais. É por isso, que a casa de Maud está fora da influência premeditada de Jean-Louis. E é precisamente nesses momentos desconhecidos e oferecidos que o narrador entra em conflito consigo próprio e a coerência da sua lógica é derrubada. O final do filme expõe, sobretudo, as fragilidades de um sistema e a desconstrução de uma ilusão.


“Consider the opening shot in which we see Trintignant’s dark silhouette take possession of the landscape by the intensity alone of his gaze (as if he were the reincarnation of Murnau’s great predators, Nosferatu or Mephisto). Or consider all the sequences filmed inside a car, from the point of view of a man who is avidly scouring the city’s streets, seeking - and knowing - someone to devour. At such moments, it is a kind of guilty ambition that Rohmer is staging: the ambition to imprison the real by keeping an eye on all its external signs. The very ambition that he put to work while filming My Night at Maud’s.” (Baecque e Herpe 2014, 232)

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Os subúrbios nos filmes de Eric Rohmer são centrais e não marginais.


“His female characters are fulfilled not in the alienating city centre, where they feel absolutely alone (in exile…), but in the interstices - at the beach (Le Rayon Vert) or in the suburbs (L’Ami de mon Amie).” (Handyside 2009, 217)


No texto “The Margins Don’t Have to Be Marginal: The banlieue in the Films of Éric Rohmer.”, Fiona Handyside explica que, na série Comédias e Provérbios de Eric Rohmer, a periferia pode ser lida como sendo a representação máxima da fluidez da modernidade, da auto-referência, da transição constante e do movimento que não pára. 


Segundo Handyside, Blanche no filme L’Ami de mon Amie nunca encontrará permanência nem solidez em Cergy-Pontoise, porque esta cidade satélite foi pensada, precisamente, para estar ao serviço de uma sociedade que depende constantemente da rapidez, da mudança e do derivar contínuo. Para Handyside, Cergy simboliza, não a cidade utópica ou ideal, mas a cidade real e periférica concebida para uma sociedade pronta a deslocar-se para onde for, sempre que é preciso. 


Porém, Cergy-Pontoise, no filme de Rohmer, é também metáfora para ser lugar de liberdade, de relações temporárias, de emancipação e de tempos livres. Em L’Ami de mon Amie, aparece como sendo um lugar de veraneio para pessoas reais. Rohmer documenta neste filme, as classes trabalhadoras parisienses, a aproveitar as oportunidades de lazer oferecidas por este subúrbio. Handyside explica que a maioria das imagens mediáticas dos subúrbios descrevem lugares horríveis e tristes, por isso não é de estranhar que Blanche se surpreenda ao encontrar famílias inteiras à beira do rio, tal qual como numa pintura de Seurat, a aproveitar o sol e o exterior. 


Para Handyside, aos olhos de Rohmer, Cergy-Pontoise é a verdadeira reunião da cidade e do campo: “Cergy-Pontoise is posited by Rohmer not as a place of absolute difference from the city or the country, but as somewhere that has absorbed and incorporated elements of both.” (Handyside 2009, 218)


Nos filmes de Rohmer a margem é central e a vida no centro pode significar o exílio. Na opinião de Handyside, em vez de ser um grande fracasso social, os subúrbios em Rohmer, são centrais e não marginais ao funcionamento da sociedade, porque são entendidos como uma resposta dos cidadãos ao mundo da modernidade tardia - fragmentado e cheio de identidades e culturas concorrentes e contrastantes. As personagens dos filmes de Rohmer, têm personalidades ambíguas, reflexivas e múltiplas e escolhem viver nos subúrbios (ou melhor fora do centro de Paris) não por necessidade mas por vontade: “Cergy-Pontoise provides its citizens with bright, clean apartments, a variety of leisure activities, well-paid and interesting work, the opportunities to meet people and make friends…” (Handyside 2009, 219)


Deste modo, esta imagem de privilégio paradoxal da margem, representado no cinema de Rohmer, tem uma repercussão e um efeito revigorante nas diferentes experiências e ideias que se tem do espaço urbano e tem, acima de tudo, o poder de deslocar a noção de que apenas no centro da cidade se pode encontrar a felicidade.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  

 

 ‘Conto de Primavera’ e os espaços de transição.


O filme “Conto de Primavera” (Eric Rohmer, 1990) explora o controlo espacial. Jeanne vive dividida entre vários espaços e não suporta viver no apartamento desordenado e escuro do seu namorado ausente. 


A palavra é, neste filme, usada de maneira a dar realidade aos pensamentos e o espaço é usado de maneira a dar realidade ao controlo que se tem sobre a vida.


Ao longo do filme seguimos Jeanne durante o seu tempo vazio e em deslocação permanente. Ao não ter qualquer controlo sobre o espaço que habita - durante todo o filme Jeanne fica a dormir em casa de Natacha - abrem-se fendas na sua vida. Jeanne durante estes momentos de plena disponibilidade coloca-se no meio, em espaços de transição, em lugares que estão entre a realidade e a imaginação, entre a palavra e o pensamento, entre o contido e o aberto.


No texto ‘Rohmer’s Poetics of Placelessness’, Leah Anderst afirma que portas, escadas, ruas e corredores são os elementos espaciais que mais aparecem no filme. A insistência contínua em espaços de transição têm o efeito de destacar a ausência de lugar mas também revelam uma ambivalência e uma incerteza profunda, não reconhecida por Jeanne.  


No livro ‘Éric Rohmer’ de Carlos F. Herdeiro e Antonio Santamarina lê-se que o filme gira à volta de um conceito pedagógico que tenta encontrar um sentido e uma ordem para as ações e para as coisas. 


Jeanne é a fonte de equilíbrio para a Natacha. Mas, Natacha para Jeanne representa a liberdade de uma realidade fabulada.


Jeanne envolve-se na história irreal de Natacha de modo a tentar escapar ao seu ordenado universo quotidiano (que nunca chegamos a ver). A trajetória de Natacha começa numa bruma espessa e confusa e termina com a conquista de um equilíbrio e uma ordem. Jeanne caminha no sentido inverso, da ordem para a desordem. 


Durante todo o filme Jeanne não tem espaço próprio. Apesar de ter a chave de duas casas, Jeanne não tem para onde ir. Na opinião de Herdeiro e Santamarina a história desenvolve-se dentro de um parêntesis (imaginado, não controlado), entre o prólogo e o epílogo (que são iguais, até com a mesma música). A realidade inventada de Natacha é uma viagem ao incontrolável. Os falsos factos de Natacha são produto de uma interpretação que põe em causa qualquer tipo de categorização (até espacial) e fazem Jeanne duvidar de tudo e de si própria. O ‘Conto de Primavera’ é assim um filme que explora a fragilidade de qualquer tentativa de ordenação e de controlo de um espaço. E ao recorrer a espaços de transição, Rohmer faz aparecer o lado oposto, incerto e ambíguo de Jeanne que parece tão decidida nas suas procuras e decisões.

 

Ana Ruepp