PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO
XXII. ESCÁRNIO E MALDIZER
Cantigas de Amigo e cantigas de Amor representam a dimensão lírica da influência trovadoresca. Assim nasceu a língua portuguesa, filha do galaico português, como idioma de poetas. Mas para compreender as raízes da nossa cultura, temos de entender também o escárnio e maldizer. Longe de qualquer tentação de sobrevalorizar o picaresco, a verdade é que a ironia e o humor fazem parte das características próprias do português.
Reparem bem, se há um novo episódio da vida nacional, eis que surge uma anedota, se há uma nova personagem que sobressai, então aparece uma alcunha, uma piada. Não nos damos bem com a sisudez, mesmo que aparentemos conformarmos com ela. E há mesmo casos em que o escárnio ocupa um espaço indevidamente excessivo – como acontece com Bocage, um dos nossos grandes poetas, símbolo rico da literatura pré-romântica e que para o vulgo se confunde com um conjunto de falsos episódios que alimentam a ignorância cultural.
Por outro lado, o nosso Mestre Gil não aparece plenamente, como deveria, na sua dimensão plural e riquíssima da simbologia do maldizer, com sentido pedagógico e extremamente rico. Neste folhetim, poisamos no Nobiliário de D. Pedro – e damos neste capítulo um bom exemplo em que se reúne a gastronomia e o anedotário. O autor é Joham de Gaia, falecido em 1330, “boo trobador e mui saboroso” no dizer do Conde D. Pedro.
Eis o verso:
O tema desta cantiga é a trajetória de um cavaleiro que circula de serviço em serviço de um senhor com certa presteza e grande oportunismo, graças às divergências entre facções que disputam o poder. A cantiga era seguida de uma bailada dedicada a um Bispo de Viseu, originário de Aragão, que tinha o rosto arroxeado. Cuida-se que os alhos verdes suscitavam a vontade de beber. E anote-se que berengenha era beringela; trei-nos significa vamos e treide, vinde; çofeimos é arroxeados; mórec é o moluco donde se extrai a púrpura; cárdeo é violáceo e apoiam-lho, quer dizer, acusam-no…
Perante um texto do século XIV, encontramos uma proximidade notável em termos vocabulares com a língua portuguesa moderna. Tal deve-se ao facto de em pleno século XIII a língua vulgar ter sido adotada como língua oficial e comum. Lembrando-nos de Rosalia de Castro, facilmente percebemos que é a castelhanização do espanhol do século XX que afastou o galego do português. Mas quando nos reportamos à relação cultural na raia de Entre Douro e Minho ou quando percebemos que o mirandês á a melhor recordação do asturo-leonês, compreendemos que o galego moderno apenas tem a ganhar em contacto com o português como língua de várias línguas com projeção global.
Agostinho de Morais
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