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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
ANTIGAMENTE, A ESCOLA (II) 


1. A minha última crónica acabou algo abruptamente. A verdade é que não expliquei as razões que me levaram ao reitor do Camões. Prometi, logo a abrir, que o faria "mais adiante". Mas ia tão lançado que, quando cheguei ao tal "adiante", já não tinha tempo e, sobretudo, já não tinha espaço. É o mal (ou o bem) das "conversas fiadas". Já experimentaram, no fim de uma noite delas, recapitular o percurso, contando os atalhos, os desvios e as encruzilhadas? Se fosse só misturar alhos com bugalhos, ainda nos podíamos agarrar às rimas, mesmo que nos tivéssemos agarrado onde não devíamos. Mas as livres associações são muito mais subtis, como sabemos desde os tempos do Dr. Freud, do jogo dos cinco cantinhos e dos "cadáveres esquisitos". Se há quem seja perito em levar a água ao seu moinho, a maior parte já perdeu o moinho, quando a água lá chegou. E só não continuo para não me acontecer segunda vez a mesma coisa. À primeira qualquer cai, à segunda cai quem quer.


2.
 A verdade é que a nascente que me levou ao reitor, ao Camões e aos meus 16 anos foi um excelente artigo de M. Fátima Bonifácio, chamado "Mais dinheiro para a educação?" (PÚBLICO, 15 de Agosto de 2004). A autora é das que não se deixam levar pelas ondas das paixões dos engenheiros Guterres e Sócrates. Como ela bem disse: "Reformas e dinheiro, de nada serviram." Tem carradas de razão. Mas houve uma confissão que me deixou pensativo. É quando ela, recordando os 25 anos que leva de professora de História numa universidade de Lisboa, afirma: "Convenci-me ultimamente de que o panorama não melhoraria significativamente nem que os programas e os professores fossem todos excelentes." Fiquei a matutar na convicção recente de M. Fátima Bonifácio. Terá ela razão ao dizer que professores "todos excelentes" e bons programas não fariam bulir nem uma folha no "panorama"? Comecei a pensar no meu caso, quer como aluno, quer como professor. E assim me lembrei de um professor (reitor até, no caso) que mudou, plausivelmente, o curso da minha vida. Fátima Bonifácio dir-me-á (ou dir-me-ia) que faço batota. A história que eu contei passou-se há mais de cinquenta anos e na escola do antigamente. É incomparável. Ela própria sublinha que "em tempos tive alunos que são hoje meus colegas e académicos brilhantes. Essa raça desapareceu". Tanto eu como ela - ela muito mais nova - faríamos parte de uma raça em vias de extinção. Provavelmente é mais lúcida do que eu e, além disso, é professora, coisa que eu deixei de ser há muitos anos. Mas, mesmo descontando a história do meu reitor (e dos meus tempos), continuei cogitativo.


3.
 Fátima Bonifácio não traça qualquer panorama idílico da escola de outras eras e tenho boas razões para pensar que não é essa a visão dela. Mas, quando tanto se fala em professores de vinho e rosas, eu comecei a fazer as minhas contas e, ao longo dos meus oito anos de liceu (o que então se chamava ensino secundário), não contei mais do que seis professores a cuja memória me abrigue. Nomes? Venham eles: Maria Manuel Barroso, que foi minha professora de Português do 1º ao 3º ano e me ajudou a saber ler e escrever, além de, involuntariamente, me ter ajudado a saber que os bebés não vinham de Paris (não fui nada precoce nessa matéria); Oliveira Simões, que foi meu professor de Ciências Naturais nos 3º e 4º anos e que, além do quartzo, feldspato e diamante, me ensinou a não descer as escadas com as mãos nos bolsos; Carlos Miguel, que foi meu professor de História no 4º ano e me levou da Batalha de Hastings à Invencível Armada, com crescente fervor; Alberto Beirão, que foi meu professor de Matemática no primeiro 5º ano e, apesar da minha confrangedora ignorância na matéria, me fez pensar em mais do que na morte da bezerra nas aulas dele; Amália Borges, que no mesmo 5º ano me revelou que eu tinha sangue francês nas veias, aproveitando-o para me pôr a falar e a ler a única língua estrangeira em que me exprimo à vontade; Gaspar Machado que, nos 6º e 7º anos, em Literatura Portuguesa, me revelou Fernão Lopes e Bernardim, e me levou de "O céu, a terra, o vento sossegado" ao tempo em que "caem co'a calma as aves". Estes são os senhores e as senhoras em que os olhos ponho, quando "me desponho /e me quero afirmar se foi assi". O resto, mais ou menos ignorante, foi de fugir ou serviu para amenas cavaqueiras que, nos melhores casos, disfarçavam a pouca pachorra que tinham para preparar qualquer aula. Na universidade, estive três meses em Direito. Confirmo a merecida reputação de Marcello Caetano, mas dos outros nada recordo. Arrepiei caminho e passei para Letras (Ciências Histórico-Filosóficas, assim se chamavam então). Delfim Santos, Vieira de Almeida, Mário Chicó, Virgínia Rau, são nomes a escrever com letra grande e "happy few" devem imenso a Ribeiro Soares, quando ele e esses "few" partilhavam gostos singulares. Mas dos outros (estava-me a esquecer e não devia de Ferreira de Almeida), sobretudo no que tocava à Filosofia, quem não saiba é melhor nunca ter experimentado. Era nossa convicção (nossa, dos alunos) que deviam a cátedra ao estado disto, pois que a qualquer sabedoria ou inteligência não a deviam certamente. O saudosismo atual é muita bondade nossa, ou muito má memória. Embora seja verdade que, na mesma Faculdade e nos mesmos anos, coexistiram com Nemésio e Lindley Cintra, com Orlando Ribeiro e com o Padre Manuel Antunes, que, infelizmente, não foram meus professores. O caso do prof. Francisco Vieira de Almeida é bem paradigmático. Regia a cadeira de Lógica. Para ele, esta ou era lógica matemática ou era uma batata (ou uma batota). Perante alunos que, em 99 por cento dos casos, tinham ido para Letras por horror à matemática, de que ignoravam os mais rudimentares elementos (nessas aulas, a situação não era muito diferente da descrita por Maria de Fátima Bonifácio), que fazia ele? Não perorava sobre Lógica, mas conversava brilhantemente sobre os mais diversos assuntos. Quem se interessasse em segui-lo, não ficava a saber de matemática, mas descobria como era "ilógico" o mundo em que se movia e as coisas que se aprendiam. A gramática era, logicamente, um dos seus terrenos de eleição. Jamais esquecerei a história do rapazinho de 10 anos, convidado a dividir orações num texto que começava assim: "Rui e o irmão entraram para o velho calhambeque do pai." O miúdo obedeceu: "Raul e o irmão entraram para o velho calhambé", primeira oração. "O quê?", berrou a atónita professora. "Nunca se passa por cima dum 'que'", papagueou o miúdo, ufano. "Ah, meus senhores", exclamava deliciado Vieira de Almeida, "se eu fosse examinador, o rapaz tinha logo 20." Vieira de Almeida, ele, pelo menos quando lhe fui aluno, não dava mais do que 11 nem menos do que 10, fora casos excecionalíssimos. Chumbar não valia para nada, 11 lá ajudava a perpetuar calhambeques.


4.
 Da minha experiência como professor, que durou cinco anos, entre 1959 e 1964 (experiências posteriores, como professor universitário arregimentado, não me servem, porque foram pescatos de ocasião em que eu me meti, para mal dos meus pecados, a 10 por cento), não me ficou ideia muito diferente sobre o nível geral dos então meus colegas. É certo que os havia excecionais (do Camões, recordo eu Mário Dionísio, Vergílio Ferreira, Marina Pestana), mas os alciões não fazem verões, nem primaveras. Frio, frio, era o que havia á minha volta. Só que estes raros exemplos me convenceram (como outros que doutra maneira me ensinaram) que, se todos os professores fossem como eles, a paixão dos engenheiros teria razões de ser. Posso ser muito parcial mas acredito que, se a formação de professores (tema dominante do pensamento de homens como, por exemplo, Delfim Santos) tivesse sido levada a sério e feita a sério, não se tinha chegado onde se chegou. Poesia? Preconceito? É bem possível e não vim aqui polemizar, caso em que esta crónica seria bem fruste. É que mesmo nas tais esporádicas "experiências" recentes (anos 90) eu nunca vi, diante de mim, as tais "máscaras de apatia". Ignorância, sim, imensa, acompanhada, em gerações mais recentes, pela arrogante ignorância dessa própria ignorância, o que é a mais explosiva mistura que imaginar se possa. Mas a apatia pode ser vencida e, daí ao resto, há um passo possível. George Steiner contou, algures, o que lhe aconteceu numa universidade americana, onde deu um curso de Literatura Comparada no férvido ano de 68. Os colegas explicaram-lhe o que se estava a passar e tentaram dissuadi-lo. Primeira aula e um barulho dos diabos, com os mimos da moda. Steiner conseguiu o silêncio suficiente para que eles o ouvissem dizer isto: "Eu estou aqui para vos ensinar algo de que vocês não sabem nada e de que eu sei tudo. Proponho-me inverter a proposição a vosso favor." A acreditar nele, nunca curso nenhum lhe correu tão bem. Mas, como é evidente, o milagre só aconteceu porque ele sabia mesmo tudo e não estava a viciar o jogo. Se não soubesse, jamais o conseguiria. Como o não conseguiria se se pusesse a trabalhar "em grupos", a adular os néscios ou a fingir que eram eles quem o devia ensinar.


5.
 Aqui há uns anos, esteve em Portugal o prof. Mel Ainscow, da Universidade de Manchester, para cheirar um bocadinho dos perfumes reinantes. Para lá de muitas outras, duas coisas o deixaram particularmente estupefacto: que as escolas ou os liceus não tivessem "um" diretor ou "um" reitor ("um" responsável em suma) e que o corpo docente andasse numa jigajoga, escola aqui, escola acolá, sem se fixar num único estabelecimento. Como se sabe, foi "conquista de Abril" acabar com os reitores e substituí-los por um órgão colegial eleito "interpares", em que os eleitos são obviamente quem mais facilita a vida aos eleitores. Todos se protegem mutuamente. Também foi "conquista de Abril" a "rotatividade" do corpo docente. Nunca nenhum ministro, nunca nenhum responsável, reparou nisto? É evidente que reparou. Mas não parou. Porque, se o fizesse, teria contra ele o omnipotente Sindicato dos Professores, com recurso fácil à arma suprema, chamada greve. Não há nada que os pais mais temam, e as autoridades também, que meninos à solta e sem o merecido descanso das aulas. De modo que nos santinhos (os professores) não se toca nem com uma flor. Ou tocam os alunos, mas isso até ajuda a tornar as aulas mais "participativas". Foi assim, e com os programas escritos em "pretoguês", aprendidos em "estruturalês" e em "linguês" que se chegou até ao que Maria de Fátima Bonifácio descreve. E vai ser pior, muito pior. É só esperar mais uns aninhos, gastar muito mais dinheiro, fazer muitas mais reformas, ter muitas mais paixões, e esperar que Maria de Fátima Bonifácio e a geração dela passem também e sejam substituídas pelos alunos delas. "Encore un effort..."

 

João Bénard da Costa
27 de agosto 2004, in Público

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
ANTIGAMENTE, A ESCOLA (I)


1 - Não, antigamente a escola não era risonha e franca, como no pré-histórico poema ("O Estudante Alsaciano") que, em versão portuguesa, aprendi com a minha Avó e galhardamente recitava - ao que me contaram - empoleirado num banco do Jardim da Estrela, para pasmo dos basbaques e vergonha da minha Mãe, que me surpreendeu, aos cinco anos, em tais preparos. Nessa altura, ainda nem sequer sabia o que escola fosse. Quando soube, talvez usasse muitos adjetivos, mas não seguramente os que a associam ao riso e à franqueza. Mas descansem que não venho para ajustar contas nem para louvar o ensino de outras eras. Também não venho para execuções sumárias. Apenas me lembrei, por razões que mais adiante explicarei, que nunca disse de minha justiça sobre um personagem muito maltratado. Refiro-me ao dr. Sérvulo Correia, reitor do Liceu Camões entre o ano letivo de 1950-51 e o de 74-75, a que não resistiu.


2 -
 1950-51. Eu tinha de 15 para 16 anos e repetia a secção de ciências do 5º ano do liceu (atual 9º). Nesses tempos, até ao dito 5º ano (do 3º ao 5º, leiam do 7º ao 9º, e não vou prosseguir com atualizações), segundo a reforma de 1947 do ministro Pires de Lima (uma entre tantas), havia nove disciplinas, arrumadas entre letras e ciências. Letras: Português, Francês, Inglês e História. Ciências: Geografia, Ciências Naturais, Físico-Químicas, Matemática e Desenho. Se eu era bom aluno em letras, e por isso passei o exame do 5º ano com uma perna às costas e um 19 a História, péssimo era em ciências, sobretudo em Matemática e Desenho. Por isso chumbei e por isso fui condenado a repetir as cinco disciplinas das tais ciências. Foi um ano negro, sem sombra de dúvida o ano mais negro da minha existência. Tinha grandes "buracos" nos horários (as horas em que os não-repetentes aprendiam letras) e vagueava entre casa e o liceu para repisar "matérias" que odiava. Lágrimas e suspiros? Pouco mais ou menos e não exagero muito. Se a palavra auto-estima já tivesse sido inventada, a minha andava muito por baixo, o que aos 16 anos não se recomenda. O pior de tudo era o Desenho. Por dislexia congénita ou adquirida (havia a tese da fatalidade e a tese da preguiça ronhosa), eu nunca fui capaz de fazer um traço direito ou uma curva torta. Felizmente, os professores que tive do 1º ao 5º ano (o santo Mendes Costa e a beatíssima Maria Marinho, que, segundo as minhas contas, ainda é capaz de estar viva) sustentavam mais a tese do "coitadinho" do que a do "fiteiro" (tese paterna) e foram-me "passando", como nessa altura se dizia, mesmo se os meus "desenhos geométricos" se pareciam com bilhas "desenhadas à vista" e as bilhas com "geometria no espaço", não desfazendo na geometria e muito menos no espaço. 

Tive a sorte (graças à citada reforma) de escapar ao exame do 3º ano, que, quando lá cheguei, retroativou para o 2º. Mas do exame do 5º não escapei. Como já disse, não escapei mesmo. Foi nesse ano, escolarmente bissexto, que Sérvulo Correia foi nomeado reitor do Camões. Vinha precedido pela fama de "animal feroz" (como diria o eng.º Sócrates) e não a deixou por mãos alheias. O liceu, habituado às cãs brancas e à bonomia de um simpático velhinho coxo, mudou do dia para a noite. Professores e alunos tremiam à passagem daquela cabeça, que, devido a uma acentuada dolicocefalia, logo lhe valeu o cognome de "cabeça de martelo". Eu tinha outras razões para tremer e, como ia pouco ao liceu, não me achei envolvido nas histórias dickensianas que se contavam. Lá chegou a altura (ah, quando eu contar esse Verão de 51!) de fazer o segundo exame do 5º ano. Prova escrita, que dava direito a dispensar da oral, em caso de média de 16, e dava direito ao chumbo, se a média fosse inferior a 8,5. No ano anterior, ainda tinha chegado à oral. À segunda vez, nem isso. Uns dezitos e uns novezitos em quatro disciplinas não "taparam" o 2,8 (dois vírgula oito) em Desenho. Poupo-vos à descrição do meu estado de alma diante daquela pauta, em que a seguir ao meu nome estava encarnadamente escrito: "Reprovado". A simples ideia de imaginar (isso mesmo: "ideia de imaginar") que, no ano seguinte, tudo se passaria pela terceira vez punha-me a alma e o corpo em rebuçados desfeitos. À minha volta, colegas manifestavam-me a tradicional comiseração lusa: "Coitado do Bénard"; "Chumbou outra vez por causa do Desenho"; "Ele não tem culpa". Por aquelas horas, passou por ali o tal São Mendes Costa. Ao ver-me em tal estado, quis saber a razão. Logo lha disseram. Passaram mais horas (eu não me atrevia a voltar para casa e a enfrentar a família). Apareceu um contínuo, que, a mando do Senhor Reitor, me disse para ir ao gabinete dele. Lá fui, tão fora de esperar bem. Recebeu-me secamente e ordenou: "Vai para casa e diz ao teu pai que venha cá falar comigo." O meu Pai, engripado e de cama, não foi. Pediu à minha Mãe para o fazer. Quando voltámos, o Senhor Reitor recebeu-nos logo. Não mandou sentar a Mãe. De pé, disse-lhe: "O professor de Desenho do seu filho informou-me da nota dele e da reprovação. Se ele é inapto, o encarregado de educação devia ter pedido dispensa dessa disciplina, como está previsto na lei. Agora, tudo é mais difícil. Mas ainda se pode tentar. O marido de V. Exa. deverá fazer um requerimento ao Senhor Ministro da Educação, solicitando a anulação da prova, o que lhe permitirá ter acesso ao exame oral. Não prometo nada - a decisão não me compete -, mas a informação que darei, com base no que o professor de Desenho me transmitiu, será favorável." 
Transmitida a mensagem, o meu Pai mostrou-se muito cético. Mas o prazo para recurso era curto e tentou. Fui levado a várias consultas médicas, onde ouvi o meu Pai fazer dele a tese do "coitadinho" (muito me espantou essa conversão, mas o amor de pai obriga a muito) enquanto eu me sumia pelo chão abaixo a cada novo exame, teórico e prático. Fez-se o requerimento. Na dúvida do despacho, uma prima minha, bastante mais velha e que cursava Económico-Financeiras, deu-me explicações intensivas de Físico-Químicas e Matemática, num Julho ardente e inquietíssimo. Um belo dia, chegou a notícia. O ministro deferira o requerimento. Já em Agosto, "fui à oral". O mês de férias, que a minha prima sacrificou a cultivar-me minimamente em matérias em que eu era ignaro, fez o resto do milagre, bendita seja ela! Fui aprovado com 10 valores e deficiência a Matemática, o que era irrelevante para quem, obviamente, se destinava às letras. Dois anos depois, concluí o Liceu (no Pedro Nunes) com média final de 18.


3 -
 Na altura, abençoei o Prof. Mendes Costa, o Ministro e a Prima. Tinha toda a razão. Mas esqueci-me de abençoar o Reitor. Só alguns anos depois (quando eu próprio vivi, do outro lado, a época dos exames e o trabalho imenso que ela implicava para os examinadores) me dei conta do que o gesto dele teve de extraordinário. Em vez de juntar mais uma reprovação às estatísticas, com um aluno que nem sequer era aluno dele e que ele nem sequer conhecia, arrancou-me à autocomiseração e às lágrimas quentes, acionou os mecanismos legais que tanto os meus Pais como eu desconhecíamos, venceu o ceticismo paterno e anulou os efeitos devastadores de uma segunda reprovação consecutiva num adolescente em crise. Tivesse ele sido indiferente (como era legítimo e normal que fosse) e talvez o meu futuro fosse bem diferente. Tive ocasião de lho dizer. Dez anos depois desse trágico 51, voltei ao Camões, como professor de História, Filosofia e Organização Política e Administrativa da Nação. Professor eventual, ou seja, fora do quadro. Ensinei nessa qualidade três anos letivos. Poucos meses depois de começar, dava uma aula de História e estava virado de costas para a porta aberta, ouvi um silêncio pesadíssimo e vi os alunos todos a levantar-se como se um alfinete lhes picasse o rabo. Entrara o Senhor Reitor. Não disse nem bons dias nem boas tardes. Avançou para a "minha" secretária, sentou-se, mandou sentar os alunos e disse-me: "Sr. Dr., faça favor de continuar a dar a aula." Eu continuei. Lembro-me que era sobre as origens do cristianismo (3º ano, pois). Quando tocou a sineta, mandou sair os alunos e disse-me para ficar. Não falarei de piropos, que é uma palavra que vai mal com ele. Mas raras vezes ouvi elogios tão expressivos. Daí para diante, tomou-me sob a sua proteção. Um dia, levou mesmo a afetividade mais longe e justificou a sua imagem. Não tinha - disse-me - qualquer prazer em fazer de "papão do liceu", mas entendia que aquele era o único modo de lidar com rapazes que os pais, na sua maioria, não seguiam e com professores genericamente incompetentes. Discuti com ele abertamente e ele ouviu-me com atenção. Lembro-me que acentuou duas vezes a expressão "formar os melhores". Num desses anos, propus-lhe dar, em regime aberto, depois do horário normal, um curso de iniciação ao cinema, já nessa altura paixão minha. Não suponho que fosse cinéfilo ou sequer que fosse ao cinema. Mas sem hesitação me autorizou e seguiu, interessadíssimo, os resultados. Doutra vez, pôs-me uma reserva: nas minhas aulas, tinha notado pouca participação dos alunos. Vinda de quem vinha, a observação espantou-me. Disse-lhe que era o meu estilo e que, além disso, na presença dele, o acentuava, pois que os ditos ficavam manifestamente muito pouco à vontade. Pareceu-me perceber, embora me notasse que, com a minha idade (eu tinha vinte e tal anos), devia estar mais aberto à "pedagogia moderna". 

Em 1964, resolvi trocar o liceu por outra oferta de emprego, aparentemente mais tentadora. Falei com ele e só me encorajou. "Com as condições do ensino de hoje, uma pessoa como o Sr. Dr. deve seguir outros caminhos." Já fora do liceu, tive ocasião de lhe escrever uma carta a contar a história do exame do 5º ano, que ele evidentemente esquecera. Respondeu-me emocionado: "A sua carta chegou num momento muito difícil da minha vida e foi um bálsamo." Um ano depois, estava de novo a bater-lhe à porta. Muito mais aberto à "pedagogia moderna" (hoje, acho que escancaradamente aberto), propunha-lhe voltar para fazer experiências de pedagogia não-diretiva, à Rogers. Acreditem ou não, disse-me logo que sim. Só que nesse ano a PIDE mudou as regras para a admissão de eventuais. Até aí - o que me valera -, os contratos destes, contratos a prazo e sem garantia de quaisquer direitos, não iam ao visto prévio da polícia política. Nesse ano, passaram a ir. A informação era fortemente negativa. Chamou-me, comunicou-mo e disse-me que iria ele próprio à PIDE, para os tentar demover. Aí falhou. A experiência não-diretiva vim a fazê-la no Colégio Moderno do Dr. Mário Soares. Deus escreve direito por linhas tortas.


4 -
 Nunca mais o vi. Mas, de cada vez que leio, em memórias de ex-alunos dos anos 50, 60 e 70, o retrato de Sérvulo Correia como arquétipo do reitor policial ou do reitor fascista, que transformou o Camões numa prisão, penso no dever de contar esta história. Chegou a altura. Por "razões que mais adiante explicarei"? Sem mais espaço, ficam para a próxima crónica. Se nunca aprendi a ser "não-diretivo", também nunca aprendi a ser sintético.

 

João Bénard da Costa
20 de agosto 2004 in Público

A EUROPA E A ESCOLA


Os programas e os currículos escolares não podem ser confundidos com árvores de Natal, onde há sempre lugar para um novo elemento, tema ou matéria julgados de interesse. Importa seguir as reflexões antigas de grandes pedagogos, segundo as quais há a respeitar um núcleo fundamental, claro e limitado de objetivos e matérias, já que como disse Montaigne é preciso privilegiar uma cabeça bem feita, em lugar de uma cabeça bem cheia. Compreende-se a tentação de sermos mais abrangentes, mas é indispensável que uma escola seja um lugar de partilha de saberes e responsabilidades, de modo a abrir horizontes, mais do que criar um gabinete de curiosidades de cultura geral. John Dewey ou António Sérgio ensinaram-nos, por isso, a colocar a tónica no exemplo e na experiência. A escola não existe para a vida futura, mas para garantir desde já uma cidadania inclusiva, envolvendo todos. Participei em Paris numa reflexão sobre a Europa e a escola, a propósito da atribuição do prémio do livro do ano para melhor compreender a Europa a Caroline de Gruyter, dos Países Baixos, autora da obra Monde d’hier, monde de demain, un voyage à travers l’empire des Habsburg et l’Union Européenne (Actes Sud, 2022), com o apoio do Instituto Jacques Delors – “Notre Europe”. A experiência de um império de diversas línguas, povos, nações, religiões e territórios, a ponto de o lema dos Habsburgos ser Austriae Est Imperare Orbe Universo, AEIOU, constitui hoje uma lição histórica para prevenir vicissitudes e riscos de uma realidade muito complexa. De facto, a experiência europeia deve ser lida à luz não de uma lógica formal ou utópica, mas de instituições mediadoras capazes de criar soluções duradouras de paz, desenvolvimento e sustentabilidade. Mas, como foi afirmado no debate, a consciência europeia não se constrói pelo estudo abstrato e meramente formal das instituições comunitárias, mas pela mobilização dos jovens cidadãos em iniciativas concretas.


Recordo o facto de no Ano Europeu do Património Cultural (2018) ter sido possível envolver as redes de bibliotecas e centros de recursos escolares em iniciativas que permitiram a cada escola a escolha não só de um exemplo do património local, material ou imaterial, um monumento ou uma tradição, mas também de uma referência de outro Estado. Deste modo, o diálogo entre diferentes escolas e situações permitiu uma partilha, na qual cada comunidade poderia não só conhecer-se melhor, mas também conhecer as experiências dos outros. E assim o património cultural permitiu realizar experiências concretas de cidadania ativa, juntando a um tempo exemplos, princípios e valores. Ao invés da lógica nacional, fechada sobre si, pôde ganhar-se com o aprofundamento da identidade e das diferenças. E a defesa do património cultural, abriu pistas para a memória, o meio ambiente e o conhecimento da evolução da história e da cultura, no entendimento de que a paz exige a consideração da conflitualidade e da respetiva regulação.


O desenvolvimento humano obriga, assim, a garantir uma cidadania inclusiva, que fundamente a “republica escolar”, baseada na liberdade, na igualdade e na responsabilidade, em que haja participação e subsidiariedade, que reconheça as diferenças, o papel do outro e aproxime a realização do bem comum respeitante às pessoas concretas e à sociedade civil. Num cenário com duas guerras às portas do nosso continente, temos de desenvolver os fatores de coesão e de confiança, precisamos dos outros, procurando consensos duráveis. Como Jacques Delors afirmou no relatório sobre o futuro da educação, que coordenou para a UNESCO, é indispensável respeitar quatro pilares nesse tesouro escondido que é a aprendizagem: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver com os outros e aprender a ser. A Europa na escola, como a cidadania, não podem ser, assim, referências teóricas, têm de ser fatores de compreensão e de ação.


GOM

AS RELIGIÕES NA ESCOLA

  


Quantos cristãos saberão que, se Adão e Eva fossem figuras reais e nossos contemporâneos, precisariam, para viajar para o estrangeiro, de um passaporte iraquiano? Quantos se lembram de que  Abraão, que está na base das três religiões monoteístas -- judaísmo, cristianismo, islão --, possuiria igualmente nacionalidade iraquiana? Quantos se lembram de que os primeiros capítulos do Génesis, referentes ao mito da criação e da queda, se passam na Mesopotâmia, onde mergulham algumas das nossas raízes culturais? As religiões estão sempre presentes. Mas quem tem delas um conhecimento mínimo? Qual é a relação entre religião e violência, religião e política, religião e desenvolvimento económico, religião e saúde?


O grande Umberto Eco, agnóstico, lamentava-se: “Nas escolas italianas, Homero é obrigatório, César é obrigatório, Pitágoras é obrigatório, só Deus é facultativo. Se o ensino religioso se identificar com o do catecismo católico, no espírito da Constituição italiana deve ser facultativo. Só lamento que não exista um ensino da história das religiões. Um jovem termina os seus estudos e sabe quem era Poséidon e Vulcano, mas tem ideias confusas acerca do Espírito Santo, pensando que Maomé é o deus dos muçulmanos e que os quacres são personagens de Walt Disney...”


Ernst Bloch, o filósofo marxista heterodoxo e ateu religioso, com quem tive o privilégio de conversar, sublinhou que o desconhecimento da Bíblia constitui uma “situação insustentável”, pois produz “bárbaros”, que, por exemplo, perante a “Paixão segundo São Mateus”, de Bach, ficam como bois a olhar para palácios. 


É um facto que não é possível ensinar literatura, história, filosofia, artes, sem uma cultura religiosa mínima. Por outro lado, vivemos num mundo cada vez mais multicultural e multireligioso e, sem paz entre as religiões, não haverá paz no mundo. A paz exige o diálogo inter-religioso, mas o diálogo pressupõe o conhecimento das religiões, como acentuava o teólogo Hans Küng.


Neste contexto, em 2002, a pedido do ministro francês da Educação Nacional, o filósofo agnóstico Régis Debray apresentou o Relatório sobre  “O ensino do facto religioso na escola laica”. O ministro Jack Lang escreveu no Prefácio: se “a escola autêntica e serenamente laica deve dar acesso à compreensão do mundo”, as religiões enquanto “factos de civilização” e “elementos marcantes e, em larga medida, estruturantes da história da humanidade” têm de estar presentes, e os professores, sem privilegiarem esta ou aquela opção espiritual, devem dar o justo lugar ao seu conhecimento nas várias disciplinas escolares. Uma melhor formação dos professores em ordem a poderem tratar serenamente o facto religoso é uma necessidade.


Há o perigo da incultura religiosa que faz com que, perante uma Virgem de Boticelli, qualquer dia um jovem pergunte: “Quem é a gaja?”” De qualquer forma, Régis Debray sublinha que “a história das religiões não é a recolha das lembranças da infância da Humanidade”. Não há ninguém que não se confronte com a pergunta: Qual é o fundamento e o sentido último de tudo? E esta pergunta abre inevitavelmente à questão religiosa. Mesmo se as religiões não têm o monopólio do sentido, integram o universo simbólico, como o direito, a moral, a história da arte ou o mito, sendo dever da escola aprofundar a sua inteligência reflexiva e crítica. Este esforço impõe-se tanto mais quanto o paradigma da economia, da gestão e das novas tecnologias não pode constituir “o horizonte único e último”. É preciso reconhecer também que relegar o facto religioso para fora dos circuitos da transmissão racional, portanto, escolar, não é o melhor remédio para enfrentar “a vaga esotérica e irracionalista” bem como o fundamentalismo. Como recentemente sublinhou o Papa Francisco, “a educação é essencial para superar fundamentalismos.”


Uma vez que se trata da escola laica, deve tornar-se claro que “o ensino do religioso não é um ensino religioso”. Por outras palavras, não se pode confundir informação histórica e crítica com catequese. Aqui, não se faz catecismo, pois o objectivo é uma “aproximação  descritiva, factual e nocional das religiões em presença, na sua pluralidade, sem privilegiar nenhuma”. De qualquer forma, a perspectiva “objectivante” não colide com a perspectiva “confessante”, desde que as duas possam “existir e prosperar simultaneamente”. São duas ópticas não concorrentes: a da fé e a da cultura.


É a laicidade que torna possível a coexistência das várias opções espirituais. Mas “a faculdade de aceder à globalidade da experiência humana, inerente a todos os indivíduos dotados de razão, implica a luta contra o analfabetismo religioso e o estudo dos sistemas de crenças existentes”, sendo preciso passar de “uma laicidade de incompetência” – a religião não nos diria respeito – a uma “laicidade de inteligência” – é nosso dever compreendê-la.


O princípio a manter no ensino do facto religioso na escola pública foi formulado pelo filósofo Hegel: não se trata de tornar os crentes descrentes nem os descrentes crentes, mas contribuir para que todos se tornem lúcidos.


Neste quadro, não pode deixar de ser veementemente saudada a criação da Academia para o Encontro de Culturas e Religiões da Universidade de Coimbra (APECER-UC), com o objectivo fundamental da promoção do “diálogo cultural e inter-religioso”, dentro da missão da Universidade, que é formar pessoas integrais para um mundo bom, justo, na paz.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 8 de outubro de 2022

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

Sala de aula a preto e branco de outros tempos.jpg

 

   84.  CASTIGO ESCOLAR (I)LÍCITO

 

Anteriormente ao 25 de abril de 1974, era usual a escola primária ser um local de terror, com uma percentagem considerável de professores que tinham métodos ditatoriais, desumanos, cruéis e com requintes de malvadez.

Parte significativa da geração escolar de então tem uma memória da escola básica como uma instituição de horror, onde o medo, pavor e pânico reinavam. Réguas e reguadas nas mãos e nádegas, bater com canas na cabeça e ombros, puxões de orelhas, bofetadas, imobilizações penosas, eram castigos escolares comuns, alguns incentivados pelos progenitores dos destinatários. Havia os que “fugiam da escola”, que se escondiam e regressavam para casa após o horário das aulas, tentando escapar à punição. A minha geração testemunha-o.

Eram tidos como métodos pedagógicos de ensino e integravam os códigos culturais, políticos e sociais da época.

Em termos jurídicos, uma causa de justificação ou de exclusão da ilicitude, que consistia na possibilidade legal do exercício da força física como poder de correção dos professores sobre os alunos, em paralelo com o dos pais sobre os filhos, sendo tido, por muitos, como um poder consuetudinariamente reconhecido.

De uma aceitação maioritariamente consensual, mesmo quando discutida ou discutível, transitou-se para uma não aceitação, do que era lícito para o ilícito, para a violação de direitos humanos e da criança, a que acresce, de momento, um tempo de reparações de injustiças coletivas, agudizado pela vulnerabilidade e subordinação de entes sujeitos a uma autoridade hierárquica que lhes era superior e servia de modelo e referência.

Curiosamente, nestes tempos de não aceitação e revisão de costumes, de movimentos como o # me too e afins, nunca tal arbitrariedade foi questionada, nem foi assumida qualquer desculpa ou responsabilidade, quiçá porque os professores passaram de “algozes” a “vítimas”, indiciando-se a ideia diametralmente oposta da permissividade escolar, em que quem ensina é desautorizado em excesso para corrigir e educar.

Nem sequer um pedido de desculpas, por aquilo que hoje se chama pedocriminalidade, começando pelo Estado, que a tolerava e tinha como lícita.

Do castigo escolar de tempos passados, tido como lícito, legitimado e justificado, transitou-se para o ilícito proibido, de um mal de antanho tantas vezes irreparável para um mal presente tantas vezes insanável, e sem equidade.

 

03.09.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

Fiz a terceira classe numa escola de aldeia por precisar que bons ares me recuperassem de tremendas alergias. Eu e a avó e a criada ficámos numa das casas de férias de meus pais, que me inscreveram nessa escola para que não perdesse o ano. Enfim, não só não o perdi, como foi o ano em que numa escola primária mais aprendi acerca de tudo e fui muito, muito feliz. Exclui-se desta felicidade que a professora da dita escola, a mim, fingisse que me dava reguadas - eu era a menina fina – e às colegas as ditas reguadas lhes deixassem as mãos marcadas e inchadas. O meu único contributo à correção desta injustiça, passou a ser o de eu começar a chorar muito alto, desde que as reguadas às minhas colegas começassem, e mal a professora as interrompesse e me chamasse para indagar de tão forte choro, eu respondia

 

Dá trauma professora! O meu pai diz que do trauma faz-se queixa à polícia.

 

E pronto, as reguadas terminavam logo ali, e eu sem saber o que era trauma e por óbvio o meu pai nunca dissera aquilo que eu ali afirmara.

 

Assim passei a heroína naquela escola e as minhas colegas, até as da quarta classe - pois estudávamos todas na mesma sala da 1ª à 4ª classe -, davam-me em troca a possibilidade de lhes conhecer os esconderijos das histórias dos beijinhos, em relação às quais eu nada perguntava por não perceber o interesse, mas quanto aos esconderijos, achava-os maravilhosos, cheios de fantasia e fantasmas bons e, foi para um deles que corri quando o Tim-Tim caiu e magoou-se num local onde não era provável que o salvassem. Ali, descobri, naquele dia, o interesse dos beijinhos e enviei muitos ao Tim-Tim dando-lhe força para não ter medo.

 

Desde então, desde esta escola, descobri a maravilha dos caminhos de vinda para casa, coisa inexistente em Lisboa. Cantávamos a tabuada toda durante o percurso 2x1 =2 e 3x4=12/3 e prova dos 9 e prova real e tudo o mais que fosse e sobretudo se calhasse em verso, nós o dizíamos a cantar pelo meio dos campos. Também comíamos umas florinhas amarelas cujo caule era adocicado, e que metíamos dentro do pão, feito na casa de forno de lenha de alguma colega. Alguma delas nos disse que se comêssemos estas florinhas, a falecida costureira de uma velha casa ali perto, nunca nos faria ouvir o dar ao pé no pedal da máquina, envolvendo esse ouvir alguma carga de coisas más que aconteceriam. Por esta razão quis comer também umas bolinhas vermelhas de umas plantas que ali vira e, foi uma menina da 2ª classe que me gritou logo

 

Essas não, minha parva, essas são rebenta bois!

Rebenta bois? Perguntei.

Sim, se rebentam bois o que farão a ti?

 

Enfim, não pedi mais explicações e só chamei a atenção em casa para a minha avó ter cuidado com elas, mas a avó disse-me que as que usava ou eram de piripiri ou de pimenta.

 

Meu Deus! as coisas semelhantes e diferentes afinal e que eu desconhecia! Como era possível em Lisboa encontrar rebenta bois, se bois não eram visíveis, ao menos no bairro onde morava.

 

Por troca de ideias de brincadeiras boas, aferidas por mim como tal, eu fazia às minhas colegas a caligrafia – a umas 7 colegas - dentro dos cadernos de duas linhas, e confesso que nunca achei trabalho tonto, ainda hoje acho um triunfo gráfico que implica beleza e legibilidade.

 

Depois vinha o dia do pão por Deus e lá íamos todas bater à porta de casa de cada um a pedir pão por Deus – fosse lá o que isto fosse, era tradição e pronto - e receber laranjas e uns tostões pelo pedido que logo entregávamos ao pároco. Noutros dias, vinha a Sagrada Família passar uns dias à aldeia, tocando o sino da capela próxima, excitadamente. Esta Família, às vezes, pernoitava em casa de ricos com o consentimento do padre que a conduzia até às respetivas moradas. Escusado será dizer que perguntei logo à avó se éramos ricas para eu poder examinar o que lá ia por dentro da redoma onde vivia a Sagrada Família. Em rigor, uma colega minha chegou a dizer-me que em casa da Sagrada até havia bonecas com longas tranças e que as bonecas as faziam sozinhas! Ora, descoberta esta, fazia-me logo contar algo à altura, e também lhes expliquei, muito baixinho, às minhas amigas e colegas, que não havia milagres pois 2x3 eram 6 e pronto, alguma que desmentisse! Mas, um dia, uma delas contou à minha avó este segredo e lá levei com duas rezas de terços antes de dormir.

 

Não havia net, por óbvio, havia musgo que se arrancava com os dedos para levar para o que fosse o presépio de cada um. Também nos perguntavam sempre na escola, a que dinastia pertencia D. Afonso Henriques. E bem recordo que, aquando de uma destas perguntas, a minha colega de carteira me disse a rir e com a cabeça encoberta pelos braços

 

Este sei sempre. É o que bateu muito na mãe dele para a gente hoje morar aqui.

Ao que acresci

E se te perguntarem que rios conheces na Guiné, deves dizer: todos!

 

E por esta e por outras lá voltei a chorar alto para que a professora não lhe batesse mais pois era trauma de que o meu pai apresentava queixa à polícia.

 

Uma maravilha esta minha 3ª classe! Uma bênção aquelas minhas alergias.

 

Teresa Bracinha Vieira

Novembro 2017


   ANTIGAMENTE, A ESCOLA (II)

 

1. A minha última crónica acabou algo abruptamente. A verdade é que não expliquei as razões que me levaram ao reitor do Camões. Prometi, logo a abrir, que o faria "mais adiante". Mas ia tão lançado que, quando cheguei ao tal "adiante", já não tinha tempo e, sobretudo, já não tinha espaço. É o mal (ou o bem) das "conversas fiadas". Já experimentaram, no fim de uma noite delas, recapitular o percurso, contando os atalhos, os desvios e as encruzilhadas? Se fosse só misturar alhos com bugalhos, ainda nos podíamos agarrar às rimas, mesmo que nos tivéssemos agarrado onde não devíamos. Mas as livres associações são muito mais subtis, como sabemos desde os tempos do Dr. Freud, do jogo dos cinco cantinhos e dos "cadáveres esquisitos". Se há quem seja perito em levar a água ao seu moinho, a maior parte já perdeu o moinho, quando a água lá chegou. E só não continuo para não me acontecer segunda vez a mesma coisa. À primeira qualquer cai, à segunda cai quem quer.

 

2. A verdade é que a nascente que me levou ao reitor, ao Camões e aos meus 16 anos foi um excelente artigo de M. Fátima Bonifácio, chamado "Mais dinheiro para a educação?" (PÚBLICO, 15 de Agosto de 2004). A autora é das que não se deixam levar pelas ondas das paixões dos engenheiros Guterres e Sócrates. Como ela bem disse: "Reformas e dinheiro, de nada serviram." Tem carradas de razão. Mas houve uma confissão que me deixou pensativo. É quando ela, recordando os 25 anos que leva de professora de História numa universidade de Lisboa, afirma: "Convenci-me ultimamente de que o panorama não melhoraria significativamente nem que os programas e os professores fossem todos excelentes." Fiquei a matutar na convicção recente de M. Fátima Bonifácio. Terá ela razão ao dizer que professores "todos excelentes" e bons programas não fariam bulir nem uma folha no "panorama"? Comecei a pensar no meu caso, quer como aluno, quer como professor. E assim me lembrei de um professor (reitor até, no caso) que mudou, plausivelmente, o curso da minha vida. Fátima Bonifácio dir-me-á (ou dir-me-ia) que faço batota. A história que eu contei passou-se há mais de cinquenta anos e na escola do antigamente. É incomparável. Ela própria sublinha que "em tempos tive alunos que são hoje meus colegas e académicos brilhantes. Essa raça desapareceu". Tanto eu como ela - ela muito mais nova - faríamos parte de uma raça em vias de extinção. Provavelmente é mais lúcida do que eu e, além disso, é professora, coisa que eu deixei de ser há muitos anos. Mas, mesmo descontando a história do meu reitor (e dos meus tempos), continuei cogitativo.

3. Fátima Bonifácio não traça qualquer panorama idílico da escola de outras eras e tenho boas razões para pensar que não é essa a visão dela. Mas, quando tanto se fala em professores de vinho e rosas, eu comecei a fazer as minhas contas e, ao longo dos meus oito anos de liceu (o que então se chamava ensino secundário), não contei mais do que seis professores a cuja memória me abrigue. Nomes? Venham eles: Maria Manuel Barroso, que foi minha professora de Português do 1º ao 3º ano e me ajudou a saber ler e escrever, além de, involuntariamente, me ter ajudado a saber que os bebés não vinham de Paris (não fui nada precoce nessa matéria); Oliveira Simões, que foi meu professor de Ciências Naturais nos 3º e 4º anos e que, além do quartzo, feldspato e diamante, me ensinou a não descer as escadas com as mãos nos bolsos; Carlos Miguel, que foi meu professor de História no 4º ano e me levou da Batalha de Hastings à Invencível Armada, com crescente fervor; Alberto Beirão, que foi meu professor de Matemática no primeiro 5º ano e, apesar da minha confrangedora ignorância na matéria, me fez pensar em mais do que na morte da bezerra nas aulas dele; Amália Borges, que no mesmo 5º ano me revelou que eu tinha sangue francês nas veias, aproveitando-o para me pôr a falar e a ler a única língua estrangeira em que me exprimo à vontade; Gaspar Machado que, nos 6º e 7º anos, em Literatura Portuguesa, me revelou Fernão Lopes e Bernardim, e me levou de "O céu, a terra, o vento sossegado" ao tempo em que "caem co'a calma as aves". Estes são os senhores e as senhoras em que os olhos ponho, quando "me desponho /e me quero afirmar se foi assi". O resto, mais ou menos ignorante, foi de fugir ou serviu para amenas cavaqueiras que, nos melhores casos, disfarçavam a pouca pachorra que tinham para preparar qualquer aula. Na universidade, estive três meses em Direito. Confirmo a merecida reputação de Marcello Caetano, mas dos outros nada recordo. Arrepiei caminho e passei para Letras (Ciências Histórico-Filosóficas, assim se chamavam então). Delfim Santos, Vieira de Almeida, Mário Chicó, Virgínia Rau, são nomes a escrever com letra grande e "happy few" devem imenso a Ribeiro Soares, quando ele e esses "few" partilhavam gostos singulares. Mas dos outros (estava-me a esquecer e não devia de Ferreira de Almeida), sobretudo no que tocava à Filosofia, quem não saiba é melhor nunca ter experimentado. Era nossa convicção (nossa, dos alunos) que deviam a cátedra ao estado disto, pois que a qualquer sabedoria ou inteligência não a deviam certamente. O saudosismo atual é muita bondade nossa, ou muito má memória. Embora seja verdade que, na mesma Faculdade e nos mesmos anos, coexistiram com Nemésio e Lindley Cintra, com Orlando Ribeiro e com o Padre Manuel Antunes, que, infelizmente, não foram meus professores. O caso do prof. Francisco Vieira de Almeida é bem paradigmático. Regia a cadeira de Lógica. Para ele, esta ou era lógica matemática ou era uma batata (ou uma batota). Perante alunos que, em 99 por cento dos casos, tinham ido para Letras por horror à matemática, de que ignoravam os mais rudimentares elementos (nessas aulas, a situação não era muito diferente da descrita por Maria de Fátima Bonifácio), que fazia ele? Não perorava sobre Lógica, mas conversava brilhantemente sobre os mais diversos assuntos. Quem se interessasse em segui-lo, não ficava a saber de matemática, mas descobria como era "ilógico" o mundo em que se movia e as coisas que se aprendiam. A gramática era, logicamente, um dos seus terrenos de eleição. Jamais esquecerei a história do rapazinho de 10 anos, convidado a dividir orações num texto que começava assim: "Rui e o irmão entraram para o velho calhambeque do pai." O miúdo obedeceu: "Raul e o irmão entraram para o velho calhambé", primeira oração. "O quê?", berrou a atónita professora. "Nunca se passa por cima dum 'que'", papagueou o miúdo, ufano. "Ah, meus senhores", exclamava deliciado Vieira de Almeida, "se eu fosse examinador, o rapaz tinha logo 20." Vieira de Almeida, ele, pelo menos quando lhe fui aluno, não dava mais do que 11 nem menos do que 10, fora casos excecionalíssimos. Chumbar não valia para nada, 11 lá ajudava a perpetuar calhambeques.

 

4. Da minha experiência como professor, que durou cinco anos, entre 1959 e 1964 (experiências posteriores, como professor universitário arregimentado, não me servem, porque foram pescatos de ocasião em que eu me meti, para mal dos meus pecados, a 10 por cento), não me ficou ideia muito diferente sobre o nível geral dos então meus colegas. É certo que os havia excecionais (do Camões, recordo eu Mário Dionísio, Vergílio Ferreira, Marina Pestana), mas os alciões não fazem verões, nem primaveras. Frio, frio, era o que havia á minha volta. Só que estes raros exemplos me convenceram (como outros que doutra maneira me ensinaram) que, se todos os professores fossem como eles, a paixão dos engenheiros teria razões de ser. Posso ser muito parcial mas acredito que, se a formação de professores (tema dominante do pensamento de homens como, por exemplo, Delfim Santos) tivesse sido levada a sério e feita a sério, não se tinha chegado onde se chegou. Poesia? Preconceito? É bem possível e não vim aqui polemizar, caso em que esta crónica seria bem fruste. É que mesmo nas tais esporádicas "experiências" recentes (anos 90) eu nunca vi, diante de mim, as tais "máscaras de apatia". Ignorância, sim, imensa, acompanhada, em gerações mais recentes, pela arrogante ignorância dessa própria ignorância, o que é a mais explosiva mistura que imaginar se possa. Mas a apatia pode ser vencida e, daí ao resto, há um passo possível. George Steiner contou, algures, o que lhe aconteceu numa universidade americana, onde deu um curso de Literatura Comparada no férvido ano de 68. Os colegas explicaram-lhe o que se estava a passar e tentaram dissuadi-lo. Primeira aula e um barulho dos diabos, com os mimos da moda. Steiner conseguiu o silêncio suficiente para que eles o ouvissem dizer isto: "Eu estou aqui para vos ensinar algo de que vocês não sabem nada e de que eu sei tudo. Proponho-me inverter a proposição a vosso favor." A acreditar nele, nunca curso nenhum lhe correu tão bem. Mas, como é evidente, o milagre só aconteceu porque ele sabia mesmo tudo e não estava a viciar o jogo. Se não soubesse, jamais o conseguiria. Como o não conseguiria se se pusesse a trabalhar "em grupos", a adular os néscios ou a fingir que eram eles quem o devia ensinar.

 

5. Aqui há uns anos, esteve em Portugal o prof. Mel Ainscow, da Universidade de Manchester, para cheirar um bocadinho dos perfumes reinantes. Para lá de muitas outras, duas coisas o deixaram particularmente estupefacto: que as escolas ou os liceus não tivessem "um" diretor ou "um" reitor ("um" responsável em suma) e que o corpo docente andasse numa jigajoga, escola aqui, escola acolá, sem se fixar num único estabelecimento. Como se sabe, foi "conquista de Abril" acabar com os reitores e substituí-los por um órgão colegial eleito "interpares", em que os eleitos são obviamente quem mais facilita a vida aos eleitores. Todos se protegem mutuamente. Também foi "conquista de Abril" a "rotatividade" do corpo docente. Nunca nenhum ministro, nunca nenhum responsável, reparou nisto? É evidente que reparou. Mas não parou. Porque, se o fizesse, teria contra ele o omnipotente Sindicato dos Professores, com recurso fácil à arma suprema, chamada greve. Não há nada que os pais mais temam, e as autoridades também, que meninos à solta e sem o merecido descanso das aulas. De modo que nos santinhos (os professores) não se toca nem com uma flor. Ou tocam os alunos, mas isso até ajuda a tornar as aulas mais "participativas". Foi assim, e com os programas escritos em "pretoguês", aprendidos em "estruturalês" e em "linguês" que se chegou até ao que Maria de Fátima Bonifácio descreve. E vai ser pior, muito pior. É só esperar mais uns aninhos, gastar muito mais dinheiro, fazer muitas mais reformas, ter muitas mais paixões, e esperar que Maria de Fátima Bonifácio e a geração dela passem também e sejam substituídas pelos alunos delas. "Encore un effort..."

 

 

João Bénard da Costa
27 de agosto 2004, in Público

 

 

 

ANTIGAMENTE, A ESCOLA (I)

1 - Não, antigamente a escola não era risonha e franca, como no pré-histórico poema ("O Estudante Alsaciano") que, em versão portuguesa, aprendi com a minha Avó e galhardamente recitava - ao que me contaram - empoleirado num banco do Jardim da Estrela, para pasmo dos basbaques e vergonha da minha Mãe, que me surpreendeu, aos cinco anos, em tais preparos. Nessa altura, ainda nem sequer sabia o que escola fosse. Quando soube, talvez usasse muitos adjetivos, mas não seguramente os que a associam ao riso e à franqueza. Mas descansem que não venho para ajustar contas nem para louvar o ensino de outras eras. Também não venho para execuções sumárias. Apenas me lembrei, por razões que mais adiante explicarei, que nunca disse de minha justiça sobre um personagem muito maltratado. Refiro-me ao dr. Sérvulo Correia, reitor do Liceu Camões entre o ano letivo de 1950-51 e o de 74-75, a que não resistiu.

2 - 1950-51. Eu tinha de 15 para 16 anos e repetia a secção de ciências do 5º ano do liceu (atual 9º). Nesses tempos, até ao dito 5º ano (do 3º ao 5º, leiam do 7º ao 9º, e não vou prosseguir com atualizações), segundo a reforma de 1947 do ministro Pires de Lima (uma entre tantas), havia nove disciplinas, arrumadas entre letras e ciências. Letras: Português, Francês, Inglês e História. Ciências: Geografia, Ciências Naturais, Físico-Químicas, Matemática e Desenho. Se eu era bom aluno em letras, e por isso passei o exame do 5º ano com uma perna às costas e um 19 a História, péssimo era em ciências, sobretudo em Matemática e Desenho. Por isso chumbei e por isso fui condenado a repetir as cinco disciplinas das tais ciências. Foi um ano negro, sem sombra de dúvida o ano mais negro da minha existência. Tinha grandes "buracos" nos horários (as horas em que os não-repetentes aprendiam letras) e vagueava entre casa e o liceu para repisar "matérias" que odiava. Lágrimas e suspiros? Pouco mais ou menos e não exagero muito. Se a palavra auto-estima já tivesse sido inventada, a minha andava muito por baixo, o que aos 16 anos não se recomenda. O pior de tudo era o Desenho. Por dislexia congénita ou adquirida (havia a tese da fatalidade e a tese da preguiça ronhosa), eu nunca fui capaz de fazer um traço direito ou uma curva torta. Felizmente, os professores que tive do 1º ao 5º ano (o santo Mendes Costa e a beatíssima Maria Marinho, que, segundo as minhas contas, ainda é capaz de estar viva) sustentavam mais a tese do "coitadinho" do que a do "fiteiro" (tese paterna) e foram-me "passando", como nessa altura se dizia, mesmo se os meus "desenhos geométricos" se pareciam com bilhas "desenhadas à vista" e as bilhas com "geometria no espaço", não desfazendo na geometria e muito menos no espaço. 
Tive a sorte (graças à citada reforma) de escapar ao exame do 3º ano, que, quando lá cheguei, retroativou para o 2º. Mas do exame do 5º não escapei. Como já disse, não escapei mesmo. Foi nesse ano, escolarmente bissexto, que Sérvulo Correia foi nomeado reitor do Camões. Vinha precedido pela fama de "animal feroz" (como diria o eng.º Sócrates) e não a deixou por mãos alheias. O liceu, habituado às cãs brancas e à bonomia de um simpático velhinho coxo, mudou do dia para a noite. Professores e alunos tremiam à passagem daquela cabeça, que, devido a uma acentuada dolicocefalia, logo lhe valeu o cognome de "cabeça de martelo". Eu tinha outras razões para tremer e, como ia pouco ao liceu, não me achei envolvido nas histórias dickensianas que se contavam. Lá chegou a altura (ah, quando eu contar esse Verão de 51!) de fazer o segundo exame do 5º ano. Prova escrita, que dava direito a dispensar da oral, em caso de média de 16, e dava direito ao chumbo, se a média fosse inferior a 8,5. No ano anterior, ainda tinha chegado à oral. À segunda vez, nem isso. Uns dezitos e uns novezitos em quatro disciplinas não "taparam" o 2,8 (dois vírgula oito) em Desenho. Poupo-vos à descrição do meu estado de alma diante daquela pauta, em que a seguir ao meu nome estava encarnadamente escrito: "Reprovado". A simples ideia de imaginar (isso mesmo: "ideia de imaginar") que, no ano seguinte, tudo se passaria pela terceira vez punha-me a alma e o corpo em rebuçados desfeitos. À minha volta, colegas manifestavam-me a tradicional comiseração lusa: "Coitado do Bénard"; "Chumbou outra vez por causa do Desenho"; "Ele não tem culpa". Por aquelas horas, passou por ali o tal São Mendes Costa. Ao ver-me em tal estado, quis saber a razão. Logo lha disseram. Passaram mais horas (eu não me atrevia a voltar para casa e a enfrentar a família). Apareceu um contínuo, que, a mando do Senhor Reitor, me disse para ir ao gabinete dele. Lá fui, tão fora de esperar bem. Recebeu-me secamente e ordenou: "Vai para casa e diz ao teu pai que venha cá falar comigo." O meu Pai, engripado e de cama, não foi. Pediu à minha Mãe para o fazer. Quando voltámos, o Senhor Reitor recebeu-nos logo. Não mandou sentar a Mãe. De pé, disse-lhe: "O professor de Desenho do seu filho informou-me da nota dele e da reprovação. Se ele é inapto, o encarregado de educação devia ter pedido dispensa dessa disciplina, como está previsto na lei. Agora, tudo é mais difícil. Mas ainda se pode tentar. O marido de V. Exa. deverá fazer um requerimento ao Senhor Ministro da Educação, solicitando a anulação da prova, o que lhe permitirá ter acesso ao exame oral. Não prometo nada - a decisão não me compete -, mas a informação que darei, com base no que o professor de Desenho me transmitiu, será favorável." 
Transmitida a mensagem, o meu Pai mostrou-se muito cético. Mas o prazo para recurso era curto e tentou. Fui levado a várias consultas médicas, onde ouvi o meu Pai fazer dele a tese do "coitadinho" (muito me espantou essa conversão, mas o amor de pai obriga a muito) enquanto eu me sumia pelo chão abaixo a cada novo exame, teórico e prático. Fez-se o requerimento. Na dúvida do despacho, uma prima minha, bastante mais velha e que cursava Económico-Financeiras, deu-me explicações intensivas de Físico-Químicas e Matemática, num Julho ardente e inquietíssimo. Um belo dia, chegou a notícia. O ministro deferira o requerimento. Já em Agosto, "fui à oral". O mês de férias, que a minha prima sacrificou a cultivar-me minimamente em matérias em que eu era ignaro, fez o resto do milagre, bendita seja ela! Fui aprovado com 10 valores e deficiência a Matemática, o que era irrelevante para quem, obviamente, se destinava às letras. Dois anos depois, concluí o Liceu (no Pedro Nunes) com média final de 18.

3 - Na altura, abençoei o Prof. Mendes Costa, o Ministro e a Prima. Tinha toda a razão. Mas esqueci-me de abençoar o Reitor. Só alguns anos depois (quando eu próprio vivi, do outro lado, a época dos exames e o trabalho imenso que ela implicava para os examinadores) me dei conta do que o gesto dele teve de extraordinário. Em vez de juntar mais uma reprovação às estatísticas, com um aluno que nem sequer era aluno dele e que ele nem sequer conhecia, arrancou-me à autocomiseração e às lágrimas quentes, acionou os mecanismos legais que tanto os meus Pais como eu desconhecíamos, venceu o ceticismo paterno e anulou os efeitos devastadores de uma segunda reprovação consecutiva num adolescente em crise. Tivesse ele sido indiferente (como era legítimo e normal que fosse) e talvez o meu futuro fosse bem diferente. Tive ocasião de lho dizer. Dez anos depois desse trágico 51, voltei ao Camões, como professor de História, Filosofia e Organização Política e Administrativa da Nação. Professor eventual, ou seja, fora do quadro. Ensinei nessa qualidade três anos letivos. Poucos meses depois de começar, dava uma aula de História e estava virado de costas para a porta aberta, ouvi um silêncio pesadíssimo e vi os alunos todos a levantar-se como se um alfinete lhes picasse o rabo. Entrara o Senhor Reitor. Não disse nem bons dias nem boas tardes. Avançou para a "minha" secretária, sentou-se, mandou sentar os alunos e disse-me: "Sr. Dr., faça favor de continuar a dar a aula." Eu continuei. Lembro-me que era sobre as origens do cristianismo (3º ano, pois). Quando tocou a sineta, mandou sair os alunos e disse-me para ficar. Não falarei de piropos, que é uma palavra que vai mal com ele. Mas raras vezes ouvi elogios tão expressivos. Daí para diante, tomou-me sob a sua proteção. Um dia, levou mesmo a afetividade mais longe e justificou a sua imagem. Não tinha - disse-me - qualquer prazer em fazer de "papão do liceu", mas entendia que aquele era o único modo de lidar com rapazes que os pais, na sua maioria, não seguiam e com professores genericamente incompetentes. Discuti com ele abertamente e ele ouviu-me com atenção. Lembro-me que acentuou duas vezes a expressão "formar os melhores". Num desses anos, propus-lhe dar, em regime aberto, depois do horário normal, um curso de iniciação ao cinema, já nessa altura paixão minha. Não suponho que fosse cinéfilo ou sequer que fosse ao cinema. Mas sem hesitação me autorizou e seguiu, interessadíssimo, os resultados. Doutra vez, pôs-me uma reserva: nas minhas aulas, tinha notado pouca participação dos alunos. Vinda de quem vinha, a observação espantou-me. Disse-lhe que era o meu estilo e que, além disso, na presença dele, o acentuava, pois que os ditos ficavam manifestamente muito pouco à vontade. Pareceu-me perceber, embora me notasse que, com a minha idade (eu tinha vinte e tal anos), devia estar mais aberto à "pedagogia moderna". 
Em 1964, resolvi trocar o liceu por outra oferta de emprego, aparentemente mais tentadora. Falei com ele e só me encorajou. "Com as condições do ensino de hoje, uma pessoa como o Sr. Dr. deve seguir outros caminhos." Já fora do liceu, tive ocasião de lhe escrever uma carta a contar a história do exame do 5º ano, que ele evidentemente esquecera. Respondeu-me emocionado: "A sua carta chegou num momento muito difícil da minha vida e foi um bálsamo." Um ano depois, estava de novo a bater-lhe à porta. Muito mais aberto à "pedagogia moderna" (hoje, acho que escancaradamente aberto), propunha-lhe voltar para fazer experiências de pedagogia não-diretiva, à Rogers. Acreditem ou não, disse-me logo que sim. Só que nesse ano a PIDE mudou as regras para a admissão de eventuais. Até aí - o que me valera -, os contratos destes, contratos a prazo e sem garantia de quaisquer direitos, não iam ao visto prévio da polícia política. Nesse ano, passaram a ir. A informação era fortemente negativa. Chamou-me, comunicou-mo e disse-me que iria ele próprio à PIDE, para os tentar demover. Aí falhou. A experiência não-diretiva vim a fazê-la no Colégio Moderno do Dr. Mário Soares. Deus escreve direito por linhas tortas.

 

4 - Nunca mais o vi. Mas, de cada vez que leio, em memórias de ex-alunos dos anos 50, 60 e 70, o retrato de Sérvulo Correia como arquétipo do reitor policial ou do reitor fascista, que transformou o Camões numa prisão, penso no dever de contar esta história. Chegou a altura. Por "razões que mais adiante explicarei"? Sem mais espaço, ficam para a próxima crónica. Se nunca aprendi a ser "não-diretivo", também nunca aprendi a ser sintético.

 

João Bénard da Costa
20 de agosto 2004 in Público