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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


181. REFLEXÕES POÉTICAS


Escrever, em geral, é uma atividade solitária, que pode ou não ser recompensada pela leitura e leitores, se os houver. 


Escrever poesia, em particular, é uma atividade ainda mais solitária, onde a solidão do autor é menos recompensada pela leitura, sendo usualmente mais exíguos, nulos ou quase nenhuns os ledores.


Indagar a profissão de alguém e ter, como resposta, entre nós, ser poeta, é misterioso, audacioso e ousado, por um lado, delirante, despistado, despassarado e inútil, por outro.


Os poetas, como formação específica, têm as suas poesias, as quais, com sorte, são conhecidas, cantadas ou lidas, o que não significa poderem viver da poesia.   


Há quem nunca se apresente profissionalmente como poeta. Há quem o tenha um privilégio, pela positiva: “Fiquei conhecido como poeta desde muito novo. Quando voltei do exílio, o funcionário que me fez o bilhete de identidade, no lugar de profissão, sem me perguntar, escreveu “poeta”. É assim que me tratam. Considero uma honra. Às vezes vêm ter comigo e dizem: posso cumprimentar o nosso poeta? É a melhor homenagem que me podem prestar. Não creio que essa circunstância prejudique a outra parte da escrita”. Acrescentando, de seguida: “A prosa só tem a ganhar em ser escrita por um poeta”, elevando-se a poesia para um patamar superior ao da prosa (Manuel Alegre, JL n.º 1368, março 23).   


Nos tempos que correm, dominados pelas leis do mercado, converter a poesia em dinheiro é tarefa hegemonicamente inglória, não utilitária. Daí a poesia ser “invendável”, exceção à norma e, como tal, uma singularidade preciosa, uma relíquia. 


Um privilégio permanente e persistente, corroborado pelo enigma de os poetas, ao que consta, serem proporcionalmente em maior número que os leitores de poesia, em que um público minoritário tem ao seu dispor um pomposo aparelho de divulgação poética (festivais, fundações, academias, centros e institutos culturais).   


E se a poesia sofre com a ausência de reconhecimento no espaço público, muitas vezes são os seus criadores que reivindicam para ela a missão de viver em oposição radical à sociedade, declarando-se rebeldes a qualquer poder, ficando ao lado do pensamento crítico que, em certo sentido, faz falta e é bem-vindo, mas que, noutra interpretação, deslegitima os seus defensores de se queixarem da indiferença face à suas obras.     


Mesmo se a poesia é, para muitos, elitista, inútil e supérflua, sempre abalou o poder pela sua insubmissão, de que foram vítimas, no limite, sob a tirania estalinista, Anna Akhmátova e Osip Mandelstam. O último, quando vivo, segundo a viúva, ironizou: “Não te podes queixar, em mais nenhum lugar há tanto respeito pela poesia, até se mata por causa dela”. Um poema, dedicado a Estaline, custou-lhe a vida, e nele há a arte do essencial e indispensável, essencialidade que também subsiste ao comemorarmos, entre nós, o nosso dia, no dia de Camões, um poeta.


28.06.24
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

67. EM REBUSCA DO HÁBITO DA LEITURA


A escrita foi o coração da civilização, substituindo a fala.


Na língua oral, de trato quotidiano, uma vez lançada a mensagem, o processo está feito, extingue-se. 


Na língua escrita, a sua mensagem não morre, perdura, por maioria de razão se mais elaborada e usada na literatura.   


Há o provérbio latino, segundo o qual: verba volant, scripta manent, ou seja: o que se diz voa e perde-se no ar; o que se escreve permanece, tem a garantia da perenidade.


A linguagem oral é conjuntural, a escrita é estrutural. 


O livro foi o melhor amigo da escrita, a que acresce o jornal.   


A aprendizagem e o hábito da leitura, foram imprescindíveis para o progresso civilizacional.


A leitura procurava o livro (e o jornal) numa reciprocidade de benefícios e interesses. Livros e jornais eram o ícone da leitura (em especial o livro) e esta o seu arquétipo. Hoje a leitura tende a ser cada vez mais arqueológica, livros e jornais são menos procurados e lidos, a caligrafia e escrita manual é uma relíquia, tanto mais requintada se em tinta permanente.   


Surgiu o telemóvel, o novo ícone, cuja leitura agressiva, aleatória, chamativa, imediata, impulsiva, programada (a gosto) e velocista o universaliza, tornando os leitores mais primários, impulsivos e menos exigentes, prejudicando a leitura como hábito de pensar no seu sentido crítico e racional, não ajudando a meditar e pensar com vagar.


A velocidade contagiosa da internet difunde um sempre mais e mais da notícia de leitura curta, rápida e ao minuto, marginalizando outras, género comentário ou ensaio, porque não interessam ou não há tempo, argumenta-se, fomentando-se a informação acrítica, consumista, descartável, de pobreza vocabular, por vezes manipuladora e falsa.


A disrupção digital ensina que a aprendizagem e a leitura se devem submeter à velocidade, ao não aprofundamento, à banalização linguística, anulando a reflexão e o tempo para pensar.   


A palavra, por natureza, é racional, exige triagem, distância, raciocínio e sentido crítico, precisa ser escrutinada, pertence ao terreno da escrita e só nesta tem verdadeiro sentido, necessita de valer por si e não ser meramente submetida ao império amoral, autoritário, funcional e utilitário da tecnologia.  

 

27.11.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício