Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Quero voltar ao Espírito Santo e às festas do Divino Espírito Santo, nos Açores, que são uma das festas mais humanistas e solidárias do mundo. Ah! aquela coisa dos “impérios”! Chegue quem chegar, senta-se e come e bebe fartamente, sem que alguém lhe pergunte quem é, donde é, o que faz. De graça. Quando lá fui, no “império” a que me acolhi, lá estava o espírito: “A hora de repartir/Que a gente tanto gosta. /Pão, carne, massa e vinho/Temos sempre a mesa posta.” Ali, foram servidas mais de 600 “sopas” (um ensopado de carne excelente).
Se formos à procura da origem destas festas, encontraremos um monge célebre do século XII, Joaquim de Fiore, que deu origem ao joaquimismo. Segundo ele, a História do mundo está dividida em três Idades: a Idade do Pai ou da Lei, que é a idade da servidão e do medo; a Idade do Filho, que é a idade da submissão filial; a Idade do Espírito Santo, na qual se ia entrar, e que é a idade do Amor, da Liberdade e da Fraternidade.
Houve sempre, ao longo da História da Igreja, um conflito entre os que acentuam o lado visível, institucional, hierárquico, e os que sobrepõem à Igreja visível uma Igreja espiritual, carismática, fraterna. O joaquimismo constituía uma mensagem revolucionária de contestação de uma Igreja pecaminosamente mundana; os franciscanos “espirituais” — fraticelli (irmãozinhos) — desgostosos com os Papas que abafavam o Espírito, aderiram à inspiração carismática, espírito-santista do joaquimismo.
Em 1282, D. Dinis casa com D. Isabel de Aragão, a futura Rainha Santa. O casamento realizou-se em Trancoso, que, significativamente, havia de ser a terra do sapateiro Bandarra, profeta do Quinto Império, tão querido do Padre António Vieira e Fernando Pessoa. Toda a família da nova rainha de Portugal era partidária dos frades espirituais, e a própria rainha possuía um conceito franciscano da vida: simplicidade, desapego dos bens terrenos, amor aos pobres e fracos. Santa Isabel protegia os franciscanos, e foi por seu intermédio que entrou um culto especial ao Espírito Santo. Fundaram-se confrarias do Espírito Santo, irmandades de socorro mútuo, e instauraram-se as Festas do Império do Espírito Santo, nas quais se celebrava o Pentecostes, comemorando a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos.
A principal cerimónia desse culto, durante a semana do Pentecostes, realizada por um franciscano, constava da coroação com três coroas, uma imperial e duas reais, do Imperador e dois Reis, geralmente na pessoa de uma criança e dois homens do povo pertencentes à Confraria do Espírito Santo. O Imperador, um menino, símbolo da humanidade renovada, religada às verdades básicas da pobreza evangélica e do amor ao próximo, empunhava o ceptro com que, tocando na fronte, se significava a bênção do Espírito Santo, e, depois de ter recebido as homenagens da população e das autoridades civis, militares e religiosas “fora” da igreja, procedia à libertação dos presos e à distribuição do pão, não como esmola, mas como preâmbulo da instauração na Terra da era da fraternidade profetizada.
Esta Festa dos Imperadores generalizou-se e encontramo-la em muitos pontos do País, mas de modo especial em Tomar e a sua Festa dos Tabuleiros ou do Divino Espírito Santo. Aqui, no fim da procissão, há a distribuição do bodo aos pobres.
Mas as festas do Divino Espírito Santo enraizaram sobretudo nos Açores e, por causa da emigração, em vários núcleos portugueses dos Estados Unidos e do Canadá. Nos Açores, temos as chamadas Igrejas “paralelas”, de que ainda hoje é possível encontrar vestígios. No quadro das celebrações religiosas, continuam com lugar destacado as Festas do Divino Espírito Santo e do “Império”, procedendo-se à coroação de uma criança, que segue na procissão com o ceptro, sendo igualmente de destacar as referidas “sopas”.
A soçobrar na crise, num mundo louco de ódio e de guerras, é bom lembrar estas Festas da Fraternidade universal. A utopia tem duas funções essenciais: criticar o presente e obrigar a transformá-lo. Outro mundo é possível.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Sábado, 28 de Junho de 2025
Quando, este Domingo, se fala do Espírito Santo e do Pentecostes, é preciso tomar consciência de que só se alcança a sua compreensão adequada, contrapondo o Pentecostes a Babel e à sua Torre, esse acontecimento mítico tão conhecido, descrito no livro primeiro da Bíblia, o Génesis. É um mito, mas o mito transporta consigo uma verdade fundamental, "dá que pensar", como escreveu o grande filósofo do século XX, Paul Ricoeur.
Diz a Bíblia que Javé, ao ver a maldade dos homens sobre a Terra, maldade que não deixava de crescer, se arrependeu de ter criado o Homen e se sentiu magoado no seu coração. Por isso, mandou o dilúvio, mas renovou a sua aliança com Noé e com a criação inteira, aliança figurada, ainda que de forma ingénua, no arco-íris, unindo o Céu e a Terra. Mas, um dia, continua a narrativa do Génesis, os homens disseram: construamos uma cidade e uma Torre cujo ápice penetre nos céus. A Bíblia vê neste projecto uma iniciativa de arrogância e orgulho insensatos, aquela hybris – desmesura – que os gregos também condenavam, porque arrasta consigo a maldição e a catástrofe, o abismo da destruição. No meio da arrogância e da desmesura, os seres humanos, em vez de se compreenderem e unirem, guerreiam-se e matam-se nos horrores da barbárie. Aí está o sentido bíblico da confusão das línguas.
Babel e a sua Torre é um mito de uma actualidade dramática e mesmo trágica. Note-se que em capítulos anteriores à narrativa da Torre de Babel, o livro do Génesis fala do plano de Deus que quer que a Humanidade cresça e se multiplique em «povos que de dispersaram por países e línguas, por famílias e nações». Assim, o que está em causa neste mito não é de modo nenhum a dispersão pela Terra nem a variedade das línguas, que constitui uma riqueza. O mito põe a nu e denuncia o imperialismo dominador de uns sobre os outros, na incapacidade do descentramento de si para colocar-se no lugar do outro e, no respeito pela alteridade insuprimível, entrar em diálogo mutuamente enriquecedor. O mito é uma advertência eloquente contra o desígnio de dominação.
Precisamente em contraponto, noutro livro da Bíblia, Actos dos Apóstolos, narra-se a descida do Espírito Santo, no dia do Pentecostes. «De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem.» Ao ouvir o ruído, a multidão acorreu e todos ficaram estupefactos, «pois cada um os ouvia falar na sua própria língua». Atónitos e maravilhados diziam: «Esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa então, para que cada um de nós os ouça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!».
No dia de Pentecostes, que deveria ser todos os dias, na sua intenção mais profunda —, e cada vez mais tomamos consciência disso — , quando se percebeu que o que tem de unir os seres humanos é a justiça, o amor, a solidariedade, a fraternidade, o respeito pela igualdade, os seres humanos, todos, voltaram a encontrar-se e entenderam-se. No Pentecostes, restabelece-se a unidade desfeita com a Torre de Babel. Trata-se, porém, da unidade na diferença e da diferença na unidade. O amor de Pentecostes une diferenças, sem uniformizar. E abre horizontes novos de esperança à Humanidade solidária.
Na actual situação do mundo globalizado e mortalmente ameaçado, é urgência maior pensar numa governança global (não digo um Governo mundial, mas uma governança global), para que o império da força da lei ponha limites ao império da lei da força do mais forte — na presente situação de crise global, vários pólos do planeta se perfilam já com intenções de domínio imperial global — e, neste contexto, pensar no diálogo multicultural e inter-religioso, em ordem à paz, à justiça, a uma atitude nova de respeito e cuidado da Natureza, a nossa casa comum, a uma vida menos centrada no consumo imoderado, no ter, e mais no ser, nesse milagre que é ser, existir e conviver.
Dada a presente crise global, dramática ou mesmo trágica, quando já sabemos que ou nos salvamos todos ou nos perdemos todos, penso que já se devia ter percebido que se impõe um novo macro-paradigma para o desenvolvimento e para as relações entre os povos, incluindo a sua relação com a Natureza. Assim, sejamos crentes ou não, é claro que isso implica uma conversão, um espírito novo, que só pode ser o Espírito Santo, espírito de verdade, de liberdade, de igualdade, de fraternidade, de alegria e paz.
Em toda a sua Históra, talvez nunca a Humanidade tenha estado numa crise tão grave como aquela que já se vive e se agrava cada vez mais. É preciso tomar consciência da ameaça de convulsões em cadeia e inclusivamente da morte global. A Humanidade pode correr o risco de cometer um suicídio colectivo.
Relembro uma entrevista recente na qual um dos intelectuais mais influentes da atualidade, Yuval Noah Harari, referia o que qualquer um de nós, se não andar distraído, constata: «Somos insaciáveis. Não interessa o que tenhamos conseguido alcançar, queremos sempre mais. Se temos um milhão, queremos dois milhões, se temos dois milhões, queremos dez milhões. O mesmo em relação ao poder: nunca estamos satisfeitos com o que temos, porque, na verdade, não sabemos como traduzir esse poder em felicidade. Somos milhares de vezes mais poderosos do que éramos na Idade da Pedra, mas não somos significativamente mais felizes. Se não aprendermos a parar, a desacelerar, o mais provável é que nos destruamos a nós e a todo o ecossistema.» Concordando com Harari, julgo que é preciso ir mais longe e mais fundo. Pascal escreveu que a constituição do ser humano mora ali algures entre o nada e o infinito (le rien et l´infini). Assim, compreendemos que, dada a dinâmica humana insaciável, a única verdadeira tentação, desde o princípio, como se escreve no Génesis, é querer “ser como Deus”. Por isso, a alternativa é esta: querer ser Deus através do orgulho e da dominação de tudo e de todos, construindo uma Torre de Babel até ao céu, ou acolhendo a graça que o Espírito Santo concede descendo sobre todos em Pentecostes.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Sábado, 7 de Junho de 2025