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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


As fotografias de Erin O’Keefe são uma abertura à interpretação livre do espaço. 


“For me the experience of the image is the meaning.” Erin O’Keefe In Erin O’Keefe & Lucas Blalock - AND/ALSO: Photography (Mis)represented 


A arquiteta Erin O'Keefe (1962) revela que começou a interessar-se pelas questões relativas ao espaço através da fotografia. A fotografia é uma das formas de expressão mais mutáveis e de acesso muito fácil e constante. Cada vez mais a imagem fotografada constitui a maneira como se vê e se pensa o mundo.  


A fotografia é assim, muito importante para Erin O’Keefe, porque em arquitetura, a experiência do espaço é feita sobretudo a duas dimensões. A memória que se tem da arquitetura é naturalmente construída através dos desenhos mas principalmente através das fotografias que aparecem nos livros e nas revistas. A perceção que se tem do espaço, em arquitetura, é sempre mediada por um filtro, por uma lente e por uma moldura que escolhe e que só mostra determinadas coisas e exclui outras. Por isso O’Keefe revela que a noção de espaço está continuamente pronta a ser modificada a qualquer momento - o entendimento do espaço está, deste modo, sempre disponível para ser subjetivado. 


O mais estranho, O’Keefe sublinha, é que, muitas vezes, conhecemos um espaço melhor e mais facilmente através da fotografia. O espaço real apresenta-se muito mais complexo e vasto, tem um inesperado tamanho, tem pormenores imprevistos, tem interrupções súbitas. Porém, através da lente, o espaço aparece mais simplificado, sem escala, mais despojado e limitado - parece pertencer a um todo completo e acabado que é muito mais inteligível. 


As fotografias de O’Keefe dividem o mundo em três camadas: os objetos, a lente e o observador. A camada da lente ajuda a manipular e a repensar a ordem espacial. Tal como numa pintura, o espaço da fotografia não tem de corresponder à realidade, não tem de necessariamente de funcionar, não tem de ser coerente. E é isso que Erin O’Keefe explora - a capacidade que uma imagem tem em ser ilusória ao mesmo tempo que capta objetos reais, palpáveis, que existem e que foram feitos para serem fotografados. Os objetos, numa imagem, comportam-se de uma determinada maneira que não corresponde à realidade. O'Keefe está interessada em descobrir e explorar, através da imagem, essas múltiplas relações que, num espaço, dois ou mais objetos podem ter entre si. As suas fotografias sustentam-se assim através da variável em compressão. A sua lente existe para capturar e congelar os objetos no espaço e explorar conceitos de cor, opacidade e sombra, mas também transparência, translucidez e reflexo. 


As fotografias de O’Keefe são fragmentos enigmáticos visuais e são feitas para ficarem por resolver. São imagens que existem independentes do mundo real e que têm um conjunto de regras únicas e singulares. São quebra-cabeças inexplicáveis capazes de unir o pequeno ao amplo, a profundeza à planura, a espessura ao raso, o liso à rugosidade, o nivelado ao irregular, o recorte ao todo. Os seus objetos (ultimamente geométricos) são muito tácteis e pictóricos e por isso nunca se sabe ao certo se se está perante uma pintura uma colagem ou uma fotografia… É a lente que introduz a ambiguidade. A superfície plana da fotografia reduz os objetos e a perspetiva a duas dimensões e causa a dúvida. A experiência da imagem assim como a provocação incerta dos objetos no espaço é o que mais interessa a O’Keefe.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  

 

Espaço é um instrumento hegemónico poderoso.


“(Social) space is a (social) product.” (Lefebvre 1991, 26)


No livro The Production of Space, Lefebvre avança com a ideia de que ao mudar-se a vida e a sociedade, deve inevitavelmente revolucionar-se o espaço. Lefebvre acredita que a pessoa humana comum é um ser social capaz de produzir a sua própria vida, a sua própria consciência e o por isso também produz o seu próprio espaço: “...each living body is space and has its space: it produces itself in space and it also produces that space.” (Lefebvre 2008, 170)


Lefebvre explica que a cidade é a materialização de dois circuitos de capital. O circuito primário diz respeito ao investimento de capital em mão de obra, em materiais e em máquinas de maneira a produzir produtos que possam ser vendidos no mercado e de modo a gerarem lucro que de novo poderá ser aplicado em novos investimentos. O circuito secundário diz respeito aos bens imóveis, ao capital investido em propriedade e no seu lucro. É através destes dois circuitos que se avalia a estabilidade, o rejuvenescimento e o declínio de uma cidade moderna.


Na cidade, na opinião de Lefebvre, o capital é hegemónico. Por isso é o capital que produz o espaço da cidade. O espaço ao ser produto de uma sociedade é necessariamente uma rede de relações sociais - é um produto social. Cada sociedade produz um espaço único, adaptado às suas necessidades e condições.


Na sociedade, os seres humanos produzem espaços sociais. As relações sociais, que são abstrações concretas, não têm existência real, mas existem e concretizam-se através do espaço. O espaço é assim, um produto e um meio de produção. O espaço é tão importante ao produzir o ambiente em que vivemos, porque somos constantemente moldados e influenciados pelo espaço que nos rodeia. O papel do governo é vital na determinação e conceção espacial de uma cidade - ao ter a capacidade para atrair investidores, ao possuir grande parte da propriedade e ao ter a competência legal para impor condições e sanções.


O espaço urbano é assim propriedade daqueles que têm dinheiro e poder. É pensado e concebido por um determinado conjunto de pessoas com determinadas necessidades e vontades mas é de facto vivido e experienciado por outro conjunto de pessoas (o indivíduo comum) que tem de se adaptar e obedecer a regras pré-estabelecidas. Para Lefebvre, o espaço real e vivido é um resultado do concebido e do percecionado. E as ideias dos proprietários e gestores de um determinado espaço nem sempre coincidem com as ideias do indivíduo comum que experiência e que utiliza esse espaço. Existe, por isso, naturalmente uma tensão entre o indivíduo comum e o capitalista. Na opinião de Lefebvre, essa tensão, materializa uma forma de repressão e esmagamento do indivíduo comum pelas classes dominantes.


Espaço é e sempre foi um instrumento hegemónico poderoso. Sobretudo se é a concretização do domínio, da manipulação, da exploração e da influência extrema de um conjunto de pessoas em relação a outro. Apesar de ser criado pelo ser humano, é um produto do poder e o indivíduo comum não tem nunca hipótese de criar o seu próprio espaço. A sociedade moderna só produz assim o espaço requerido e pensado pelo capital e pelo investidor.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR


O flâneur aceita perder-se no tempo e no espaço de uma cidade.


“Pour le parfait flâneur, pour l'observateur passionné, c'est une immense jouissance que d'élire domicile dans le nombre, dans l'ondoyant, dans le mouvement, dans le fugitif et l'infini. Être hors de chez soi, et pourtant se sentir partout chez soi ; voir le monde, être au centre du monde et rester caché au monde, tels sont quelques‑uns des moindres plaisirs de ces esprits indépendants, passionnés, impartiaux, que la langue ne peut que maladroitement définir.”, Charles Baudelaire, Le Peintre de la vie moderne.


No livro Psychogeography de Merlin Coverley lê-se que o flâneur é um observador solitário que caminha pelas ruas de uma cidade. Ao errar sem destino, ao parar simplesmente para olhar, o flâneur cedo se tornou uma figura ideal e literária do séc. XIX, inseparável da poesia de Charles Baudelaire (1821-1867).


O flâneur deseja para sempre unir-se à multidão, fluir no movimento contínuo da cidade, tornar-se fugitivo e infinito. Ser em toda a parte, ver o mundo e fazer parte de tudo mas manter escondida a sua existência. O flâneur é em simultâneo a imersão e o isolamento, a parte e o todo, o observador e o observado, o perseguidor e o perseguido, o eu e o outro, o passado e o futuro.


Ao dissolver-se na multidão, o flâneur aceita perder-se no tempo e no espaço de uma cidade e deixa-se intoxicar pelo seu movimento que não pára. Mas o flâneur é sempre uma figura nostálgica porque apesar de proclamar admiração pela vida urbana reconhece também a redundância cada vez mais evidente do pedestre desocupado e só e que sobretudo aos olhos da cidade moderna se torna inútil e indolente.


Segundo Coverley, Paris era um livro pronto a ser lido por Baudelaire mas a sua configuração labiríntica destruída por Haussmann impediu a existência real do flâneur. Para Coverley, a vida de Baudelaire espelha a trajetória do flâneur que batalha constantemente contra o advento da modernidade.


A expansão de Paris, no séc. XIX, impediu a cidade de ser compreendida no seu todo. A destruição das antigas ruas e a sua reordenação sufocada com trânsito, domesticou qualquer tipo de intenção exploratória e o desejo do caminhante pelo enigmático, pelo misterioso e pelo oculto tornou-se totalmente obsoleto. O andar ficou assim reduzido a um passeio turístico, o errar ficou limitado ao olhar para as montras. Na cidade moderna o flâneur tem de se adaptar ou então perece. Para Merlin Coverley, o flâneur de Baudelaire é assim o testemunho de um modo de vida prestes a desvanecer para sempre.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Eric Rohmer: Objetividade, Espaço, Verdade e Beleza, e Unidade.


No livro Eric Rohmer de Carlos F. Heredero e Antonio Santamarina (1991) lê-se que o cinema de Rohmer se descreve se acordo com quatro fatores fundamentais: ObjetividadeEspaçoVerdade e Beleza e Unidade.


Para Rohmer, através do cinema, é possível a objetividade de espaço e de tempo. O cinema deve ser mais objetivo que o olho – o filme deve estar ao inteiro serviço de um lugar, de modo a apresentá-lo, a mostrá-lo e a valorizá-lo a partir de diversos fragmentos. A coisa filmada é de maior importância, a interpretação deve ser posta de parte. Os filmes devem ajudar a ver o mundo banal como nunca antes visto. O cinema deve ser, por isso, a imagem do mundo exterior. Deve reproduzir a realidade em imagens e tentar ir mais além, mostrando o invisível através do visível.


O espaço fílmico, para Rohmer, é um espaço-tempo virtual que se reconstitui, no espírito do espectador, através da ajuda de fragmentos, que aparecem no filme. O realizador é um organizador de espaço, e o filme é a materialização, através de imagens, de um modo de ver o mundo.


Eric Rohmer deseja reproduzir exatamente a realidade e captar imagens que melhor nos conduzam a descobrir a verdade e a revelar a beleza do mundo.  O cinema, para Rohmer, é uma reprodução exata das coisas, com as suas cores, filmado à altura do olho humano e sem mediadores – porque a poesia, a ordem cósmica e a presença divina surgem ao respeitar-se escrupulosamente a realidade.


Rohmer procura sempre uma unidade de estilo em contraposição a uma qualquer amálgama de imagens e de cores. A unidade permite colar todas as peças do filme e da história. Apesar da aparente naturalidade, todos os filmes são construídos minuciosamente, revelando um controlo formal muito detalhado.


Os filmes de Rohmer são um meio para aceder à verdade e à beleza do mundo, são um instrumento de revelação de um todo que, de outra forma, nos poderia escapar. Permitem que sejamos de novo sensíveis ao esplendor da realidade quotidiana (todo o espaço físico que nos rodeia fica de novo acessível). Nos seus filmes, Rohmer preocupa-se com quatro formas de ocupar o espaço: a grande cidade (Paris), os subúrbios (Villes Nouvelles), a pequena cidade (na província) e o campo (e o mundo rural). Os seus filmes têm a capacidade de transcender o contraste paradigmático entre a cidade e o campo – são uma reflexão importante e necessária acerca da coexistência e da interligação, que deve ser permanente, entre o mundo urbano e o mundo rural. São a prova viva da existência de um território poroso e em movimento constante.


Nos filmes de Rohmer, o espaço urbano é o espaço que, por excelência, através do seu movimento incessante, permite o encontro entre pessoas e é até uma força exterior capaz de mudar uma vida. O subúrbio representa a promessa de uma vida nova. O fácil acesso à natureza permite o contacto com o cosmos e com fenómenos maravilhosos, tal como o raio verde e a hora azul.


«I think I prefer the country, but I like to live in the city!», Rohmer (Baecque e Herpe 2014, 380)

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

A tela como superfície a transcender.


Através de outra pessoa ou através de uma coisa é mais fácil falar sobre a verdade de um eu interior.


‘...preciso eu mesma de achar, a minha própria forma’, Etty Hillesum, 4 de julho de 1941.


O diário de Etty (Esther) Hillesum (1914-1943) abre a importância da descoberta do mundo interior. O livro trás uma verdade: a vida dentro da obra coincide com a vida dentro do criador. E mostra a importância de uma constante interrogação interior na obra do artista. Etty queria ser escritora e, portanto, era importante para ela afirmar que corpo e alma são exatamente a mesma coisa. Tudo o que ela sentia por dentro era outra forma de viver. O processo dentro do seu corpo - pensamentos, desejos, conhecimento - também participa na construção de ser. Para criar e escrever o seu diário, Etty confia a sua alma e toda a sua vitalidade a um insignificante pedaço de papel. Só então os seus pensamentos poderão ser claros e os seus sentimentos profundos. Mas uma grande inibição e falta de confiança não permitiam que seus pensamentos saíssem completamente livres e fluídos - na maioria das vezes, eles ficavam presos dentro de si. Etty sempre sentiu que ainda havia algo encarcerado. E ela treinava todos os dias para olhar e ouvir o que havia dentro dela.


‘...há algo que continua profundamente encarcerado dentro de mim.’
, Etty Hillesum, 9 março 1941


Algumas obras de arte revelam o interior oculto e infinito do artista que se encontra atrás de uma superfície e de uma pele. Alguns artistas desejam superar os limites do corpo (como pessoa e como objeto). Por isso a pintura pode passar a ser um objeto capaz de transportar, de transcender e de projetar.


A superfície de uma tela, pode ser: Alma em Agnes Martin; Personagem em Angela de la Cruz; Cor em Gothard Graubner; Corpo em Helena Almeida; e Espaço em Lucio Fontana.


Tela = Alma


There are two endless directions. In and out', Agnes


Os escritos de Agnes Martin (1912-2004) são muito profundos e claros em relação à ideia de que a alma é a única coisa de que um artista precisa para trabalhar. As pinturas de Agnes Martin estão relacionadas com a pureza da mente e com a "alma limpa". Para criar, o artista deve viver uma intensa experiência interior. Pode salvar-se se olhar para sua alma e a alma pode ser transportada para o objeto que se cria. Agnes, vivia quase como eremita no Novo México e acreditava que a alma ao ser independente da matéria deseja, por isso, libertar-se de qualquer corpo para que possa retornar à sua origem divina. A criação de uma alma visível na tela, acontece quando Agnes Martin utiliza retângulos, linhas horizontais, através do branco e do preto. As suas telas precisam de subjetividade e profundidade para serem interpretadas e compreendidas.


Tela = Carácter


Angela de la Cruz (1965) transforma as suas telas em personagens e sentimentos humanos - ora estão dobradas, rasgadas, quebradas, escondidas, curvadas, torcidas, colocadas nos cantos, no chão, na parede...


Angela de la Cruz estudou durante um período (1989-1996) em que a pintura triunfava e por isso desejava ultrapassar os limites físicos da estrutura e do material da tela tradicional.


Angela de la Cruz baseia o seu trabalho no legado da pintura modernista - abstração monocromática, superfícies planas, cores primárias e explora sobretudo a possibilidade das pinturas serem também objetos. Angela de la Cruz desconstrói a tela para, através da metáfora, representar o mundo real. A superfície é manipulada como se de uma personagem se tratasse. E assim, o objeto criado encarna qualidades antropomórficas, expressivas, alusivas e figurativas - corpos gordos perdem peso, telas esmagam-se umas contra as outras ou contra a parede, o tecido é arrancado, remendado, mutilado, morto, o nada.


Angela de la Cruz chama as suas telas de ‘cargo bodies’ - são peças performativas e são tão reais quanto as pessoas.


Tela = Cor


Na década de 1960, Gotthard Graubner (1930-2013) trouxe a possibilidade do volume da pintura se fundir com o espaço, como uma esponja colorida na água. A cor distribui-se e cobre todo o espaço da tela/almofada de maneira a enfatizar os cantos - a borda interna do retângulo da tela dá assim a impressão de um torso.


Graubner cria Farbraumkörper - os corpos do espaço e da cor. E por isso,se afirma uma forte intenção da cor em se tornar um corpo - pelo uso de esponjas e tecidos que succionam e absorvem a tinta. As esponjas são ainda recobertas por um tecido transparente (Perlon) que potencializa o efeito espacial da cor. Graubner criou a palavra Farbleib (corpo colorido) para representar a transferência entre o elemento que faz a obra e a própria obra. Os seus Körperbilder são retratos.


Para Graubner, a sua fórmula é: cor = transformação do organismo = pintura.


Embora a fixação na parede não seja necessária, pois o objeto também pode ser colocado como uma almofada numa superfície horizontal, Graubner gosta de pendurar os objetos para que o observador tenha uma conexão direta com seu centro de energia - o solar plexus.


Tela = Corpo


Helena Almeida (1934-2018) nos anos 1960 e 1970, vive na tela e trabalha o suporte da pintura como se fosse um corpo, o seu corpo.


As primeiras peças de Helena Almeida, de 1967-68, recusam o uso simples das duas dimensões, rejeitam a pintura ótica e sublinham as propriedades tácteis e plásticas (qualidades que vão para além de qualquer olhar). A matéria e a superfície da pintura são manipuladas como um objeto. Helena Almeida repensa a pintura a partir dos seus elementos estruturais e inverte a sua lógica convencional. A pintura (ainda que pendurada na parede) literalmente sai da tela - o seu interior e a sua dimensão oculta passam a ficar a descoberto, passam a ser o seu exterior. Posteriormente, Helena Almeida usa até as suas pernas, os seus braços, o seu rosto e todo o seu corpo para habitar a tela.


Tela = Espaço


The discovery of the Cosmos is that of a new dimension, it is the Infinite: thus I pierced this canvas, which is the basis of all the arts and I have created an infinite dimension...’, Lucio Fontana


Lucio Fontana (1899-1968) ao cortar a superfície das telas criou um conceito espacial - o universo da pintura foi transcendido. As perfurações tornaram-se irreparáveis. Os cortes representam um espaço filosófico - e o espaço para Fontana não é mais uma abstração. Ele afirma que a tela não é mais um veículo pictórico.


Fontana corta a tela em busca de porosidade, de interioridade, de penetrabilidade, de infinitude, de escape, de objetualidade.


Inesperadamente, Fontana afirma a ambivalência de uma obra de arte - não é somente pintura, nem escultura, nem instalação, nem ambiente ou tecnologia. Novas dimensões associam-se agora à tela - o infinito, a espiritualidade, a dor física, o terror de criar, a negação da mente, a ansiedade do incerto, a liberdade do corpo, a ampliação do desconhecido.


Os diários de Etty Hillesum fornecem o motivo para discutir a transcendência da superfície de uma pintura. Etty é uma escritora com um intenso mundo interior, mas que não consegue encontrar palavras para escrever. Por isso trago à luz pintores que com a mesma necessidade, transferem para a tela a sua alma, o seu carácter, o seu cor, corpo e espaço na esperança de criar um novo objeto com vida.

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Martin Heidegger, Arte e Espaço.

 

Martin Heidegger no texto ‘Art and Space’ começa por citar Aristóteles através da frase ‘It appears, however, to be something overwhelming and hard to grasp, the ‘topos’ - that is place-space’ e explica que a formação de um objeto no espaço, acontece através de uma demarcação de fronteiras/margens que em simultâneo contornam e excluem. E é aí, que espaço acontece. O objeto formado corporiza algo mas diz sempre respeito ao espaço.


Heidegger questiona então sobre o que será espaço: Será uma expansão homogénea, equivalente em todas as direções mas impercetível aos sentidos? Ou será espaço, aquilo que pertence a um fenómeno primário cuja presença, ou existência, se encontra numa dimensão outra, inatingível que leva à ansiedade?


Heidegger escreve que não é possível entender o carácter único do espaço e por isso este permanece sempre obscuro. O espaço que se descreve em volta de um objeto continua por determinar.


Será este espaço a soma entre o vazio e os volumes cheios?


Heidegger sugere que espaço abre e liberta e por isso permite à pessoa de aí fixar-se e assim habitar. Abrir é desobstruir, é aliviar um lugar. Segundo Heidegger, abrir prepara um lugar para ser habitado. Abrir concede uma aparência às coisas e permite a possibilidade das coisas pertencerem umas às outras. O lugar abre uma região que junta várias coisas, que passarão a pertencer umas às outras. No âmbito do lugar, juntar, permite atribuir abrigo às coisas numa região. Região é uma expansão livre e permite que cada coisa se dilua.


O vazio está intimamente ligado ao lugar. O vazio coleciona, é contentor e prepara o lugar para receber. O vazio não é o nada. E não é o que resta. Existe para conquistar o lugar.


E Heidegger escreve enfim, que o espaço de um objeto abre a possibilidade de um lugar se materializar, e liberta regiões que permitem o homem habitar e aí viver. É o lugar que tudo relaciona. O espaço é o vazio que se abre para permitir a existência de um lugar - é talvez a casa da pessoa humana. E corporiza a verdade de ser. Nem sempre é necessário, a verdade ter um corpo, ou ter uma matéria. Às vezes basta pairar no ar e evocar harmonia.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Definição de Espaço segundo Georges Perec.

 

“We live in space, in these spaces, these towns, this countryside, these corridors, these parks. (…) We can touch. We can even allow ourselves to dream.” (Perec, 2008)

Em Species of Spaces, Georges Perec acentua o lado humano na vida dos espaços. Espaço não é o vazio, é o que está à volta do vazio. É o que acontece dentro desse vazio. Para Perec, não existe um único, perfeito e belo espaço, mas existem imensos, pequenos, múltiplos e divisíveis espaços, de tamanho diverso e de usos diferentes - um desses bocados de espaço pode ser um corredor que liga ao metro e outros, podem ser, por exemplo, o espaço da cama, ou o espaço do quarto, ou ainda o apartamento, a cidade e até mesmo o espaço determinado por uma linha que define a fronteira de um país. Mas, a principal preocupação de Perec, é entender o espaço como sendo a circunstância mais direta que permite a existência de interações humanas. Em termos de estrutura lógica, Perec distingue entre espaços existentes (descritos pela geografia), espaços inventados (feitos por seres humanos) e espaços virtuais (que existem apenas mentalmente ou no papel). Por exemplo, para Perec, o início do espaço inventado pode começar num desenho, numa folha de papel vazia: “This is how space begins, with words only, signs traced on the blank page” (Perec, 2008)

Os espaços podem também ser vistos como um inventário para os humanos. O espaço está sempre vinculado à atividade e ao seu uso, por exemplo no campo, o espaço é preenchido com animais, as ruas das cidades são preenchidas com carros e com pessoas, nas florestas com lenhadores. O espaço é, assim, um cenário idealizado, é uma garantia.

Como ponto de partida e para descrever os vários espaços que fazem parte da vida das pessoas, Perec começa por escrever sobre a cama (na qual passamos mais de um terço de nossas vidas) depois escreve sobre o quarto (e coloca a questão se, por exemplo, a cama muda, o quarto também?). Logo a seguir, descreve a casa com os seus diferentes espaços, que têm funções fixas baseadas no seu uso ao longo do dia e que se estabelecem naturalmente.

Perec, escreve também sobre portas, que fazem parar, que separam, que marcam transições, que partem mas que também juntam e que possibilitam a aproximação do espaço privado e do espaço público. Já as paredes permitem só dividir o espaço. Os edifícios de habitação formam alinhamentos e determinam a rua, que não pertence a ninguém, mas que liga uma casa à outra e que dá lugar ao contacto entre pessoas. A vizinhança é a porção de cidade mais acessível a pé a partir de casa e é diferente do lugar onde se trabalha.

“We live somewhere: in a country, in a town in that country, in a neighborhood, in that town, in a street, in that neighborhood, in a building in that street, in an apartment in that building (…) What quantity of space can our eyes hope to take in between our birth and our death?” (Perec, 2008)

Perec explica que é o campo de visão do ser humano que determina os limites do espaço e dá a ilusão de relevo e de distância. No fundo, espaço é o que prende o olhar. Espaço é sempre que existe um ângulo, onde existem arestas e existe sempre que duas linhas se juntam no infinito. Para Perec, a pura sensação do espaço real, que cada um de nós ocupa, poderá fazer esquecer o nosso rumo, o nosso estado de espírito, o nosso quotidiano, as nossas ambições, as nossas crenças e a nossa razão de ser. Perec gostaria que o espaço fosse uma entidade simplesmente estável, imóvel, impalpável, intocável. Mas, o espaço é uma constante pergunta, não é evidente, não pode ser incorporado, nem apropriado: “Space is a doubt: I have constantly to mark it, to designate it. It's never mine, never given to me, I have to conquer it.” (Perec, 2008)

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

Michel Foucault.jpg

 

Of Other Spaces: Utopias and Heterotopias de Michel Foucault.

Michel Foucault escreve, no texto Of Other Spaces: Utopias and Heteropias, que vivemos na época do espaço. Mas também na época da simultaneidade, da justaposição, do longe e do perto, do junto e do disperso. Para Foucault, o espaço parece dominar o horizonte das nossas preocupações. A noção de espaço tem uma longa história no mundo ocidental.

Segundo Foucault, a ideia de situar no espaço, substituiu o conceito de infinitude, de movimento constante e de abertura de Galileo, que veio, por sua vez, substituir o conceito medieval de posição estática. É a capacidade de situar que define as relações de proximidade entre os vários pontos ou os vários elementos no espaço. Situar ou localizar diz respeito à demografia. Foucault acredita que a forma do espaço é a forma das relações entre sítios. Para Foucault, ainda existem espaços sacralizados. E talvez, por isso, a vida das pessoas seja governada por um sem número de oposições que continuam invioláveis e intransponíveis - oposições entre o espaço privado e o espaço público; entre o espaço da família e o espaço social, entre o espaço cultural e o espaço útil, entre o espaço de lazer e o espaço do trabalho. Foucault acredita que não vivemos num espaço homogéneo, nem vazio. Pelo contrário, vivemos num espaço cheio e repleto de contradições, de percepções primárias, de sonhos e de memórias. Sim, existe o espaço da luz, da transparência, o espaço etéreo, e o espaço que se vê do cimo das montanhas, mas também há o espaço escuro, o espaço brusco, o agitado e o violento e o espaço que fica por baixo e por entre. Existe o espaço que flui como água e o espaço fixo, estagnado e congelado como pedra. Mas, para Foucault, estas considerações dizem sobretudo respeito ao espaço interior. E Foucault deseja, sobretudo, tratar do espaço exterior: “The space in which we live, which draws us out of ourselves, in which the erosion of our lives, our time in our history occurs, the space that claws and gnaws us, is also, in itself a heterogeneous space. In other words, we do not live in a kind of void, inside of which we could place individuals and things. We do not live inside a void that could be coloured with diverse shades of light, we live inside a set of relations that delineates sites which are irreducible to one another and absolutely not superimposable on one another.” (Foucault, 1984)

Vivemos entre espaços, vivemos numa intrincada rede de relações e entre sítios - transportes, ruas, comboios, cafés, cinemas, praias, casas e quartos.

Foucault interessa-se pelos espaços que têm a propriedade de estar em relação com todos os outros espaços, mas que fazem suspeitar, neutralizar ou inventar um novo conjunto de relações, como se de um espelho ou reflexão se tratasse. Esses espaços - designados por Foucault de utopias e heterotopias - estão ligados a todos os outros espaços mas contradizem-nos constantemente.

Foucault explica que, dentro de um conceito de espaço, utopias são espaços sem uma localização real. São sítios que, através de uma analogia direta, aperfeiçoada ou invertida, têm uma relação geral com o espaço real da sociedade em que vivemos. Heterotopias são espaços que existem em todas as culturas e em todas as civilizações. São espaços reais, que existem materialmente e que são formados dentro da própria sociedade. Apresentam-se como contra espaços. Fazem com que todos os espaços reais, que podem ser encontrados dentro de uma cultura, sejam representados ou contestados ou ainda invertidos. São espaços fora de todos os espaços possíveis, mas apresentam uma localização precisa na realidade. Estes espaços são absolutamente diferentes de todos os sítios e lugares a que se referem, reflectem e falam. O espelho é em simultâneo uma utopia e uma heterotopia, porque faz com que o espaço que o sujeito ocupa, no momento em que olha para si próprio, seja simultaneamente real e irreal. Sendo assim, para Foucault, heterotopias podem ser: espaços privilegiados, sagrados ou proibidos, reservados a pessoas que se apresentam em estado de crise ou desvio (colégios internos, campos para o serviço militar, destinos para a lua-de-mel, lares para idosos, hospitais psiquiátricos e prisões); cemitérios são lugares ligado a todos os seres e a todos os espaços de uma sociedade; teatros, cinemas e sobretudo jardins são espaços capazes de sobrepor, num único espaço real, vários espaços incompatíveis entre si (por exemplo, o jardim da Pérsia era um espaço sagrado capaz de juntar, dentro de um só rectângulo, quatro partes que representavam as quatro partes do mundo); museus e bibliotecas são espaços imóveis que acumulam tempo indefinidamente e contém todas as formas, todos os gostos e todas as ideias; as feiras são espaços cujo tempo é fluido, transitório, finito e precário; espaços que não são de completa e livre acessibilidade, para aí se entrar é necessário submeter-se a ritos e a purificações; espaços de ilusão que expõem sítios reais onde a vida humana está dividida e é ainda mais ilusória; e espaços de compensação, que pretendem criar um outro espaço real, ainda mais perfeito, mais meticuloso e mais ordenado.

...the boat is a floating piece of space, a place without a place that exists by itself, that is closed in on itself and at the same time is given over to the infinity of the sea (...) The ship is the heterotopia par excellence.” (Foucault, 1984)

 

Ana Ruepp

 

A FORÇA DO ATO CRIADOR

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Lugar e espaço.
 
'If a place can be defined as relational, historical and concerned with identity, then a space which cannot be defined as relational, or historical, or concerned with identity will be a non-place.', Marc Augé
 
A hipótese avançada por Marc Augé, no livro 'Non-Places. An Introduction to Supermodernity.', é a de que a supermodernidade produz não-lugares, isto é, espaços que não são em si lugares antropológicos, são simplesmente lugares de memória circunscritos a um sítio específico.
 
Lugar e não-lugar são extremos opostos, mas o primeiro nunca deixa de existir e o segundo nunca chega a completar-se. 
 
Os não-lugares são a verdadeira medida do nosso tempo: 'one could quantify them by totalling all the air, rail and motorway routes, the mobile cabins called 'means of transports', the airports and railway stations, hotel chains, leisure parks, large retail outlets and finally the complex skein of cable and wireless networks.'
 
A distinção entre lugar e não-lugar é gerada na oposição entre lugar e espaço. Espaço, para Augé, é o lugar frequentado, é a intersecção dos corpos em movimento - porque é a presença do homem que transforma uma rua, geometricamente definida como lugar pelos projectistas, em espaço. Lugar é o conjunto dos elementos físicos que coexistem segundo uma determinada ordem. 
 
O espaço é existencial - ambíguo, transformável e influenciável. O lugar é geometria - área, volume, proximidade e distância. 
 
Uma narrativa, em forma de mapa ou itinerário, tem o poder de transformar o lugar em espaço e o espaço em lugar. As narrativas atravessam e reorganizam o lugar segundo um sistema de signos. 
 
A experiência de um espaço permite ao homem, reconhecer-se a si próprio e ser ao mesmo tempo, outro. O espaço é também a frequência de vários lugares que são entendidos segundo uma visão parcial e incompleta - é a memória que reconstitui a forma do lugar e constrói uma relação ficcional entre o olhar e o que se observa. 
 
'A lot of tourism suggests the position of spectator as the essence of the spectacle. The traveller's space may thus be the archetype of non-place. Thus it is not surprising that it is among solitary travellers of the last century that we are most likely to find prophetic evocations of spaces in which neither identity, nor relations, nor history really make any sense; spaces in which solitude is experienced as an overburdening emptying of individuality, in which only the movement of the fleeting images enables the observer to hypothesize the existence of a past and a glimpse the possibility of a future.', M. Augé
 
A experiência do não-lugar, como um retorno ao próprio ser, permite uma distância maior do espectador e do espectáculo. A existência do não-lugar permite ao homem perder-se na multidão com o poder absoluto de se afirmar inversamente na sua exacerbada consciência individual.
 
 
Ana Ruepp