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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


A profundidade do espaço urbano começa no momento em que o espaço interior se transforma em espaço exterior.


“.. Architecture produces desire. The exhilaration we find when we walk into the space between or inside certain buildings produces a kind of psychological space. It can represent an experience we never had before and want to see more of.”, Steven Holl (Holl 2008, 29)


Steven Holl no livro “Urbanisms. Working with doubt”, escreve que a dúvida deve fazer parte de um projeto urbano. É a dúvida que suspende o absoluto e a perfeição e que permite a construção de sistemas mais dinâmicos e abertos. Steven Holl é da opinião de que o poder experimental das cidades não pode ser completamente racionalizado, deve sim ser estudado subjetivamente.


A subjetividade associada assim à dúvida pode ajudar a recuperar a importância de características fenomenológicas no contexto urbano. São o espaço, a matéria, a luz, a cor e o som que acentuam e incentivam as perceções de cada indivíduo e podem dar profundidade à realidade objetiva.


A experiência urbana cheia de contradições e incoerências pode, deste modo, ser imensamente enriquecedora para o ser humano. Para Steven Holl, a verdadeira tarefa do urbanista deve sobretudo acentuar valores relacionais e de conexão, de maneira que a arquitetura de pequena escala possa ser o elemento primeiro, apto a gerar essas necessárias ligações.


Steven Holl explica que é a arquitetura que tem a capacidade de envolver e de introduzir diferentes dimensões ao espaço. A profundidade do espaço urbano começa no momento em que o espaço interior se transforma em espaço exterior, na ocasião em que a circunstância se converte em algo intrínseco e interno. É a flexibilidade, a complexidade e a metamorfose espacial que aumentam e potenciam a expansão de cada indivíduo. Assim que a arquitetura é incomensurável, sem limites conhecidos e aceita justaposições, possibilita que o espaço tenha sempre a capacidade de se tornar e de vir a ser - será espaço em potência.


Para Holl, a arquitetura deve assim ser porosa, em que espaço e movimento se interpenetram constantemente. A arquitetura objeto, sólida, estável e maciça deve dar lugar a fenómenos experienciais diversos e a sequências espaciais independentes de qualquer direção. Através do tempo, é a arquitetura que permite o encontro - livre, experimental e verdadeiro - do indivíduo consigo próprio, com outros indivíduos e com o mundo que o rodeia.


“The recognition of spatial and material phenomena meets the imagination.” (Holl 2008, 29)


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Por uma nova ciência do espaço urbano.


Em 1972, Henri Lefebvre em entrevista (Régnier, Michel. 1972. “Entretiens avec Henri Lefebvre.” L’Office National du Film du Canada. Youtube.) explica que o período urbano atual ainda é pensado de acordo com os princípios estabelecidos durante o período industrial. Para Lefebvre todas as noções símbolos, ideias, conceitos, práticas e representações deveriam ser repensados para de facto passarmos a um período verdadeiramente urbano.


Os problemas urbanos são problemas mundiais e devem portanto ser atualizados. O espaço urbano ainda não foi na realidade reformado, porque as noções de tempo e de espaço numa cidade ainda estão por desvendar. Sendo assim o espaço segrega-se, a população dispersa-se e todos os elementos da sociedade dissociam-se da vida social. Na opinião de Lefebvre, ainda está por descobrir a solução para a reunião e o encontro entre as pessoas que habitam uma cidade.


Nunca na verdade foi feita uma reforma urbana, tal como aconteceu na primeira metade do séc. XX com a reforma agrária. Marx, Engels e Lenine pensaram que a força mais eficaz que seria capaz de questionar a estrutura da antiga sociedade e assim conceber uma sociedade completamente nova, seria a classe operária e o proletariado e assim se deu a reforma proletária sobre o solo cultivado. Porém semelhante reforma não se deu na cidade.


Para Lefebvre a questão da propriedade do solo construído, do solo da cidade é tão importante quanto a questão do solo cultivado. A cidade precisa de uma reforma urbana, que seja profunda o suficiente para ser capaz de influenciar toda a sociedade e toda a sua estrutura. Para Lefebvre, vivemos numa sociedade de classes e isso está bem visível na forma com a cidade está construída.


A questão da especulação imobiliária tornou-se uma questão preocupante, porque sem mecanismos eficazes de controlo da força do mercado imobiliário e dos interesses instalados, por parte do estado, nunca se irá permitir que nenhum planeamento, por melhor que seja, se cumpra.


Para Lefebvre, grave é sobretudo a questão do solo construído que é ainda e sobretudo controlado pelo capital privado. O solo da cidade é tão importante como o solo cultivado. Sem uma reforma urbana nem arquitetos, nem planeadores sozinhos serão capazes de transformar uma cidade e por conseguinte fazer emergir uma nova sociedade.


Ao mesmo tempo que a sociedade atual se urbaniza cada vez mais, assiste-se a uma espécie de ruralização do fenómeno urbano. Assiste-se a uma assimilação num determinado meio de comportamentos, valores, atividades e atitudes consideradas rurais. Aqui ruralização significa que as pessoas vindas de um meio rural para a cidade não se conseguem adaptar e integrar a nível cultural, social e económico. Simultaneamente assiste-se também a uma reruralização do campo - que contribui para uma maior separação entre a cidade e o campo. Os subúrbios e as periferias não são uma síntese harmoniosa e não ajudam na transição entre estas duas realidades. Segundo Lefebvre, a urbanização da sociedade e a sua simultânea ruralização gerou um processo dialético contraditório.


Ao falar em segregação, Lefebvre refere-se aos espaços particulares que as diferentes camadas e classes de uma determinada sociedade ocupam. Ao estar tudo separado, através do fenómeno moderno da funcionalização, a vida social e pública deixa de existir. Lefebvre explica que no passado as cidades não apresentavam espaços especializados e tinham uma vida urbana intensa - por exemplo a praça do mercado ao apresentar um conjunto de atividades e ao ser polifuncional permitia o encontro entre pessoas mas também permitia a expressão de opiniões e decisões políticas por parte de um ou vários grupos.


Para Lefebvre, um espaço especializado é um espaço morto. A comercialização dos espaços supõe que cada espaço esteja separado para que possa ser vendido e comprado. A especialização do espaço, na opinião de Lefebvre é um fenómeno que advém da divisão do trabalho em parcelas, é consequência de uma sociedade profundamente especializada. Cada espaço de uma cidade atual é preenchido por uma determinada atividade que ocorre num momento preciso do tempo. Se esse momento termina, por qualquer motivo, a atividade perde-se e o espaço esvazia-se. Vivemos, por isso numa sociedade que se constrói através de infinitos espaços fragmentados, isolados e perdidos.


Lefebvre explica que entre 1960 e 1970 foram colocadas ilimitadas esperanças no urbanismo. Durante essa década acreditou-se ser possível fazer do urbanismo uma ciência nova, eficaz e reformadora da vida social. Mas na verdade, o urbanismo por si só, por enquanto, reduz-se a um conjunto de considerações ideológicas e de ações concretas que equilibram uma determinada vontade pública e um interesse privado específico. O urbanismo atual deseja somente a rentabilidade imediata e corresponde a medidas de curto prazo.


Lefebvre adianta porém que não se deve abandonar a ideia de criar uma nova sabedoria ou ciência do espaço, que não se funda através de leis administrativas mas que se gera sim por uma nova longa elaboração da noção de espaço e da noção de tempo-espaço. Esta nova noção de espaço deverá prender-se naturalmente à noção de espaço habitável - e está nas mãos dos filósofos e dos poetas encontrar o verdadeiro significado de habitar. A ideia de espaço como: vivência, presença, memória, multiplicidade, complexidade, permanência, obra de várias atividades humanas, constante relação com um lugar e com o cosmos, materialização de pequenas realidades (onde se pode conhecer e sentir mais, permitindo a construção de diferentes interpretações e pontos de vista diversos acerca da ideia de que se tem do mundo) - é uma ideia poética muito poderosa e poderá reformar a cidade em que vivemos.


“Le Corbusier a cru faire un travail révolutionnaire mais en réalité il a fait le project architectural du capitalisme monopolistique d'état et aussi du socialisme d'état!”, Henri Lefebvre (Régnier 1972)

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  

 

Espaço é um instrumento hegemónico poderoso.


“(Social) space is a (social) product.” (Lefebvre 1991, 26)


No livro The Production of Space, Lefebvre avança com a ideia de que ao mudar-se a vida e a sociedade, deve inevitavelmente revolucionar-se o espaço. Lefebvre acredita que a pessoa humana comum é um ser social capaz de produzir a sua própria vida, a sua própria consciência e o por isso também produz o seu próprio espaço: “...each living body is space and has its space: it produces itself in space and it also produces that space.” (Lefebvre 2008, 170)


Lefebvre explica que a cidade é a materialização de dois circuitos de capital. O circuito primário diz respeito ao investimento de capital em mão de obra, em materiais e em máquinas de maneira a produzir produtos que possam ser vendidos no mercado e de modo a gerarem lucro que de novo poderá ser aplicado em novos investimentos. O circuito secundário diz respeito aos bens imóveis, ao capital investido em propriedade e no seu lucro. É através destes dois circuitos que se avalia a estabilidade, o rejuvenescimento e o declínio de uma cidade moderna.


Na cidade, na opinião de Lefebvre, o capital é hegemónico. Por isso é o capital que produz o espaço da cidade. O espaço ao ser produto de uma sociedade é necessariamente uma rede de relações sociais - é um produto social. Cada sociedade produz um espaço único, adaptado às suas necessidades e condições.


Na sociedade, os seres humanos produzem espaços sociais. As relações sociais, que são abstrações concretas, não têm existência real, mas existem e concretizam-se através do espaço. O espaço é assim, um produto e um meio de produção. O espaço é tão importante ao produzir o ambiente em que vivemos, porque somos constantemente moldados e influenciados pelo espaço que nos rodeia. O papel do governo é vital na determinação e conceção espacial de uma cidade - ao ter a capacidade para atrair investidores, ao possuir grande parte da propriedade e ao ter a competência legal para impor condições e sanções.


O espaço urbano é assim propriedade daqueles que têm dinheiro e poder. É pensado e concebido por um determinado conjunto de pessoas com determinadas necessidades e vontades mas é de facto vivido e experienciado por outro conjunto de pessoas (o indivíduo comum) que tem de se adaptar e obedecer a regras pré-estabelecidas. Para Lefebvre, o espaço real e vivido é um resultado do concebido e do percecionado. E as ideias dos proprietários e gestores de um determinado espaço nem sempre coincidem com as ideias do indivíduo comum que experiência e que utiliza esse espaço. Existe, por isso, naturalmente uma tensão entre o indivíduo comum e o capitalista. Na opinião de Lefebvre, essa tensão, materializa uma forma de repressão e esmagamento do indivíduo comum pelas classes dominantes.


Espaço é e sempre foi um instrumento hegemónico poderoso. Sobretudo se é a concretização do domínio, da manipulação, da exploração e da influência extrema de um conjunto de pessoas em relação a outro. Apesar de ser criado pelo ser humano, é um produto do poder e o indivíduo comum não tem nunca hipótese de criar o seu próprio espaço. A sociedade moderna só produz assim o espaço requerido e pensado pelo capital e pelo investidor.


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

Le Beau Marriage.jpg

 

Le Beau Marriage’ e o espaço urbano como impulsionador das ligações humanas

 

“The seventh art is the ultimate refuge of the believe in another life.”, (Barecque e Herpe 2014, 344)

“J’ai toujours été attiré par ce lien entre l’organisation d’une ville et la construction d’une fiction.”, Eric Rohmer (Baecque 2002)

A vida, nos filmes de Rohmer, é prometedora. Em ‘Le Beau Marriage’ (Rohmer 1982), Sabine está sempre em deslocação, em movimento:

“Sabine - Je ne me sens bien nulle part, ni ici, ni à Paris.” (Rohmer 1999)

Sabine revela a procura por uma ficção, por uma recriação da sua vida. Deseja não ser mais a espectadora sempre deslocada e em movimento. Esta personagem de Rohmer incorpora a aproximação da aspiração por um determinado ideal e da vida quotidiana real.

“Rohmer managed to establish cinema as a horizon of expectation capable of transfiguring the most banal reality.” (Baecque e Herpe 2014, 343)

Sabine desloca-se incessantemente entre Paris e os arredores mas o seu centro e o seu desejo está em Paris.

Na origem das Comédias e Provérbios está sempre uma utopia que falha, porque tudo é uma espécie de epifania da banalidade. Todo e qualquer desejo é envolvido teatralmente por uma realidade (que é inesperada, imprevisível, diversificada e enriquecida infinitamente) igual à realidade de qualquer um dos espectadores. Talvez porque Rohmer acredite que esta aproximação seja a única maneira de reabrir os olhos a todos aqueles que veêm os seus filmes. (Baecque e Herpe 2014, 324)

Os filmes de Rohmer são ficção sob a máscara do documentário. As personagens situam-se no mundo contemporâneo. E em ‘Le Beau Marriage’ Sabine deseja romper com a sua vida actual, deseja sair do seu meio e situar-se num lugar preciso. Este desejo de mudança advém talvez do seu deslocamento permanente e tão contemporâneo. Sabine vive dividida entre três sítios diferentes - estuda e vive em Paris, desloca-se de comboio para Le Mans, para trabalhar, e vai de carro para casa da mãe em Ballon, onde ainda tem um quarto. Sabine tenta estar em todo o lado, mas está sempre presa a todos os sítios - porque os três sítios se completam e é a soma dos três que formam a sua vida.

Nos filmes de Rohmer as personagens que vivem nos arredores da grande cidade (sempre Paris) acabam sempre por sentir a pressão de viver uma vida descentrada e anseiam por uma outra vida, sonham em sair do seu meio. (talvez em ‘L’ami de mon amie’ Cergy-Pontoise represente pela primeira vez uma cidade súburbio perfeita que não necessita de Paris para existir...)

Ao longo do filme apercebemo-nos que as ligações urbanas constantes (o andar, o movimento, a multidão) possibilitam a existência das ligações entre personagens. Há espaço para encontros e desencontros (entre personagens e da personagem consigo própria). Há cidades cheias e ruas vazias, campo a perder de vista, comboios com passageiros e carros a circular.

James Hillman, no texto ‘Walking’ relembra a importância do encontro com o outro, no contexto urbano contemporâneo: “Our face belongs to others as well as to ourselves and results from others.”, (Hillman 1980, 2)

Nos filmes de Rohmer a cidade, isto é, o mundo físico exterior, promove o encontro humano. As suas histórias desenvolvem-se sempre que as personagens se encontram e se desencontram nas cidades, nos transportes, na periferia. E não há medo em enfrentar o outro, porque aí se entende que a existência das cidades depende desse amontoar de pessoas. Depende do movimento das pessoas para a sua vitalidade - depende da complexidade das ruas, dos diversos níveis e velocidades de circulação, das diversas perspectivas e dos muitos momentos de pausa.

E Hillman continua: “... as you know the most important reason for going from one place to another is to see what’s in between...”

Há perigo das cidades desaparecerem assim que a velocidade de deslocação aumenta - ninguém olha para ninguém, as pessoas não param, as caras são eliminadas.

Richard Misek em ‘Mapping Rohmer: Cinematic Cartography in Post-War Paris’ (2012) assegura que nos filmes de Rohmer ainda há pessoas a olhar umas para as outras, a deslocarem-se, a andar (a pé, de carro e de comboio) nas cidades e entre cidades e assim concretizam-se movimentos a várias velocidades em rede, entre ruas e entre transportes. E aqui a cidade é o meio por excelência que promove o ser humano como um ser que anda no meio de outras pessoas. O espaço urbano é delineado pelos movimentos dos personagens. Rohmer chega a afirmar que num filme “...you have to show the relationship between a man and the space he inhabits.” (Misek 2012)

Rohmer não reorienta e não reconstrói ou reimagina o espaço urbano e não se demora nem a amplia o que é excepcional:

The filmmaker takes the world the way it is, the architect modifies it (...) Destroying the past is extremely dangerous, it’s very serious... The architect (...) is working in reality.”, Eric Rohmer (Baecque e Herpe, 381)

Sabine é diferente de acordo com o espaço em que se movimenta - a mudança que anseia acontece como uma reacção contra a vida que leva e contra o espaço em que habita e no qual se desloca. Em ‘Le Beau Marriage’ o inesperado acontece no movimento em rede entre cidades, no subúrbio e no campo.

Rohmer segue os seus personagens que se movimentam em linhas rectas, ao longo das ruas de Paris e que se demoram nos cafés, nos restaurantes, em praças e em parques. Os caminhos das personagens fazem também parte de longas linhas de movimento e estendem-se até aos subúrbios através dos transportes - mas são sempre jornadas que permitem tempo e espaço para a contemplação, para a surpresa e até para o milagre...

À medida que as personagens se movem no espaço em rede, as personagens relacionam-se com outras personagens e o encontro acontece em espaços onde se pode ver e ser visto. Sabine está a procura de ligações significativas e do impossível.

Segundo Misek, a aproximação de Rohmer ao espaço urbano em movimento equilibra as tensões que existem entre documentação e reconfiguração, simplicidade e complexidade, rapidez e demora, mapa e caminhada, tridimensionalidade a bidimensionalidade - porque na verdade é assim que o ser humano se relaciona com o espaço, quando se percorrem as ruas de uma cidade nunca a totalidade é apercebida. Veêm-se bocados que só se ligam quando são percorridos todos os seus caminhos.

 

Ana Ruepp

 

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

O espaço urbano segundo Henri Lefebvre.

 

‘I really love this idea that a utopia should be categorized by the meaningful interactions between people, that a society is “perfect” not because of how well-off the inhabitants are, but because of the happiness they’ve found amongst one another.’, Henri Lefebvre

 

Henri Lefebvre afirma que o espaço urbano necessita de uma reforma capaz de harmonizar noções de tempo e de espaço e capaz de eliminar qualquer tipo de segregação. Na verdade nunca se assistiu a uma reforma urbana profunda, capaz de influenciar a sociedade, na sua ordem e na sua estrutura. Segundo Lefebvre, o urbanismo tende a ser fragmentário, de curto prazo e de consumo imediato - reduz-se a uma mistura de considerações ideológicas que resultam de um conjunto de medidas administrativas, tomadas entre o poder público e os interesses privados. 

 

Para Lefebvre, o funcionalismo urbano modernista tudo separa. No passado, a cidade apresentava uma vida urbana intensa porque era polifuncional - por exemplo, a praça servia de mercado, de espaço de encontro, de espaço de expressão e de discussão de ideias e até de espaço de decisão política. O modernismo trouxe a especialização e o isolamento dos espaços. O funcionalismo corresponde à divisão do trabalho parcelar cada vez mais específico no conjunto da sociedade - um espaço especializado, é um espaço perdido, pois é preenchido apenas por uma determinada atividade em certo momento. 

 

Como foi visto na semana passada, Lefebvre argumenta que são os gestos mais pequenos e simples do dia a dia que transportam todo o saber do ser humano e essa consciencialização deve ser o centro da sua existência, da sua vida. Como materializar então um espaço que acompanhe esta mudança e que elimine a tendência contemporânea de alienação e da falsa ideia de que a vida do dia a dia é aborrecida e que poderá destruir o ser humano? Mas é preciso não esquecer, que a vida do dia a dia que deve ser valorizada e a que Lefebvre se refere, não é a vida urbana desgastante que se encaixa entre a deslocação - o trabalho - o dormir. É uma vida que valoriza o ser humano como ser pensante (e até mesmo hesitante) que sonha, que se exprime, que está atento aos momentos de revelação, de claridade emocional, de presença do ser e que pode levar a um preenchimento e a uma totalidade. Sendo assim, ao mudar-se a vida e a sociedade, deve inevitavelmente revolucionar-se o espaço.

 

Por isso, para Lefebvre, o verdadeiro espaço urbano deve ser polifuncional, deve ser um compromisso físico social, cheio de significado, entre habitantes que vivem integrados numa rede interminável de relações, num determinado tempo e num determinado espaço.

 

Lefebvre, na verdade, pensa que os urbanistas e os arquitetos deveriam refletir mais sobre o que é um espaço habitável. Se na vida urbana se assiste a um desaparecimento do conceito espacial de habitar poderá paralisar-se o conhecimento e a imaginação do ser humano. Lefebvre deseja acreditar que o reencontro com o verdadeiro sentido do habitar poderá ser descoberto e resgatado através da poesia e da filosofia.

 

O espaço urbano deverá assim ser concreto e não absorto. Deverá ser um influenciador ativo nas relações sociais. Deverá ser uma centralidade que faz coincidir o espaço do pensamento, com o espaço vivido, com o espaço percecionado e com o espaço concebido. Deverá promover a heterogeneidade, a integração, a subjetividade, a criatividade e o divertimento. Lefebvre propõe acima de tudo criar um espaço urbano através da intuição humana mais próximo do sujeito e não através de uma mente altamente treinada, lógica e abstrata. 

 

Uma mudança social só poderá vingar se o espaço onde vivemos nos permitir a liberdade de apropriar e de manipular - Lefebvre afirma mesmo que poder sobre o espaço é poder sobre a vida! E talvez seja através da presença física e do corpo que experiencia, que poderá concretizar-se a reforma urbana que se anseia. O corpo do ser humano é vibração, é frequência, é energia e está em constante comunicação com as energias que o circundam - tudo se transforma e influencia mutuamente numa relação constante (todas as vidas e todas as suas formas se intersecionam perpetuamente, como num fluir interminável). O corpo é o espaço físico último capaz de juntar espaço e tempo. Quanto mais liberto o corpo, mais presença e expressão física terá - mais facilidade haverá para que se crie uma nova linguagem espacial apropriada e múltipla. Quanto mais participado, mais heterogéneo, mais complexo, mais polifuncional for o espaço urbano, onde se desenrola a vida, mais adequado será para que o ser humano seja total.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

O espaço urbano e o encontro do eu mais profundo.

 

‘A cidade favorece a arte, é a própria arte.’, Lewis Mumford

 

Giulio Carlo Argan, em ‘História da Arte como História da Cidade’, declara que a arte pode revelar a experiência urbana individual real. Diz ainda que Gaston Bachelard (no livro ‘The Poetics of Space’) ao estudar a casa da infância constrói um modelo sobre o qual se funda grande parte da psicologia individual – isto é, um modelo onde se constroem as imagens mais profundas de espaço e de tempo.

 

Desde muito cedo, a arquitetura (real ou imaginada) é motivo de pintura. A presença da arquitetura permite situar o homem no seu contexto temporal, social, político, histórico, moral e sensível. A propósito da exposição ‘Building the picture: Architecture in Italian Renaissance Painting.’, que esteve patente na National Gallery em Londres, em 2014, Peter Zumthor em entrevista afirma que os objetos arquitetónicos são de facto sempre concretos e nunca abstratos porém têm de ter a forma de uma alma.

 

Neste contexto, o espaço arquitetónico (no qual também está incluído o espaço urbano) é entendido como um campo de mútua interação entre a esfera espiritual e a esfera física. Segundo Argan, o espaço urbano é por excelência um espaço visual. E por isso, existe uma infinita variedade de valores simbólicos que os dados visuais do contexto urbano podem assumir em cada indivíduo. E a arte existe como modo de acentuar a memória, a identidade, o tempo e o lugar do homem. E assim ajudar na construção da alma da cada indivíduo.

 

O conceito de espaço arquitetónico - ideal (abstrato, puro) e real (físico, vivencial) – aproxima-se da arte. O homem é o elemento central da arquitetura. A arquitetura é uma disciplina que tem a capacidade de cruzar o sensível com o inteligível, o corpo e o mundo, a intuição e racionalidade. E da relação e do entendimento do homem com o espaço pode surgir o encontro com o seu eu mais profundo.

 

No texto ‘Walking’ de James Hillman, a cidade é, por excelência lugar de reflexão. É manifesto de profundidade, onde perceção se confronta com sensação. A realidade é, segundo Hillman, construtora do eu. Em períodos de maior perturbação psicológica, andar pode atuar como terapia. Andar permite o fluir dos pensamentos, a clarificação das ideias, o encontro com o princípio da vida (‘As we walk, we are in the world, finding ourselves in a particular space. If we cannot walk, where will the mind go?’). Mas pode a cidade permitir esta cura psicológica? A cidade tem de oferecer desafios para a alma, implicando descobertas sucessivas – ‘When we no longer walk, what happens to the soul? I am as I move’ ‘…the foot should never travel to it by the same path which the eye has travelled over before…’ ‘…stopping the progress of the walk, forcing the foot to turn and the mind to reflect’.

 

James Hillman propõe resolver os mistérios da natureza humana. A vida humana segue uma imagem particular – o Homem tem um destino, tem um fazer e um ser individual que pertence à espírito e não ao corpo. O Homem não consegue descobrir a extensão da sua alma, tão profunda é a sua natureza. Do que o Homem fizer na sua vida dependerá que se torne ‘alma pura’.

 

A inspiração é o encontro absoluto do Homem consigo próprio. O movimento das coisas do mundo aparentemente simples leva ao fundo do ser. Essas coisas têm de aceitar as projeções do Homem, experimentar sentimentos, recordações e intenções. Precisam de subjetividade e profundidade para que se associem à procura do Homem pela sua alma. Para que a cidade pertença ao Homem tem de se tornar identificável e permitir o fluir do conhecimento do eu (lugar de reflexão) através do confronto com os outros (lugar de relações humanas). A cidade ao ser objeto identificável pode ser construtora da alma.

 

Ana Ruepp