A FORÇA DO ATO CRIADOR
Anne Hardy e os espaços que ficam entre.
‘The city is one gigantic instrument to me.’, Anne Hardy
‘Cell’ (2004) de Anne Hardy encerra um espaço que expõe a pura e dura verdade das coisas que assim se relacionam sem artifícios.
Anne Hardy usa como matéria prima os bocados de cidade esquecidos e tudo o que neles está contido. São por natureza espaços sombra porque são ignorados e desprezados intencionalmente. São espaços restantes, que se situam à margem e que acumulam aquilo que se deseja eliminar.
Porém para Anne Hardy estes espaços expectantes, que ficam entre, têm o grande potencial de sugerir algo novo e inesperado, algo que não existia antes. Ao estarmos oprimidos pelas nossas rotinas diárias, estes espaços podem representar o escape - pelo diferente ritmo, pela capacidade de poderem estimular a imaginação. Os espaços urbanos que percorremos diariamente são propositadamente concebidos para limitar e direcionar as nossas ações, de modo a tornar os nossos movimentos e comportamentos mais rápidos, eficientes e previsíveis. Os espaços a que Anne Hardy se refere revelam a possibilidade do imprevisível, do desconhecido.
Anne Hardy coleciona materiais, coisas, restos do que fica entre, do que fica atrás, por baixo, que flutua, que é considerado inútil, que de repente fica inusitadamente à mostra. E com isso Anne Hardy constrói intuitivamente novos espaços. Como se de um envelope para o que se coleciona se tratasse.
‘I see them (the places I create) as a kind of mapping process of these areas: ones that I think of as the soul of the city or place they are part of, where all the loose ends, feelings and thoughts collect.‘, Anne Hardy
O novo espaço criado, ao ser fotografado e mostrado, destabiliza porque nos transporta para um ambiente saturado de objetos acumulados que nos são familiares mas que ficaram esquecidos, que foram deixados para trás. Anne Hardy fala na possibilidade destes espaços representarem a alma da cidade (com tudo o que tem de positivo e de negativo). De mostrarem as coisas tal como elas são (obrigam a uma ligação à realidade e assim poderão mostrar o verdadeiro sentido da vida). São como um inconsciente coletivo - porque todas as coisas abandonadas transportam memórias, revelam o que se quer esconder, projetam pensamentos que estão no fundo de nós mesmos, mas que nos formam e que determinam quem somos. E ‘Cell’ (2004) é a imagem do inesperado, do que está para lá do nosso controlo, feito de coisas encontradas à deriva. A atmosfera particular criada é feita de coisas de todos nós. É um todo fechado e consistente mas feito de partes e fragmentos que a todos nós pertenceram. É como se fosse a negação de um espaço porque é formado por coisas descartadas, e refere-se a sítios que preferíamos que não existissem. E por isso é um espaço livre, selvagem, descontrolado e um espaço orgânico por excelência - está cheio e parece que se encontra em constante mudança, mutação e adaptação.
‘When I begin, I don’t know how the end result will be, as it’s the result of a process of working with materials, sounds, as well as the particular characteristics of the space the piece will exist in.’, Anne Hardy
Os espaços criados por Anne Hardy, tal como ‘Cell’ revelam um processo. É através de um processo de ações de procura e descoberta que os espaços vão tomando forma. A construção física dos espaços é feita por uma série de acidentes e erros produtivos. A lógica espacial é a lógica do processo e do tipo de relação que as várias partes e objetos vão ter. O espaço ao ser fotografado passa a estar encerrado, fechado, completo, limitado e passa a ser uma realidade paralela, uma possível versão do dia-a-dia.
‘Cell’ é um espaço fora do tempo, deixado em aberto, totalmente subjetivo, vulnerável, sensível, em mudança, em desenvolvimento (com ritmo e pulsação própria). E que tem o tudo e o nada, o finito e o infinito, a acumulação e a negação em simultâneo.
Ana Ruepp