Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

Uma esperança é algo que se passa no presente e prova que já estamos a viver uma coisa melhor

  
    “The Dynamic Eye”


A proposta é a de que talvez possamos deitar mão de uma realidade que compreenda o que está completo e em aberto ao mesmo tempo.

Nada é idílico. Tudo sai de tudo, mas é preciso ver o que sai de importante quando há desejo, e esse desejo inclui a liberdade e a imaginação.

Os movimentos de superestruturas e o dos grupúsculos que se querem fazer passar por mundo, não são desejos enquanto elementos culturais – o próprio entendimento da sexualidade, a liberdade, a misericórdia, a empatia, o cumprimento do melhor e mais justo bem-estar, sim, são desejos, trazem novas realidades que acossam o que a maioria desejaria viver.

Por aí um caminho!

Um caminho dificílimo que só um bom violino sabe tocar.

E os políticos saberão que um bom violino escapa a qualquer IA?

E se aproveitarmos as reflexões quando tudo pode estar num aberto que não estamos a ver, e do qual não estamos a valer-nos no tempo certo para uma remodelação que arrisque propostas?

Propostas de se viver com menos mitos e menos dogmas e com a possibilidade de mais realidades incodificáveis que não tenham no dinheiro o discurso paranóico da obediência?

E nada resulta no idílico, mas pode-se fazer ainda imensas coisas que noutras situações não estávamos suficientemente atentos e motivados para compreender a sua urgência.

O tempo não é o das gentes se deixarem abafar, nem é tempo de nos deixarmos aborrecermos com tudo.

Que tal operar uma descontinuidade no que de facto estava errado?

Que tal acarinhar o que de facto estava a melhorar as condições de vida dos povos?

Que tal as magias serem uma especial atenção para as realidades-evidência que tanto expõem o quanto há que melhorar face à infelicidade dos mundos dos gritos e dos silêncios?

Por aí um caminho!

Um caminho dificílimo que só um bom violino sabe tocar.

E os políticos saberão que um bom violino escapa a qualquer IA?


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

Be the change that you want to see
Gandhi

 

tbv _2out.jpg

 

As realidades do mundo atual que envolvem as desigualdades crescentes, os colapsos climáticos, as crises que envolvem défices democráticos, as guerras cruéis, tudo numa amálgama de onde surge uma ausência de esperança e um pessimismo crescente face à nossa capacidade para reagir, implica, decisivamente, uma resistência criativa para que do facto consumado se reaja criando mundos que ainda não existem.

Uma busca com resposta é a que procura realizar futuros diferentes envolvendo novos processos de análise e reflexão na busca para o bem, corrigindo, igualmente, tanto quanto possível, os mais tremendos erros cometidos no passado.

O exercício de uma objetividade mais atenta pode permitir-nos ver como desfazer o que está mal ou criar alternativas credíveis a uma substantiva luta.

Julgamos que o presente reconhecerá os motivos da agonia se não imaginar apenas já ter ultrapassado  a mercantilização de muitos passados e se não recear deitar mão da utopia que tão necessária tem sido ao arranque concreto de tempos novos.

Necessariamente há que imbuir a razão de grande intuição e de sincera comoção a fim de que se não tropece num novo mundo fantasiado num hipotético topo, mas antes se esclareça que nunca devemos desistir de um mundo melhor, combinando crítica com imaginação.

Nestes tempos tão difíceis temos de conseguir entrever a forma de corporizar as alternativas e deitar mão à esperança, não permitindo que em nós cresça a desconfiança generalizada nas instituições democráticas, e no declínio dos valores humanos.

Precisamos de dar voz à voz e concretizar outras maneiras de ser, nomeadamente começarmos por ser a mudança que tanto desejamos, nunca permitindo a perda de um futuro para mundo.

 

Teresa Bracinha Vieira

 

 

SOB A INVOCAÇÃO DA ESPERANÇA

  
  Cardeal Pietro Parolin © Agência ECCLESIA/HM


A presença em Portugal do Cardeal Pietro Parolin constituiu um acontecimento que merece destaque, uma vez que teve lugar no âmbito do Ano Jubilar de 2025, que vivemos sob a invocação da Esperança. As palavras que o Secretário de Estado da Santa Sé proferiu na Fundação Calouste Gulbenkian constituem afirmações de especial importância, considerando o momento que hoje se vive de incerteza, de guerra em fragmentos e de ausência de regulação no sentido da paz. O Compromisso com a Cidade constitui uma exigência destes tempos de instabilidade, pelo que a proposta de sermos Peregrinos da Esperança revela uma especial responsabilidade para todos. Neste Jubileu das Autoridades houve, assim, um apelo muito forte no sentido de haver um empenhamento para que compreendamos os sinais dos tempos, de modo a criar condições para uma cultura de paz e de justiça, onde todos caibam, como foi muito claramente proclamado pelo Papa Francisco e hoje continua a ser proposto por Sua Santidade o Papa Leão XIV. Nesta ocasião a palavra Autoridades liga-se à capacidade de assumir o serviço público com todas as suas consequências, ligando-se a uma etimologia que enaltece a qualidade criadora como fator de partilha e de salvaguarda do cuidado, da atenção aos outros e do bem comum. Apesar de continuarmos a ser vozes que clamam no deserto, importa não desistirmos, persistindo na mobilização de vontades em prol da Justiça. Não esquecemos o exemplo de S. Tomás Morus, patrono da vida política, ele mesmo símbolo de sacrifício máximo perante a razão de Estado, mas lembramos outros casos contemporâneos de cidadãos exemplares como Robert Schuman um dos pais fundadores da União Europeia ou Giorgio La Pira, síndaco de Florença, cujo exemplo de cristão defensor da democracia, dos direitos fundamentais e do respeito mútuo está bem presente em todos nós.

Como afirmou o Cardeal Parolin: “Neste tempo complexo e marcado por profundas fraturas, sentimos uma necessidade que precede até o dever: a de voltar a falar, com coragem e verdade, da dignidade humana. Uma dignidade que não é concedida, mas reconhecida; que é infinita e inalienável, própria de cada homem e cada mulher, sem qualquer exclusão”. E é esta dimensão universal da dignidade da pessoa humana que tem de se assumir como prioridade absoluta, quando na cena internacional assistimos a uma onda de horrores com muitas vítimas inocentes da cegueira humana e da recusa do primado do direito e da justiça. Deste modo,  “num mundo que tantas vezes parece perder a direção, é importante recordar que a esperança não é apenas um conceito abstrato, mas uma promessa concreta; neste tempo de crescente complexidade global, somos todos chamados – como cidadãos responsáveis e profissionais do compromisso público – a promover o humano e a sua dignidade com um olhar amplo, integral e profundo.”

Perante os apelos pungentes de tantos inocentes, civis, mulheres e crianças, devemos recordar especialmente as recentes palavras do Papa Leão XIV: «Farei todos os esforços para que a paz se propague. A Santa Sé está disponível para que os inimigos se encontrem e se fitem nos olhos, para que aos povos se devolvam a esperança e a dignidade que merecem, a dignidade da paz. Os povos querem a paz e eu, com o coração nas mãos, digo aos responsáveis dos povos: encontremo-nos, dialoguemos, negociemos! A guerra nunca é inevitável, as armas podem e devem ser silenciadas, pois não resolvem os problemas mas só os aumentam; pois ficará na história quem semeia a paz, não quem ceifa vítimas; pois os outros não são sobretudo inimigos, mas seres humanos: não vilões a odiar, mas pessoas com quem falar”. Deste modo, o Papa é muito claro: “Rejeitemos as visões maniqueístas típicas das narrações violentas, que dividem o mundo entre bons e maus. A Igreja não se cansará de repetir: silenciem as armas!”

O que estamos a assistir hoje obriga-nos a refletir. Os sinais dos tempos trazem palavras de violência e os seus ecos. As instituições têm dificuldade em funcionar normalmente. A sociedade civil tarda em fazer-se ouvir. Faltam instrumentos de mediação que facilitem a representação e a participação dos cidadãos. Nestas condições, emerge a tentação do apelo às intervenções de um falso messianismo, do mesmo modo que prevalecem as lógicas mercantis, como se tudo fosse transacionável. Deve recordar-se a atualidade da Constituição Pastoral “Gaudium et Spes”, capaz de abranger todos os homens e mulheres de boa vontade. A palavra todos tem, assim, um significado amplo, unificador e diferenciador. Para tanto, a justiça e a paz constituem desígnios que obrigam a uma grande determinação, capaz de superar as resistências, os equívocos e as ilusões. A verdade e a vida tornam-se assim sinais de sinceridade. Há pontes que têm de se estabelecer, diálogos a aprofundar, esperanças a cultivar.

As palavras do Cardeal Secretário de Estado e o apelo do Papa ecoaram numa casa de cultura como é a Fundação Calouste Gulbenkian, sob a inspiração do seu fundador, defensor das Artes e do diálogo entre Ocidente e Oriente. Foi bom ouvir as palavras que recordamos com especial ênfase. Que a Justiça e a Paz se tornem deveres da Humanidade toda.


GOM

CRÓNICA DA CULTURA

Não basta modernizar as linguagens dos lugares-comuns
 

TVB _ 18 set.jpg


Aqui chegados, cremos que há que partilhar o quanto nos temos mostrado alheios ou distraídos do errado na sociedade contemporânea, sem que a nossa responsabilidade e empenho para uma genuína melhoria do bem-estar do Homem se tenha feito notar.

Precisamos, seguramente, de criar alternativas ao que no mundo tem condenado as gentes a aceitar que o bem-estar é para poucos.

Em rigor, já assistimos a horrores numa escala desconhecida, e que bem nos tem alertado à urgência de uma mudança significativa, à qual ainda não nos apresentámos com vigor e em conjunto.

De registar, que a nossa surpresa face a um “novo” império de crueldade mascarada de falsa beatitude, de apelativas e sedutoras inverdades, repousa e muito, na ausência da nossa força apostada nas melhorias dirigidas a quem sentia e sente, que nós já abandonámos o reflexo de dor humana.

Por óbvio que o “novo” poder escuro, inquisitivo, manipulativo, germinador de medos, nunca foi alheio às nossas falhas como berço do seu regresso.

Continua este poder que é medo dos medos, a aprofundar uma descrença palpável do homem em si mesmo, um mistério sobre a sua ignorância que muito convém adubar, colonizando famintamente toda a vida quotidiana a fim de que se instale um domínio mecânico.

Não tem este poder, uma ideia que construa uma verdadeira visão alternativa para aquilo que a vida deveria ser em humanidade.

Questionemos, pois, o que poderemos fazer agora para mitigar a ausência de empatia, o que poderemos fazer que nos faça merecer a honra do belo que o homem é capaz de gerar, do belo que já provamos que o homem é capaz de multiplicar, sobretudo quando vai para além das estatísticas dos mínimos indispensáveis.

O imperativo de nos melhorarmos quotidianamente é o que segura todas as experiências que possam gerar vida digna; todas as situações em que o presente não descure o entender o passado, e que aprenda, o quanto para findar a agonia não basta modernizar as linguagens dos lugares-comuns

E o início da passagem far-se-á por aí.


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICAS PÁRA E PENSA

  
    O pensador de Rodin, CC BY-SA 2.0 © Daniel Stockman 


O novo normal


1. Há dias, Ursula von der Leyen fez uma comunicação de abalo e despertar. Nela, referiu que “hoje aumentam as tensões geopolíticas. As regras comerciais estão a ser reescritas”, caindo-se numa guerra comercial global. “Acontecimentos climáticos extremos são cada vez mais frequentes, devido às mudanças climáticas. A mudança nas tecnologias é cada vez mais rápida”, apresentando o exemplo da IA (inteligência artificial), que está a evoluir mais rapidamente do que imaginaríamos há algum tempo...

Para rematar: “The ‘new’ normal is anything but ‘normal’.”  O ‘novo normal é tudo menos ‘normal’.”

2. Entretanto, uma boa amiga escreveu-me nestes termos:

“Estou tão triste, meu amigo.
Que mundo vamos deixar aos jovens?
Que planeta?
Que pessoas?

Onde vamos buscar esperança?”   

3. Ah! Se, nesta corrida vertiginosa e louca em que embarcámos, cada uma, cada um, parasse! Para pensar. Pensar vem do latim “pensare”, que quer dizer pesar razões e, portanto, reflectir, meditar..., para ir ao essencial.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
24 de Maio de 2025

A VIDA DOS LIVROS

De 23 a 29 de dezembro de 2024


O Papa Francisco propõe para o Novo Ano de 2025 o tema da Esperança como mobilizador dos cristãos e das pessoas de boa vontade num tempo muito exigente, pleno de incertezas e ameaças, a exigir o compromisso de todos para desfazer os sérios perigos que nos perseguem.
 


Papa Francisco © Paulo Novais/Lusa


“Exorto-vos a todos a viver este tempo forte de Natal com uma oração vigilante e uma esperança ardente”, sendo um “tempo de graça, irradiando a alegria que é fruto do encontro com Jesus” – acaba de proclamar o Papa Francisco. Mas acastelam-se nuvens negras no horizonte e o apelo é mais necessário que nunca.


Lembremo-nos que a singularidade e a solidariedade são faces da mesma moeda, obrigando-nos à recusa da indiferença e à noção positiva de compromisso. A nossa relação de uns com os outros, baseada no respeito mútuo, obriga-nos a uma ligação essencial entre pessoa e comunidade. A pessoa humana parte do que somos e do que nos distingue dos outros, segundo a própria etimologia, enquanto máscara do teatro grego. Já a comunidade é o que nos liga intrinsecamente, tornando-nos responsáveis uns pelos outros. E assim a autonomia individual demarca-se do egoísmo e do narcisismo, constituindo-se como valor ético, como eixo de abertura, de generosidade e de disponibilidade. Não nos reportamos, porém, a qualquer visão idílica de vida, destituída de diferenças e conflitos. Referimo-nos, sim, à necessidade de recusa da tentação do isolamento e da autossuficiência.


«O bem comum consiste no conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana» - afirmava João XXIII na encíclica «Mater et Magistra» (1961). Os poderes públicos devem orientar-se no sentido do respeito, da harmonização, da tutela e da promoção dos direitos invioláveis prescrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Se uma autoridade não reconhecer os direitos ou os violar «não só perde a razão de ser, como também as suas injunções perdem a força de obrigar em consciência», insistia João XXIII há cinquenta anos, num documento moderno que se tornou mais atual do que nunca. De facto, a noção de serviço público não se pode ater apenas ao Estado e ao mercado, mas à comunidade. O Estado social tem de representar a sociedade e os cidadãos, devendo o serviço público corresponder sempre a uma rede de iniciativas e de cidadãos criadores e participantes. Falamos do catálogo de direitos aceites e reconhecidos pelas Nações Unidas, que a encíclica «Pacem in Terris» refere: a existência de um padrão de vida digno; o respeito pelos valores morais e culturais; o prestar culto segundo o imperativo da reta consciência; a liberdade de escolha do estado de vida; a satisfação justa de necessidades económicas; para além dos direitos de reunião, de associação, de migração e de participação política – assim o Concílio Vaticano II consagrou a liberdade religiosa e de consciência. E este conjunto completa-se com o elenco dos deveres de cidadania (e não deveres de servos ou de súbditos): reciprocidade entre direitos e responsabilidades, colaboração mútua entre pessoas, convivência na verdade, na justiça, no amor e na liberdade, bem como salvaguarda de uma ordem moral, cujo fundamento para os cristãos é o próprio Deus. Deste modo, encontramos um fundamento universal e não uma mera lógica de hierarquia formal. Não se trata de referir um modelo de bem comum ou uma noção estereotipada de democracia – mas sim de considerar que a pessoa humana é a medida comum dos direitos e responsabilidades.


Não esquecemos que Hannah Arendt coloca entre as Origens do Totalitarismo a atomização radical do indivíduo e a eliminação da espontaneidade e da liberdade política. O colapso da distinção entre os domínios público e privado conduz à invasão ilegítima do puro utilitarismo. Afinal, o crescimento livre dos interesses privados torna-se incompatível com a necessidade de termos instituições políticas estáveis e com a existência de instâncias de mediação capazes de representar os interesses legítimos, de suscitar a participação cívica, de garantir representação cidadã e de regular os conflitos de forma racional e pacífica. Afinal, o totalitarismo, distinto do mero autoritarismo, torna a ação política impraticável, através da capacidade de falar e de ouvir, porque destrói pelo terror a possibilidade de ações espontâneas entre as pessoas. A solidão e o abandono são causas que subjazem a todos os movimentos totalitários, ainda segundo H. Arendt – lembrando a pensadora o conceito de Santo Agostinho de “Amor ao mundo”. A pessoa humana sente-se em casa, podendo preparar-se na espera do bem e do mal. E assim, em lugar do isolamento e do abandono, o cidadão torna-se um participante comprometido, capaz de agir em prol do comum. E a essência dos direitos torna-se um direito a ter direitos, fundamento da coesão social e da confiança.


Eis por que razão a noção de liderança não se confunde com a aquisição de poder e de proeminência, mas deve corresponder ao serviço, à atenção e ao cudado. Serviço, na medida em que se trata de dar resposta e de corresponder ao que nos é solicitado pelos outros e se espera de nós. Atenção, uma vez que resulta de termos de estar despertos perante o nosso próximo – tornando viva a pergunta bíblica: “onde está o teu irmão?” E devemos considerar o cuidado, entendendo que, mais do que uma solidariedade formal do que se trata é de garantir que precisamos uns dos outros. Daí a necessidade de superarmos a superficialidade e o imediatismo, uma vez que quanto mais cedermos a tais condicionantes mais provável será deixarmo-nos aprisionar pelo mal e pelo desrespeito da dignidade. Jacques Maritain numa das suas conferências do período do exílio americano durante a guerra afirmou: «Dizer que o homem é uma pessoa, quer dizer que, no fundo do ser, ser é mais um todo que uma parte, e mais independente que servo».


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

ESPERANÇA & EXIGÊNCIA


Como imaginar o futuro da democracia em Portugal? Eu tinha vinte e um anos em 25 de Abril de 1974 e as esperanças que tive nesse tempo mantêm-se. O mundo alterou-se profundamente, mas as preocupações fundamentais persistem. “Por um país de pedra e vento duro / Por um país de luz perfeita e clara / Pelo negro da terra e pelo branco do muro” – assim definiu a Pátria Sophia de Mello Breyner (Livro Sexto, 1962). É a dignidade humana dos portugueses, como seres livres e iguais em dignidade e direitos, que está em causa, muito mais do que longas listas de boas intenções. E se a palavra-chave é Democracia, temos de compreender que é um sistema de valores que está em causa. Temos de estar determinados numa cidadania inclusiva, muito mais do que em desenvolver estados de alma ou do que propor listas de encargos. Urge combater a indiferença e a mediocridade, bem como a tentação das soluções providenciais. Ou os cidadãos e a sociedade toda assumem responsabilidades, pela descentralização, pela participação e pela subsidiariedade ou o fatalismo do atraso e a subalternização prevalecerão. É o Estado de Direito que temos de continuar a aperfeiçoar – com o primado da lei, a justiça justa e célere, a transparência nas instituições, instâncias mediadoras próximas dos cidadãos, governo do país pelo país, poderes locais prestigiados e eficazes, legitimidade do exercício, avaliação e prestação de boas contas, economia humana, preservação da biosfera e da qualidade ambiental…  Aplique-se, por exemplo, a Constituição, quando prevê no sistema eleitoral um círculo nacional em complemento da proporcionalidade.


Ter caminhado de 25 por cento de analfabetos, há cinquenta anos, para um número despiciendo hoje foi um avanço significativo que deve ser preservado e consolidado. O mesmo se diga da mortalidade infantil, da escolaridade obrigatória de 12 anos, da melhoria nos índices de retensão e de abandono escolares, mas também do investimento em investigação científica e da cooperação internacional. A qualidade das aprendizagens no ensino e na formação tem de melhorar, valorizando e avaliando as escolas, os professores e educadores e criando uma responsabilidade partilhada com as comunidades e as famílias. O aumento da esperança média de vida, o crescimento da população com mais idade, a melhoria na qualidade dos cuidados de saúde e o envelhecimento ativo, eis o que não poderemos esquecer. Como disse Eduardo Lourenço, temos de ser nós próprios, sem a tentação de ilusões de grandeza ou de miséria, em nome de um patriotismo prospetivo e audaz. Só a democracia pluralista e a cidadania inclusiva preservar-nos-ão de perigosos retrocessos. Só se formos exigentes, se soubermos querer, se cuidarmos do partir e do regressar, se dispusermos do saber de experiências feito, se tivermos memória, se não esquecermos o legado de quem nos antecedeu, se planearmos e avaliarmos – é que podermos ser relevantes. A Europa e os mundos da língua portuguesa abrem-nos horizontes de diálogo, de cooperação e intercâmbio que temos de prosseguir, porque a cultura da paz obriga a maior partilha de soberanias.  Como na “Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya” de Jorge de Sena, cabe-nos desejar “Um simples mundo, / onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém / de nada haver que não seja simples e natural” (Metamorfoses, 1963). 


GOM

DE 2023 PARA 2024: TENSÕES E ESPERANÇA

  


Havia regiões nas quais na noite de passagem de ano tudo o que é velho - roupas, pratos, mobília - ia pela janela fora para a rua. E também é sabido que nessa noite há licenças ao nível do álcool e outras que normalmente não são admitidas. É um pouco como se, retomando, agora de modo secularizado, os mitos cosmogónicos, se instalasse o caos primitivo, para em seguida, como fizeram os deuses in illo tempore, ser reposta a ordem do cosmos.


Perante um ano novo que está aí à nossa frente, os sentimentos misturam-se: perplexidades, entusiasmo, dúvidas, expectativas, temores, esperança... Que é que nos reserva o novo ano: para mim, para a minha família, para os meus amigos, para o país, para a Europa, para o mundo? Será melhor, será pior que o ano que passou? Querendo ir mais fundo, até somos tentados a pensar que é igual, que tudo se repete: morre um ano, surge outro ano, na roda eterna do mesmo... Mas não é assim. Nunca houve na história de cada um de nós, na história do país, na história da Europa, na história da humanidade, na história do mundo, com uns 14 mil milhões de anos, um ano como este, o de 2024, que acaba de surgir. Ele está aí, novo, pela primeira vez, como criança acabada de nascer. E exactamente como a criança está aí com confiança.


No entanto, as tensões e perplexidades avolumam-se. Talvez nunca a humanidade tenha estado perante ameaças tão avassaladoras. Quando olhamos para o passado, não somos piores. O que se passa é que nunca a humanidade teve tanto poder de autodestruição: pense-se no armamento atómico, nas alterações climáticas, nas novas tecnologias, concretamente na inteligência artificial, certamente com imensas possibilidades vantajosas, mas levantando também perguntas gigantescas…


Por estes dias, reflectindo sobre o ano que passou, fizemos um balanço da nossa vida e pensámos naqueles que, familiares e amigos, se nos foram, “partiram”, já cá não estão, e temos saudades, fazem-nos falta. Nesse balanço da nossa vida e da vida da sociedade não se ergueu a necessidade de pensar mais? Não constatamos, de facto, que se instalou a banalidade rasante, esquecendo o essencial? Afinal, de que vale dominar o mundo inteiro, se nos autodestruímos?


Agora, é preciso reflectir no que aí vem. Afinal, que queremos fazer de bom para nós, para a família, para a humanidade? Olhando para o país, vai haver eleições, e como avançaremos quando pensamos na situação da saúde, da educação, da justiça, da corrupção, nas manchas intoleráveis de pobreza, e quando, depois de milhões e mais milhões e mais milhões... de euros da União Europeia, continuamos na cauda da Europa? E vai haver eleições na Europa, e o que vai acontecer, pensando concretamente nas eleições dos Estados Unidos da América? E as eleições em Taiwan, com todas as consequências? No contexto de um mundo cada vez mais multipolar, com ambições várias  de domínio imperial global, com mais de dois terços da humanidade a sofrer da desigualdade crescente e da pobreza, que vai acontecer neste nosso mundo insano, com guerras brutais em curso e a ameaça da catástrofe?


Somos cada vez mais interdependentes e, por isso, como repete o Papa Francisco, ou nos salvamos todos ou nos perdemos todos. Assim, os países celebram o Dia da Independência Nacional; pergunta-se, na linha da sugestão do filósofo Peter Sloterdijk: não é urgente um pacto global, assinado por todos, sobre a Dependência Global, com um dia no ano para se celebrar, sempre com mais consciência, precisamente o Dia da Dependência Global?


De qualquer modo, avançamos na esperança, porque o ser humano é um ser constitutivamente esperante, apesar da dureza e brutalidade toda com que a vida nos foi confrontando. Como escreveu Nelson Mandela, “a esperança é uma arma ponderosa e nenhum poder no mundo pode privar-me dela.” Sim. Porque é que os homens e as mulheres, apesar de todos os fracassos, horrores, sofrimentos e cinismos, ainda não desistiram de lutar e de esperar? Por que é que continuamos a ter filhos? Por que é que depois de guerras destruidoras e terramotos devoradores, recomeçamos sempre de novo? Perguntava, com razão, o célebre teólogo Johann Baptist Metz: "Porque é que recomeçamos sempre de novo, apesar de todas as lembranças que temos do fracasso e das seduções enganadoras das nossas esperanças? Por que é que sonhamos sempre de novo com uma felicidade futura da liberdade", embora saibamos que os mortos não participarão nela? Porque é que não renunciamos à luta pelo homem novo? Porque é que o homem se levanta sempre de novo, "numa rebelião impotente", contra o sofrimento que não pode ser sanado? "Porque é que o homem institui sempre de novo novas medidas de justiça universal, apesar de saber que a morte as desautoriza outra vez" e que já na geração seguinte de novo a maioria não participará nelas? Donde é que vem ao homem "o seu poder de resistência contra a apatia e o desespero? Por que é que o homem se recusa a pactuar com o absurdo, presente na experiência de todo o sofrimento não reparado? Donde é que vem a força da revolta, da rebelião?"


Neste movimento incontível, ilimitado, do combate da esperança, pode ver-se um aceno do Infinito, um sinal de Deus. Como se não cansava de repetir o ateu religioso Ernst Bloch: "Onde há esperança, há religião". Aliás, quem se lembra de que 2024 é-o por referência à data do nascimento de Jesus?


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 6 de janeiro de 2024

CRÓNICA DA CULTURA

  


Havia uma esperança diferente quando as pessoas cuidavam umas das outras num respeito pelos mais idosos, à proeza do seu interpretar e no transmitir dessa interpretação.

O medo e a incerteza do viver era atenuado pela rocha que constituía a solidariedade do amor, e por ele, o dever de ajuda.

Agora, as pessoas receiam o morrer antes da morte, num fogo cruzado das gentes vivas que os marginalizam desfocando deles a atenção.

Muitas vezes já se entrou na bancarrota dos afetos, e na suposição de que os velhos, são vestígios do passado que devem aceitar o sem futuro, no futuro que lhes propõem.

Muitos dos lares onde as pessoas são colocadas, passaram a favelas que contam estórias de esquecimento dos sobreviventes que por lá negoceiam, como podem, as novas conformidades.

A depressão e a insegurança de uma maioria que deu à vida o seu melhor, afinal, para se candidatarem a pagar o preço altíssimo de um rap cruel, nunca esteve verdadeiramente pendente como problema nas assunções do Estado.

A infelicidade governa olhar e corpo, num lugar que rompe ou vai rompendo, esgaçando a esperança.

Será que já se viu e compreendeu onde chegámos?

Será que novos e velhos se vão recusar a que as vidas se façam em subcave?

Uma vez, naquele dia, todos começaram a fazer pelo melhor: ouvi dizer.


Teresa Bracinha Vieira

A IMACULADA CONCEIÇÃO E A ESPERANÇA

  


Santo Agostinho era um génio. Mas a sua influência foi ambígua,  para o bem e para o mal. Pense-se no seu pessimismo, que o levou à convicção de que o prazer sexual implica sempre algo de pecaminoso, pois a finalidade da relação sexual deveria ser unicamente a procriação.


Baseado na tradução latina da Carta de São Paulo aos Romanos, 5,12, referente a Adão: "no qual todos pecaram", Santo Agostinho, contra o texto original grego, que diz: "porque todos pecaram", interpretou que o pecado de Adão não é apenas o primeiro da série de todos os pecados cometidos pelas pessoas ao longo da história, mas que esse pecado é um pecado hereditário, de tal modo que é um pecado de todos os homens e mulheres, transmitido por geração pelo acto sexual. Portanto, o recém-nascido não é inocente, nasce em pecado, do qual, para evitar a condenação eterna, só o baptismo o pode libertar. Foi pelo pecado de Adão que veio todo o mal ao mundo, incluindo a morte. Esse pecado tornou a humanidade toda “massa damnata”, massa condenada, ao inferno, do qual só alguns são libertados pela graça imerecida de Deus. Pelo pecado, Adão destruiu um bem que podia ser eterno, tornando-se merecedor, ele e todos os homens nele, de um mal eterno: "Daqui - escreve ele -, a condenação de toda a massa do género humano, pois o primeiro culpado foi castigado com toda a sua posteridade, que estava nele como na sua raiz. Assim ninguém escapa a esse suplício justo e devido, a não ser por uma misericórdia e uma graça indevida. E é tal a disposição dos homens que nalguns aparece o valor de uma graça misericordiosa e nos outros o de uma justa vingança".


Assenta aqui a doutrina da dupla predestinação, que continuaria radicalizada sobretudo em Calvino. Na salvação de alguns, revela-se a misericórdia graciosa de Deus; na condenação eterna da maioria, manifesta-se a justiça do mesmo Deus.


É neste enquadramento que surge a festa que se celebrou no passado dia 8 de Dezembro, com feriado nacional: a Imaculada Conceição de Nossa Senhora: Maria, a mãe de Jesus, seria uma excepção, pois foi concebida sem pecado.


Hoje, o pecado original não é pensável. De facto, como se pode pensar no pecado original, causa de todos os males, incluindo a morte, no contexto da evolução, segundo a qual o ser humano aparece num processo imensamente lento? O pecado original dos primeiros homens — quem foram os primeiros? — implicaria um acto de liberdade plena, que eles, pensando precisamente na evolução, não tinham... E não havia morte, se não houvesse o primeiro pecado de Adão e Eva?  Mais: quem acredita verdadeiramente que uma criança acabada de nascer foi concebida em pecado e nasce com o pecado dentro dela?  


O chamado pecado original só faz sentido, se pensarmos que aquele menino, aquela menina, nascem inocentes, mas para um mundo onde já há pecado e, assim, vão ser contaminados por esse ambiente de pecado, como um não fumador é contaminado ao entrar num ambiente em que se fuma.  Aliás, as pessoas, postas a pensar, acreditam verdadeiramente no pecado original no sentido tradicional? Permita-se-me que conte uma pequena história que se passou comigo. Fui fazer uma palestra em Aveiro. Na altura das perguntas e esclarecimentos, uma senhora, embora eu não tivesse abordado sequer o tema, acusou-me: “Você negou o pecado original”. Eu disse-lhe que na palestra nem tinha abordado a questão, mas voltei-me para ela e perguntei-lhe: “A senhora é mãe?” E ela: “Sim, sou mãe de duas filhas”. Disse-lhe: “Parabéns! Agora diga-me: acredita sinceramente que elas foram geradas em pecado e que a senhora andou com o pecado dentro de si durante dezoito meses?” Ela: “Eu? Eu não.” Observei-lhe: “Está a ver? Afinal, quem nega o pecado original é a senhora, não eu.”


Com a doutrina do pecado original, chegava-se a esta contradição: por um lado, havia a obrigação moral de relações sexuais fecundas, em ordem ao cumprimento da ordem de Deus: crescei e multiplicai-vos; por outro, havia o receio de, precisamente desse modo, contribuir para o aumento de pessoas com o pecado original; havia ainda a agravante de contribuir para as condenações ao inferno, caso os recém-nascidos morressem antes de receber o baptismo: em muitas ocasiões Santo Agostinho afirma a condenação eterna das crianças que não foram baptizadas...  Lentamente, ele próprio apercebeu-se de que era tal o horror dessa doutrina que elaborou a doutrina do limbo para as crianças que morriam sem baptismo: não iam para o inferno, mas também não gozavam da plenitude da vida em Deus...


Portanto, se não há pecado original no sentido tradicional, qual é o sentido da festa da Imaculada Conceição? O que de facto se celebra é Maria como a primeira cristã e a esperança de que no final se realize o Reino de Deus na sua plenitude, pondo termo a todo o calvário do mundo, à ecúmena do sofrimento sem nome, a esse cortejo infindo de ódio, de malvadez, de vingança, de loucura, de pecado, que realizou guerras mundiais,  Auschwitz, o Goulag,  a Ucrânia...,  todo o mal e toda a tragédia e todas as lágrimas que causamos uns aos outros e o número incontável de vítimas inocentes...


Essas vítimas gritam, não por vingança, mas por justiça. E só Deus, força criadora infinita, pode responder, pela ressurreição dos mortos, a esse clamor da história do sofrimento humano. Para que a história do mundo e da humanidade não desemboque pura e simplesmente no absurdo do sem sentido.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 10 de dezembro de 2022