Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Como imaginar o futuro da democracia em Portugal? Eu tinha vinte e um anos em 25 de Abril de 1974 e as esperanças que tive nesse tempo mantêm-se. O mundo alterou-se profundamente, mas as preocupações fundamentais persistem. “Por um país de pedra e vento duro / Por um país de luz perfeita e clara / Pelo negro da terra e pelo branco do muro” – assim definiu a Pátria Sophia de Mello Breyner (Livro Sexto, 1962). É a dignidade humana dos portugueses, como seres livres e iguais em dignidade e direitos, que está em causa, muito mais do que longas listas de boas intenções. E se a palavra-chave é Democracia, temos de compreender que é um sistema de valores que está em causa. Temos de estar determinados numa cidadania inclusiva, muito mais do que em desenvolver estados de alma ou do que propor listas de encargos. Urge combater a indiferença e a mediocridade, bem como a tentação das soluções providenciais. Ou os cidadãos e a sociedade toda assumem responsabilidades, pela descentralização, pela participação e pela subsidiariedade ou o fatalismo do atraso e a subalternização prevalecerão. É o Estado de Direito que temos de continuar a aperfeiçoar – com o primado da lei, a justiça justa e célere, a transparência nas instituições, instâncias mediadoras próximas dos cidadãos, governo do país pelo país, poderes locais prestigiados e eficazes, legitimidade do exercício, avaliação e prestação de boas contas, economia humana, preservação da biosfera e da qualidade ambiental… Aplique-se, por exemplo, a Constituição, quando prevê no sistema eleitoral um círculo nacional em complemento da proporcionalidade.
Ter caminhado de 25 por cento de analfabetos, há cinquenta anos, para um número despiciendo hoje foi um avanço significativo que deve ser preservado e consolidado. O mesmo se diga da mortalidade infantil, da escolaridade obrigatória de 12 anos, da melhoria nos índices de retensão e de abandono escolares, mas também do investimento em investigação científica e da cooperação internacional. A qualidade das aprendizagens no ensino e na formação tem de melhorar, valorizando e avaliando as escolas, os professores e educadores e criando uma responsabilidade partilhada com as comunidades e as famílias. O aumento da esperança média de vida, o crescimento da população com mais idade, a melhoria na qualidade dos cuidados de saúde e o envelhecimento ativo, eis o que não poderemos esquecer. Como disse Eduardo Lourenço, temos de ser nós próprios, sem a tentação de ilusões de grandeza ou de miséria, em nome de um patriotismo prospetivo e audaz. Só a democracia pluralista e a cidadania inclusiva preservar-nos-ão de perigosos retrocessos. Só se formos exigentes, se soubermos querer, se cuidarmos do partir e do regressar, se dispusermos do saber de experiências feito, se tivermos memória, se não esquecermos o legado de quem nos antecedeu, se planearmos e avaliarmos – é que podermos ser relevantes. A Europa e os mundos da língua portuguesa abrem-nos horizontes de diálogo, de cooperação e intercâmbio que temos de prosseguir, porque a cultura da paz obriga a maior partilha de soberanias. Como na “Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya” de Jorge de Sena, cabe-nos desejar “Um simples mundo, / onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém / de nada haver que não seja simples e natural” (Metamorfoses, 1963).
Havia regiões nas quais na noite de passagem de ano tudo o que é velho - roupas, pratos, mobília - ia pela janela fora para a rua. E também é sabido que nessa noite há licenças ao nível do álcool e outras que normalmente não são admitidas. É um pouco como se, retomando, agora de modo secularizado, os mitos cosmogónicos, se instalasse o caos primitivo, para em seguida, como fizeram os deuses in illo tempore, ser reposta a ordem do cosmos.
Perante um ano novo que está aí à nossa frente, os sentimentos misturam-se: perplexidades, entusiasmo, dúvidas, expectativas, temores, esperança... Que é que nos reserva o novo ano: para mim, para a minha família, para os meus amigos, para o país, para a Europa, para o mundo? Será melhor, será pior que o ano que passou? Querendo ir mais fundo, até somos tentados a pensar que é igual, que tudo se repete: morre um ano, surge outro ano, na roda eterna do mesmo... Mas não é assim. Nunca houve na história de cada um de nós, na história do país, na história da Europa, na história da humanidade, na história do mundo, com uns 14 mil milhões de anos, um ano como este, o de 2024, que acaba de surgir. Ele está aí, novo, pela primeira vez, como criança acabada de nascer. E exactamente como a criança está aí com confiança.
No entanto, as tensões e perplexidades avolumam-se. Talvez nunca a humanidade tenha estado perante ameaças tão avassaladoras. Quando olhamos para o passado, não somos piores. O que se passa é que nunca a humanidade teve tanto poder de autodestruição: pense-se no armamento atómico, nas alterações climáticas, nas novas tecnologias, concretamente na inteligência artificial, certamente com imensas possibilidades vantajosas, mas levantando também perguntas gigantescas…
Por estes dias, reflectindo sobre o ano que passou, fizemos um balanço da nossa vida e pensámos naqueles que, familiares e amigos, se nos foram, “partiram”, já cá não estão, e temos saudades, fazem-nos falta. Nesse balanço da nossa vida e da vida da sociedade não se ergueu a necessidade de pensar mais? Não constatamos, de facto, que se instalou a banalidade rasante, esquecendo o essencial? Afinal, de que vale dominar o mundo inteiro, se nos autodestruímos?
Agora, é preciso reflectir no que aí vem. Afinal, que queremos fazer de bom para nós, para a família, para a humanidade? Olhando para o país, vai haver eleições, e como avançaremos quando pensamos na situação da saúde, da educação, da justiça, da corrupção, nas manchas intoleráveis de pobreza, e quando, depois de milhões e mais milhões e mais milhões... de euros da União Europeia, continuamos na cauda da Europa? E vai haver eleições na Europa, e o que vai acontecer, pensando concretamente nas eleições dos Estados Unidos da América? E as eleições em Taiwan, com todas as consequências? No contexto de um mundo cada vez mais multipolar, com ambições várias de domínio imperial global, com mais de dois terços da humanidade a sofrer da desigualdade crescente e da pobreza, que vai acontecer neste nosso mundo insano, com guerras brutais em curso e a ameaça da catástrofe?
Somos cada vez mais interdependentes e, por isso, como repete o Papa Francisco, ou nos salvamos todos ou nos perdemos todos. Assim, os países celebram o Dia da Independência Nacional; pergunta-se, na linha da sugestão do filósofo Peter Sloterdijk: não é urgente um pacto global, assinado por todos, sobre a Dependência Global, com um dia no ano para se celebrar, sempre com mais consciência, precisamente o Dia da Dependência Global?
De qualquer modo, avançamos na esperança, porque o ser humano é um ser constitutivamente esperante, apesar da dureza e brutalidade toda com que a vida nos foi confrontando. Como escreveu Nelson Mandela, “a esperança é uma arma ponderosa e nenhum poder no mundo pode privar-me dela.” Sim. Porque é que os homens e as mulheres, apesar de todos os fracassos, horrores, sofrimentos e cinismos, ainda não desistiram de lutar e de esperar? Por que é que continuamos a ter filhos? Por que é que depois de guerras destruidoras e terramotos devoradores, recomeçamos sempre de novo? Perguntava, com razão, o célebre teólogo Johann Baptist Metz: "Porque é que recomeçamos sempre de novo, apesar de todas as lembranças que temos do fracasso e das seduções enganadoras das nossas esperanças? Por que é que sonhamos sempre de novo com uma felicidade futura da liberdade", embora saibamos que os mortos não participarão nela? Porque é que não renunciamos à luta pelo homem novo? Porque é que o homem se levanta sempre de novo, "numa rebelião impotente", contra o sofrimento que não pode ser sanado? "Porque é que o homem institui sempre de novo novas medidas de justiça universal, apesar de saber que a morte as desautoriza outra vez" e que já na geração seguinte de novo a maioria não participará nelas? Donde é que vem ao homem "o seu poder de resistência contra a apatia e o desespero? Por que é que o homem se recusa a pactuar com o absurdo, presente na experiência de todo o sofrimento não reparado? Donde é que vem a força da revolta, da rebelião?"
Neste movimento incontível, ilimitado, do combate da esperança, pode ver-se um aceno do Infinito, um sinal de Deus. Como se não cansava de repetir o ateu religioso Ernst Bloch: "Onde há esperança, há religião". Aliás, quem se lembra de que 2024 é-o por referência à data do nascimento de Jesus?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 6 de janeiro de 2024
Havia uma esperança diferente quando as pessoas cuidavam umas das outras num respeito pelos mais idosos, à proeza do seu interpretar e no transmitir dessa interpretação.
O medo e a incerteza do viver era atenuado pela rocha que constituía a solidariedade do amor, e por ele, o dever de ajuda.
Agora, as pessoas receiam o morrer antes da morte, num fogo cruzado das gentes vivas que os marginalizam desfocando deles a atenção.
Muitas vezes já se entrou na bancarrota dos afetos, e na suposição de que os velhos, são vestígios do passado que devem aceitar o sem futuro, no futuro que lhes propõem.
Muitos dos lares onde as pessoas são colocadas, passaram a favelas que contam estórias de esquecimento dos sobreviventes que por lá negoceiam, como podem, as novas conformidades.
A depressão e a insegurança de uma maioria que deu à vida o seu melhor, afinal, para se candidatarem a pagar o preço altíssimo de um rap cruel, nunca esteve verdadeiramente pendente como problema nas assunções do Estado.
A infelicidade governa olhar e corpo, num lugar que rompe ou vai rompendo, esgaçando a esperança.
Será que já se viu e compreendeu onde chegámos?
Será que novos e velhos se vão recusar a que as vidas se façam em subcave?
Uma vez, naquele dia, todos começaram a fazer pelo melhor: ouvi dizer.
Santo Agostinho era um génio. Mas a sua influência foi ambígua, para o bem e para o mal. Pense-se no seu pessimismo, que o levou à convicção de que o prazer sexual implica sempre algo de pecaminoso, pois a finalidade da relação sexual deveria ser unicamente a procriação.
Baseado na tradução latina da Carta de São Paulo aos Romanos, 5,12, referente a Adão: "no qual todos pecaram", Santo Agostinho, contra o texto original grego, que diz: "porque todos pecaram", interpretou que o pecado de Adão não é apenas o primeiro da série de todos os pecados cometidos pelas pessoas ao longo da história, mas que esse pecado é um pecado hereditário, de tal modo que é um pecado de todos os homens e mulheres, transmitido por geração pelo acto sexual. Portanto, o recém-nascido não é inocente, nasce em pecado, do qual, para evitar a condenação eterna, só o baptismo o pode libertar. Foi pelo pecado de Adão que veio todo o mal ao mundo, incluindo a morte. Esse pecado tornou a humanidade toda “massa damnata”, massa condenada, ao inferno, do qual só alguns são libertados pela graça imerecida de Deus. Pelo pecado, Adão destruiu um bem que podia ser eterno, tornando-se merecedor, ele e todos os homens nele, de um mal eterno: "Daqui - escreve ele -, a condenação de toda a massa do género humano, pois o primeiro culpado foi castigado com toda a sua posteridade, que estava nele como na sua raiz. Assim ninguém escapa a esse suplício justo e devido, a não ser por uma misericórdia e uma graça indevida. E é tal a disposição dos homens que nalguns aparece o valor de uma graça misericordiosa e nos outros o de uma justa vingança".
Assenta aqui a doutrina da dupla predestinação, que continuaria radicalizada sobretudo em Calvino. Na salvação de alguns, revela-se a misericórdia graciosa de Deus; na condenação eterna da maioria, manifesta-se a justiça do mesmo Deus.
É neste enquadramento que surge a festa que se celebrou no passado dia 8 de Dezembro, com feriado nacional: a Imaculada Conceição de Nossa Senhora: Maria, a mãe de Jesus, seria uma excepção, pois foi concebida sem pecado.
Hoje, o pecado original não é pensável. De facto, como se pode pensar no pecado original, causa de todos os males, incluindo a morte, no contexto da evolução, segundo a qual o ser humano aparece num processo imensamente lento? O pecado original dos primeiros homens — quem foram os primeiros? — implicaria um acto de liberdade plena, que eles, pensando precisamente na evolução, não tinham... E não havia morte, se não houvesse o primeiro pecado de Adão e Eva? Mais: quem acredita verdadeiramente que uma criança acabada de nascer foi concebida em pecado e nasce com o pecado dentro dela?
O chamado pecado original só faz sentido, se pensarmos que aquele menino, aquela menina, nascem inocentes, mas para um mundo onde já há pecado e, assim, vão ser contaminados por esse ambiente de pecado, como um não fumador é contaminado ao entrar num ambiente em que se fuma. Aliás, as pessoas, postas a pensar, acreditam verdadeiramente no pecado original no sentido tradicional? Permita-se-me que conte uma pequena história que se passou comigo. Fui fazer uma palestra em Aveiro. Na altura das perguntas e esclarecimentos, uma senhora, embora eu não tivesse abordado sequer o tema, acusou-me: “Você negou o pecado original”. Eu disse-lhe que na palestra nem tinha abordado a questão, mas voltei-me para ela e perguntei-lhe: “A senhora é mãe?” E ela: “Sim, sou mãe de duas filhas”. Disse-lhe: “Parabéns! Agora diga-me: acredita sinceramente que elas foram geradas em pecado e que a senhora andou com o pecado dentro de si durante dezoito meses?” Ela: “Eu? Eu não.” Observei-lhe: “Está a ver? Afinal, quem nega o pecado original é a senhora, não eu.”
Com a doutrina do pecado original, chegava-se a esta contradição: por um lado, havia a obrigação moral de relações sexuais fecundas, em ordem ao cumprimento da ordem de Deus: crescei e multiplicai-vos; por outro, havia o receio de, precisamente desse modo, contribuir para o aumento de pessoas com o pecado original; havia ainda a agravante de contribuir para as condenações ao inferno, caso os recém-nascidos morressem antes de receber o baptismo: em muitas ocasiões Santo Agostinho afirma a condenação eterna das crianças que não foram baptizadas... Lentamente, ele próprio apercebeu-se de que era tal o horror dessa doutrina que elaborou a doutrina do limbo para as crianças que morriam sem baptismo: não iam para o inferno, mas também não gozavam da plenitude da vida em Deus...
Portanto, se não há pecado original no sentido tradicional, qual é o sentido da festa da Imaculada Conceição? O que de facto se celebra é Maria como a primeira cristã e a esperança de que no final se realize o Reino de Deus na sua plenitude, pondo termo a todo o calvário do mundo, à ecúmena do sofrimento sem nome, a esse cortejo infindo de ódio, de malvadez, de vingança, de loucura, de pecado, que realizou guerras mundiais, Auschwitz, o Goulag, a Ucrânia..., todo o mal e toda a tragédia e todas as lágrimas que causamos uns aos outros e o número incontável de vítimas inocentes...
Essas vítimas gritam, não por vingança, mas por justiça. E só Deus, força criadora infinita, pode responder, pela ressurreição dos mortos, a esse clamor da história do sofrimento humano. Para que a história do mundo e da humanidade não desemboque pura e simplesmente no absurdo do sem sentido.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 10 de dezembro de 2022
Uma reflexão aprofundada sobre a esperança, deverá começar por aquela tendência para o futuro que caracteriza todo o ser vivo e mesmo toda a realidade cósmica, uma vez que está em evolução, de tal modo que já é e ainda não é adequadamente — por isso, está a caminho.
O cosmos desde a sua origem é em processo (do latim procedo, avançar, ir para diante). A realidade material tem carácter “prodeunte” (do verbo latino prodeo, avançar), para utilizar uma palavra do filósofo Pedro Laín Entralgo, que estou a seguir.
Trata-se de uma propriedade genérica que se vai fazendo proto-estruturação – passagem das partículas elementares às complexas --, molecularização – dos átomos às moléculas --, vitalização – das moléculas aos primeiros seres vivos --, vegetalização, animalização – aparecimento e desenvolvimento da vida quisitiva da zoosfera – e hominização – transformação da tendência geral para o futuro em futurição humana, tanto no indivíduo como na espécie humana e na história, desde o Homo habilis até ao presente.
Nestes modos de existir na orientação do futuro, só quando se chega ao nível do ser vivo, que precisa de buscar para viver, é que se dirá que a tendência para o futuro se configura como espera, podendo chegar a ser esperança. Do nascimento à morte, entre a esperança e o temor, o animal vive permanentemente voltado para o futuro e orientando a sua espera na procura do que precisa para viver.
O animal e o Homem esperam, mas, enquanto a espera animal é instintiva, no quadro dos instintos e de estímulos, situada e fechada, a do Homem transcende os instintos, os estímulos e as situações, sendo, portanto, aberta, de tal modo que nunca se contenta com a realização de cada um dos projectos parciais em que a sua futurição constitutiva se concretiza.
Laín dá um exemplo. Numa “sala de espera” de uma estação de caminho de ferro, não me limito a aguardar a chegada do comboio que traz o meu amigo, pois, mesmo que não tenha consciência explícita disso, espero o que será a minha existência em todo o seu decurso posterior, para lá do reencontro. A espera humana está realmente aberta a possibilidades que transcendem a realização feliz ou frustrada de cada projecto.
Ora, tanto num caso como no outro, tanto na espera do concreto – aqui, a chegada do amigo – como, mesmo que não pense directamente nisso, na espera do que transcende o concreto e limitado – o que será de mim na minha vida depois da chegada do amigo --, são possíveis duas atitudes enquanto tonalidades afectivas: a confiança e a desconfiança.
Devido a uma multiplicidade de factores, do temperamento às circunstâncias biográficas de sorte ou desgraça, passando pela educação, estes dois estados de ânimo – confiança e desconfiança – “podem converter-se em hábito de segunda natureza: a esperança, quando é a confiança que domina, e a desesperança, quando prevalece a desconfiança”.
O Homem, como o animal, não pode não esperar: vive orientado para o futuro e esperando o que projecta, isto é, a consecução de metas e objectivos concretos e também, quer se dê conta disso quer não, o que permanentemente transcende a obtenção dos seus projectos. A esperança tem, pois, dois modos complementares: a esperança do concreto (o hábito de confiar que os projectos parciais se irão realizando bem) e a esperança do fundamental (o hábito de confiar – a confiança não é certeza – em que a realização da existência pessoal será boa).
Esta esperança do fundamental é a “esperança genuína”, que assume dois modos, que não se excluem: a esperança terrena e histórica e a esperança meta-terrena e trans-histórica. Esta é própria dos crentes numa religião que afirma confiadamente a vida para lá da morte em Deus.
Aí encontrará o Homem finalmente, como viu Santo Agostinho, aquela plenitude por que aspira na tensão constitutiva entre a sua radical finitude e a ânsia de Infinito: “o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em ti, ó Deus”. “Santa esperança”, dizia Péguy.
O ser humano é constitutivamente esperante. Porque é que os seres humanos, apesar de todos os fracassos, horrores, sofrimentos e cinismos, ainda não desistiram de lutar e de esperar? Porque é que continuamos a ter filhos? Porque é que, depois de terramotos devoradores e de guerras destruidoras, recomeçamos sempre de novo? Perguntava, com razão, o célebre teólogo Johann Baptist Metz: “Porque é que recomeçamos sempre de novo, apesar de todas as lembranças que temos do fracasso e das seduções enganadoras das nossas esperanças? Porque é que sonhamos sempre de novo com uma felicidade futura da liberdade?”, embora saibamos que os mortos não participarão nela? Porque é que não renunciamos à luta pelo Homem novo? Porque é que o Homem se levanta sempre de novo, “numa rebelião impotente”, contra o sofrimento que não pode ser sanado? “Porque é que o Homem institui sempre de novo novas medidas de justiça universal, apesar de saber que a morte as desautoriza outra vez” e que já na geração seguinte de novo a maioria não participará nelas? Donde é que vem ao Homem “o seu poder de resistência contra a apatia e o desespero? Porque é que o Homem se recusa a pactuar com o absurdo, presente na experiência de todo o sofrimento não reparado? Donde é que vem a força da revolta, da rebelião?”
Neste movimento incontível, ilimitado, do combate da esperança, pode ver-se um aceno do Infinito, um sinal de Deus. Como não se cansava de repetir o ateu Ernst Bloch: “Onde há esperança, há religião.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 07 de maio de 2022
1. A morte é o choque mortal com o sentido. Ela é a barreira inultrapassável, definitiva. Significativamente, os antropólogos são unânimes em reconhecer na sepultura, portanto, na consciência da morte e na procura de transcendê-la, o sinal decisivo, indesmentível, de que, na história gigantesca da evolução, estamos em presença do ser humano, de alguém, da pessoa. Essa consciência é sempre acompanhada da religião e, de um modo ou outro, da filosofia, como reconhece a história, de Platão — a filosofia é “o exercício de morrer e estar morto” — a Schopenhauer, que via na morte a “musa da filosofia”, ou Martin Heidegger.
Perante a morte, quando tudo desaba e se afunda, erguem-se, mais dramáticas, esmagadoras, as perguntas essenciais: Donde vimos?, Para onde vamos? Qual o sentido de tudo? O que vale a existência? Perguntas inevitáveis para todos, pois, como dizia Ernst Bloch, no regresso a casa após o funeral de um amigo, nem mesmo o maior capitalista pensa apenas na sua conta no Banco. Aí está a razão por que, para conhecer uma sociedade, talvez mais importante do que saber como é que nela se vive, é saber como é que nela se morre e se trata os mortos. A maior prova do profundo mal-estar da nossa sociedade é que teve de fazer da morte um tabu. As nossas sociedades tecnocientíficas, da competição, do hedonismo, da ausência da religião, para serem o que são, foram as primeiras na História a colocar o seu fundamento sobre a negação da morte. E não se pense que isso acontece porque ela já não é problema. É o contrário: de tal modo é problema, o único problema para o qual uma sociedade que se julgava omnipotente não tem solução que a solução que resta é: Disso não se fala. Mas de uma sociedade que é incapaz de integrar a morte não se pode dizer que está sã. Evidentemente, não se trata de lidar com a morte de forma paralisante — não se pode esquecer que a morte foi muitas vezes utilizada de modo terrífico até pela Igreja, para dominar as consciências —, mas de modo sadio. Para se viver melhor, intensamente, com dignidade, livres, apreciar o milagre estonteante do ser e de ser, um rosto, o mistério do seu olhar... Sem a morte, não haveria ética, pois nunca seríamos obrigados à urgência da decisão: é a tomada de consciência da morte que nos revela o milagre da existência e o valor de cada instante da vida e a sua densidade íntima e definitiva, é ela que nos coloca perante a exigência da “existência autêntica” por oposição à “existência inautêntica”, como reflectiu Martin Heidegger. Em presença da morte, conquistamos a liberdade sem mentira... E é numa existência autêntica, que é uma vida amada e amante, que pode nascer a esperança fundada da Vida que não morre. Nas situações-limite, o Homem é posto em confronto com o apelo e a fé possível no Sentido último, que os crentes invocam como Deus.
2. Andamos frequentemente, talvez a maior parte do tempo, distraídos em relação ao essencial. Mas um dia chega a morte e é o confronto com o abismo sem fundo. “Ai que me roubam o meu eu!”, gritava Unamuno perante a morte. Frente àquele “nunca mais para sempre” neste mundo (Vladimir Jankélévitch), ninguém fica indiferente, tudo estremece. E agora?, e depois?
Se na morte formos engolidos pelo nada, onde está o Sentido último da existência?, que valor tem a distinção entre bem e mal, justo e injusto, digno e indigno?, onde assenta a dignidade do Homem, que é pessoa e não coisa? Se tudo se afunda no nada, já tudo é nada. Que valeram todos os combates, todas as lutas, toda a generosidade, toda a abnegação, todo o amor? O grande filósofo J. G. Fichte perguntava, voltando atrás no tempo: ... os meus tetravós nasceram, cresceram, amaram, tiveram filhos, morreram; os meus trisavós nasceram, cresceram, amaram, tiveram filhos, morreram; os meus bisavós nasceram, cresceram, amaram, tiveram filhos, morreram; os meus avós nasceram, cresceram, amaram, tiveram filhos, morreram... A vida é isto?
O Homem é por natureza o ser do transcendimento: nunca se contenta com o dado e está sempre para lá de si e de toda a meta alcançada. Vive um desnível insuperável entre o que realiza e a aspiração inesgotável a realizar-se sempre mais. Por isso, vai caminhando de sentido em sentido, mas só encontrará satisfação total no Bem Sumo enquanto Sentido de todos os sentidos, isto é, o Sentido definitivo e plenificante. Mas ele não pode realizar por si esse Sentido, que só por graça lhe pode ser dado. A História lê-se do fim para o princípio, de tal modo que só no fim, na morte, poderíamos saber quem somos, mas já lá não estamos. Assim, só Deus, no final, pela graça da plenitude da Vida, nos dirá quem somos e o que somos para Ele e Ele para nós. Esta é a promessa da Vida eterna. “Eu sou a Ressurreição e a Vida”, disse Jesus. “Santa esperança!”, dizia Péguy.
Ludwig Wittgenstein escreveu que “acreditar em Deus significa ver que a vida tem um sentido”. Lá no mais íntimo, os crentes sabem que é assim. E se na hora da morte nos fosse revelado que não há Deus? Não me arrependeria por ter acreditado. Porque, como disse o filósofo A. Valensin, o mal não estaria em nós por termos acreditado, mas em Deus, que, devendo existir, não existe. É uma espécie de argumento ontológico moral, à maneira de Simone Weil, a filósofa mística: não se arrependeria, pois “Deus é o Bem”, que não nos será tirado. E há uma dívida da História para com as vítimas inocentes; sem Deus, quem pagaria essa dívida?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 6 FEV 2021
A passagem de ano é sempre, mesmo nesta nossa presente circunstância triste e confinada, um tempo especial: balanço do ano que passou, perspectivação do ano novo que chega.
1. Agora, percebemos melhor que é preciso programar, mas há também o imprevisível. Quem poderia prever há um ano que iria cair sobre nós, nós todos, globalmente, esta catástrofe de uma pandemia: um vírus invisível, com sofrimentos indizíveis por todo o lado, que nos traz a todos em sobressalto permanente? Tivemos de aprender por experiência dura o que não conhecíamos: palavras como covid-19, confinamento, desconfinamento, reconfinamento, “distância social”, máscaras (sabíamos, mas era tudo em abstracto)... Sobretudo: que muitos, no fim do ano de 2020, já cá não estão, e foram-se sem uma despedida, como se tivessem desaparecido numa noite de breu, no meio de uma tempestade...
Ficámos a saber - será que ficámos? -, nós que nos julgávamos omnipotentes, que afinal somos frágeis, terrivelmente frágeis. E oxalá tenhamos aprendido que somos todos interdependentes, para o melhor e para o pior. E esta desgraça pandémica também nos mostrou à saciedade que o ser humano é de uma inaudita complexidade e de terríveis contradições: somos capazes de generosidade heróica para salvar pessoas, mas também está aí a nossa loucura e brutalidade: apesar da pandemia, que esperaria uma trégua no meio do horror, guerras brutais, terrorismos hediondos, assassinatos arrepiantes, violações repugnantes, exploração clamorosa dos mais fracos... continuaram. Já Sófocles constatou: “Coisas terríveis há, mas nenhuma mais terrível que o Homem.”
Daqui a alguns anos, quando se voltar ao “normal” - o que é isso? -, o que se dirá desta desgraça? O que ficará na memória? A memória humana é curta e talvez só quando vier outra pandemia - ela virá com certeza, sobretudo se não houver a necessária conversão quanto ao modelo de desenvolvimento, que atenda ao meio ambiente e à justiça para toda a Humanidade, no quadro de uma racionalidade dialógica global, como propugna J. Habermas - é que aqueles que cá estiverem recordarão... Quem se lembrava de que, no século XIV, a peste negra fez 100 milhões de mortos e que há cem anos a gripe espanhola ceifou uns 50 milhões de vidas, incluindo os dois pastorinhos de Fátima, Francisco e Jacinta?
2. Perante um ano novo que está aí à nossa frente, os sentimentos misturam-se: perplexidade, entusiasmo, dúvida, expectativa, temor, temores, esperança. Que é que nos reserva 2021? Para mim, para a minha família, para os meus amigos, para o país, para a Europa, para o mundo? Será melhor, será pior que o ano que passou?
Ele está aí novo, pela primeira vez, como criança acabada de nascer. E exactamente como a criança está aí com confiança. Todos nós, individual e colectivamente, enfrentamos o novo ano essencialmente com confiança: se reflectirmos bem, esperamos, evidentemente com realismo, também com algum ou muito temor, mas essencialmente esperamos confiadamente, tanto mais quanto está aí a vacina. O ser humano é um ser constitutivamente esperante, apesar da dureza toda com que a vida nos vai confrontando.
Porque é que os homens e as mulheres, apesar de todos os fracassos, horrores, sofrimentos e cinismos, ainda não desistimos de lutar e esperar? Porque é que continuamos a ter filhos? Porque é que depois de guerras destruidoras e pestes e terramotos devoradores, recomeçamos sempre de novo? Perguntava, com razão, o célebre teólogo Johann Baptist Metz: “Porque é que recomeçamos sempre de novo, apesar de todas as lembranças que temos do fracasso e das seduções enganadoras das nossas esperanças? Porque é que sonhamos sempre de novo com uma felicidade futura da liberdade”, embora saibamos que os mortos não participarão nela? Porque é que não renunciamos à luta pelo Homem novo? Porque é que o Homem se levanta sempre de novo, “numa rebelião impotente”, contra o sofrimento que não pode ser sanado? “Porque é que o Homem institui sempre de novo novas medidas para a justiça universal, apesar de saber que a morte as desautoriza outra vez” e que na geração seguinte de novo a maioria não participará nelas? Donde é que vem ao Homem “o seu poder de resistência contra a apatia e o desespero? Porque é que o Homem se recusa a pactuar com o absurdo, presente na experiência de todo o sofrimento não reparado? Donde é que vem a força da revolta, da rebelião?”
Neste movimento incontível. ilimitado, do combate da esperança, pode ver-se um aceno do Infinito, um sinal de Deus. Como se não cansou de repetir o ateu Ernst Bloch, um dos filósofos maiores do século XX: “Onde há esperança, há religião”.
3. Um propósito bom para o novo ano: prometer a si mesmo, a si mesma, no meio do turbilhão da vida, do barulho e da agitação, alguns momentos diários de meditação, de silêncio, para o aparentemente inútil, que é o mais necessário: ouvir o Silêncio, ouvir a voz da consciência e da razão, falar com o Mistério, talvez mudar de rumo. Neste contexto, permita-se-me evocar Maradona, a quem chamaram “deus”, um dos mais famosos a desaparecer em 2020: um ano antes, confessou que “não era exemplo para ninguém”, que tinha cometido “muitos erros”, mas também tinha feito “coisas boas”, que “o regresso à Igreja fora inspirado pela vida e a fé da sua mãe” - “uma das coisas que aprendeu dela foi a fé simples”, “tinha orgulho nela e no seu pai também” -, que “queria paz para o tempo de vida que Deus ainda lhe concedesse.”
Bom ano!
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 26 DEZ 2020
1. Naquele fim de tarde escuro do passado dia 27 de Março, quando a chuva começava a cair, o Papa Francisco, sozinho, concentrado, em passos lentos, quase alquebrado como se transportasse aos ombros a cruz da Humanidade toda, atravessou, em silêncio, uma Praça de São Pedro deserta e subiu os degraus para uma plataforma fragilmente iluminada e rezou, sozinho. Uma imagem que fica na memória de todos quantos assistiram àquela caminhada lenta, uma das imagens marcantes desta catástrofe. A apontar para a solidariedade mundial de todos e para a esperança. E disse: “Desde há semanas que parece o entardecer, parece cair da noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo de um silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem; pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos.” Aludindo à imagem do Evangelho, acrescentou: “Fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda”. Constatando que “nos demos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo importantes e necessários”, continuou, sublinhando o que desde a deflagração da pandemia tem sido uma constante sua: “Somos todos chamados a remar juntos, todos carecidos de encorajamento mútuo.” “Estamos juntos neste barco”, ninguém poderá vencer a tempestade sozinho, “só conseguiremos todos juntos”. E incutiu esperança e abençoou o mundo: “Desta colunata que abraça Roma e o mundo desça sobre vós, como um abraço consolador, a bênção de Deus.”
De lá, do seu confinamento em Santa Marta no Vaticano, todos os dias está presente ao mundo, dando ânimo, esperança, apelando à co-responsabilidade mundial. Para que ninguém se sinta só. Na homilia do Domingo de Ramos, mais uma vez, apelou à solidariedade, lembrando concretamente os mais sós: “Quando nos sentimos encurralados, quando nos encontramos num beco sem saída, sem luz, quando parece que nem Deus responde, lembremo-nos de que não estamos sozinhos.” E foi ao essencial, quando a Humanidade no meio desta pandemia é obrigada a deixar o supérfluo: “O drama que estamos a atravessar impele-nos a levar a sério o que é sério, a não nos perdermos em coisas de pouco valor, a redescobrir que a vida não serve, se não for para servir. Porque a vida mede-se pelo amor.” Aos jovens deixou esta mensagem: “Queridos amigos: olhai para os verdadeiros heróis que vêm à luz nestes dias: não são aqueles que têm fama, dinheiro e sucesso, mas aqueles e aquelas que se oferecem para servir os outros. Senti-vos chamados a arriscar a vida.”
2. No Domingo de Páscoa, há 8 dias, deixou uma mensagem histórica, pensando já no que é preciso e urgente para o futuro próximo. Uma mensagem própria de um líder político-moral global, pronunciada excepcionalmente, como não acontecia desde 1947, a partir do interior da Basílica de São Pedro e não da varanda frente à Praça. Para a sua síntese, inspiro-me na exposição esquemática do jornal “La Croix”.
2.1. Dedicada em larga medida à crise causada pela Covid-19, incentivou o mundo, “oprimido pela pandemia, ao contágio da esperança.” A ressurreição de Cristo não é “uma fórmula mágica que faz desaparecer os problemas, mas a vitória do amor sobre a raiz do mal.” E lembrou em primeiro lugar as vítimas do coronavírus, “os doentes, os que morreram, e as famílias que choram o desaparecimento dos seus entes queridos, aos quais por vezes não puderam sequer dizer um último adeus”.
2.2. Pediu para não esquecer aqueles que esta pandemia torna ainda mais vulneráveis: “os idosos e as pessoas sós, os que trabalham nas casas de saúde, os que vivem nas casernas ou nas cadeias”. Uma palavra especial, “pedindo força e esperança” para os médicos e enfermeiros, auxiliares, todo o pessoal de saúde, “que em toda a parte oferecem ao próximo um testemunho de atenção e de amor até ao limite das suas forças e muitas vezes até ao sacrifício da sua própria saúde”. Exprimiu-lhes a sua “gratidão”, a eles e “aos que trabalham assiduamente para garantir os serviços essenciais”, e ainda aos polícias e militares que “contribuíram para aliviar as dificuldades e os sofrimentos da população.”
2.3. Encorajou os governos “a empenhar-se activamente a favor do bem comum dos cidadãos, fornecendo os instrumentos e os meios necessários para permitir a todos levar uma vida digna e para favorecer, quando as circunstâncias o permitirem, a retoma das actividades quotidianas habituais”.
Porque “este tempo não é o tempo da indiferença, todos devem estar unidos para enfrentar a pandemia”, e fazer o necessário para que não se agrave a situação dos que já carecem de alimentos, medicamentos e assistência de saúde.
E pediu um alívio das sanções internacionais, “que impedem os países que as sofrem de dar um apoio conveniente aos seus cidadãos” e a redução ou até pura e simplesmente o perdão da “dívida que pesa sobre os orçamentos dos mais pobres.”
2.4. Porque “este tempo não é o tempo dos egoísmos”, dirigiu uma palavra veemente sobre e para a União Europeia, que nestas últimas semanas não brilhou particularmente pela sua solidariedade. Sublinhando que “do desafio do momento actual dependerá não só o seu futuro, mas o do mundo inteiro”, lembrou “o espírito concreto de solidariedade que lhe permitiu ultrapassar as rivalidades do passado” a seguir à Segunda Guerra mundial, sendo imperioso que “estas rivalidades não ganhem novo vigor”. E preveniu: “A alternativa é o egoísmo dos interesses particulares e a tentação de um regresso ao passado, com o risco de expor a uma dura prova a coabitação pacífica e o desenvolvimento das próximas gerações”.
2.5. Porque “este tempo não é o tempo das divisões”, apelou a “um cessar fogo mundial e imediato em todas as regiões do mundo”, citando nomeadamente a Síria, o Iémen, o Iraque, o Líbano, a Terra Santa, a Ucrânia e os “ataques terroristas perpetrados contra tantas pessoas inocentes em diversos países de África”, e desejou que “os capitais enormes” para o armamento “sejam utilizados para cuidar das pessoas e da melhoria das suas existências”.
2.6. Porque “este não é o tempo do esquecimento”, fez votos “para que a crise que enfrentamos não nos faça esquecer outras emergências que trazem consigo o sofrimento de muitas pessoas”, citando as “graves crises alimentares” na Ásia e na África, mas também a situação dos migrantes “que vivem em condições insuportáveis, especialmente na Líbia e nas fronteiras entre a Grécia e a Turquia, a que juntou especificamente a ilha de Lesbos, e a Venezuela.
2.7. E concluiu: “Indiferença, egoísmo, divisão, esquecimento não são propriamente as palavras que queremos ouvir neste tempo. Queremos bani-las para sempre!”.
3. A esperança não se pode confundir com wishfull thinking. Ela tem de ser pensada e activa, implicando uma estratégia correcta e eficaz. Assim, durante a semana, Francisco, convencido de que nos encontramos numa mudança de época, criou uma comissão de peritos, com cinco grupos, para estudar a crise económica, social e política global, já presente e que se agravará na sequência deste flagelo pandémico, e qual o contributo que a Igreja pode e deve dar a nível local e universal.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 19 ABR 2020
A VIDA, O SEU TERMO, O SONHO, A NÃO ESPERANÇA: EIS A SUA MATÉRIA
A desproporção de forças infetantes que se reproduzem sucessivamente, a grande praga que dizima os seres, que carcome as rochas, os ares, as águas e vaza os lixos na vida, refugo letal onde se adormece um sono, assim a Absurdidade comunica os seus poderes termiteiros e mercantis, somatórios ávidos do ter.
A profundidade a que todos, de um modo ou de outro, permitimos que no mundo se venceria pela força do que constrange e obnubila, permitiu que os domínios interditos de quem mata a espessura da vida fosse contada, e mesmo exposta, sem que uma multidão em número e vontade excedesse a soma das forças de todos os que fizeram chegar o mundo ao nível do lixo como desígnio.
Todavia as silenciosas contas bancárias dos responsáveis pelo suposto não saber dos atos criminosos que provocaram e provocam, elevam os rendimentos ao limite superior do possível e reduzem ao mínimo qualquer custo de manutenção do esconder dos seus atos, agindo como inimputáveis pois a máquina construída os protegerá passo a passo.
A terra continua a ser devastada pela violência dos monstros que alcatroam mandos de morte com a finalidade de que, à superfície, o cenário tenha brilho e atraia aparências de vidas que não denunciam o simulacro do que lhes é dado viver já que no imediato nem o reconhecem como tal.
Na fotografia, este menino dorme e desconhece que também lhe simularam o céu sob o qual adormeceu.
Sonhará este menino com o abrir de uma caixa própria, uma caixa de algo que lhe é muito precioso e o embala até a encontrar vazia e do sonho acordará num sem número de pesadelos reais?
Desconheço as contabilidades que se fazem neste pseudo mundo que troca capital por lixo e no qual adormecem crianças em nojentos colchões que boiam nas lixeiras, lixeiras criadas pelos manipuladores dos fátuos fogos que obscurecem até o futuro das luzes das estrelas.
Promove-se a guerra de todos contra todos: assim Hobbes, assim o emaranhamento das corrupções, teia de submissões articuladas no plexo do lixo.
Sob o ponto de vista gnoseológico a Esperança apresenta-se como um estado emocional, que deseja e antecede um objeto. Que objeto? Constituído? Concreto? Real? Espiritual? A Esperança é no nosso entender, um percurso constituinte que caminha unido intrinsecamente ao Homem.
É tanto maior, quanto o Homem se encontra em momento de forte carência, debilitado física ou emocionalmente. Parece ser concorde a opinião de que se torna imprescindível à vida, é o catalisador da própria vida. No seu percurso pode na realidade ser um objeto físico, -um automóvel, o desejo de mudar de residência, uma viagem, necessidade de uma intervenção cirúrgica urgente, pode ser um desejo espiritual profundo, até o silêncio….Todavia no seu percurso, mais ou menos intenso, a Esperança ainda não transporta realidades mas antes espectativas futuras, realizáveis ou não mas sempre no ethos do próprio Homem.
O Papa emérito Bento XVI alta referência teológica, quão filosófica, na sua Encíclica Spe Salvi, referindo-se à Esperança, de forma preclara diz: Quem tem esperança, vive diversamente; foi- lhe dada uma vida nova. (2007),5.
Mas, a aplicação da esperança sempre relativamente ao futuro, também de outro modo não pode ser, dá ao ser Homem um futuro muito económico, porque se apresenta como facilmente renovável, substituível tornando como consequência uma vida tormentosa para este que nunca se verá totalmente satisfeito tornando a esperança contrária ao bom, e ao bem, principalmente quando o Homem se alimenta de desejos irrealistas. Mas não tenhamos receio de afirmar que esta faz avançar a economia dos estados, sem ela tudo estagnaria, entraríamos numa ataraxia perigosa, por doentia, estaríamos a adotar uma postura niilista.
Vejamos o que sobre esta matéria escreveu Zygmunt Bauman:”(todos os bens de consumo, incluindo os descritos como duráveis, são intercambiáveis dispensáveis; na cultura consumista-inspirada pelo consumo, e, por um curto período, alivia a dor alivia um sofrimento talvez grave; mas também pode ser uma armadilha, ao mesmo tempo que torna os eus clientes satisfeitos, “propensos a armadilhas”) a esperança é e podemos afirmar sem receio que é uma virtude! Virtude, quer seja realizável ou não, ela tem uma substância própria, uma identidade, é um corpus pleno de virtualidades que resta ao ser homem saber com o seu consciente, utilizá-la de forma inteligente de forma ética e moralmente.
“Sofro logo compro”: quanto mais isolado ou frustrado, mais o indivíduo tende a procurar felicidade imediata na compra.”Sucedâneo da verdadeira vida, o consumo apenas exerce a sua influência na medida em que tem a capacidade de confundir ou adormecer, de funcionar como um paliativo dos desejos frustrados do homem moderno” A.C. Grayling; O significado das coisas. (A aplicação da Filosofia à vida) Gradiva, 2002.
“É o que a observação nos mostra todos os dias: compramos mais quando nos sentimos carentes; a ida às compras permite-nos preencher um vazio, reduz o mal-estar que nos persegue.”
<Por meio da esperança e através da Fé temos como a Graça em que nos mantemos e nos gloriamos, em que nos mantemos na própria esperança de Deus> (Romanos 5, 3-4).
O Homem tenta na crise da Esperança criar uma antropologia sem Deus e sem Jesus. Assim o Homem tenta ser ele mesmo o centro de toda a realidade criando, ilusoriamente, o lugar do filho do Homem. Com isto o Homem abandona o seu semelhante sem rodeios e preocupações algumas.
Ele bem se preocupa em estar aberto a grandes espaços de novidade e grandeza mas infringe a sua conduta ética, viola as tréguas em conflitos armados não se deixando mostrar indiferente aos conflitos da guerra e simultaneamente fazendo atos próximos da corrupção.
A cultura europeia parece querer com isto “uma apostasia silenciosa que vive como se Deus estivesse ausente do mundo” (João Paulo II, Eclesia in Europa, n.º 9).
É sempre oportuno ter presente que um momento ofensivo pode renegar a Esperança e lucidez mais o seu sentido interno. O Homem tem de ter a coragem de olhar o mal de frente e profundamente recusando os lugares comuns formando homens vigilantes.
A Força e a Esperança solicitam ao Ser Humano para que olhe para a Vida mas com humildade. A esperança cristã tem a sua origem na história do próprio Homem. A nossa memória abre-nos à Esperança e para o Homem comum quanto mais o Homem sofre mais se abre à procura da própria Esperança. É um abrir que vai mais além, guardando o passado no coração e com isto deixa de ser um idealismo para ser uma continuação já iniciada na infância para que comece a sentir aquilo que parece ser uma palavra de mais com as outras.
Ter Esperança ou ser Esperança é já de si um princípio ontológico em que o próprio Homem absorve a Esperança mais intimamente. Diz-se que “enquanto há vida há esperança”, atrevemo-nos a dizer que “enquanto há Esperança há Vida”!