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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O TIVOLI E OUTROS TEATROS E ESPETÁCULOS DE RAUL LINO

  


Já aqui referimos e analisámos o Teatro e Cinema Tivoli numa dupla perspetiva de edifício construído para cineteatro e sala de concertos, mas também no ponto de vista estético e da coerência artística, técnica e doutrinário de Raul Lino, autor do projeto e gestor artístico do Teatro, de 1924 a 1931. Evocamos o próprio arquiteto, num texto coligido por Diogo Lino Pimentel e publicado no passado num volume evocativo da Exposição Retrospetiva da Fundação Calouste Gulbenkian (outubro/novembro de 1970).


Escreveu então Raul Lino, a propósito do Tivoli:


“Levou mais de quatro anos a construir (…) era grande a vontade de fazer alguma coisa de original na decoração interna e cheguei a propor uma decoração que principalmente consistia em grandes ramalhetes de cerâmica policromada de estilo moderno e cores muito vivas (…) mas não consegui convencer o meu bom amigo (Frederico Lima Mayer): no entanto este pediu-me que me quisesse incumbir de organizar os seus programas, o que fiz durante sete anos” (cfr. “Tivoli - Memórias da Avenida”, coordenação de Duarte de Lima Mayer e João Monteiro Rodrigues, ed. Building Ideas, CM e Arquivo Municipal de Lisboa e Centro Nacional de Cultura - 2016).


E no texto aqui publicado referi a valência cultural do Tivoli como cinema, como teatro e como sala de concertos e de ópera, e isto, desde as chamadas Terças-Feiras Clássicas, às sucessivas temporadas de espetáculo teatral e musical, que aliás marcaram uma modernidade absolutamente notável em épocas sucessivas.


E basta lembrar que no Tivoli, em 1925, António Ferro lançou a companhia denominada Teatro Novo, efetivamente a primeira iniciativa experimental da história moderna do teatro português.


Ora, é caso para dizer, no respeitante ao teatro português, o Tivoli marcou uma coerência de modernização, em décadas sucessivas. Vocacionado para a apresentação de espetáculos vindos do exterior torna-se no entanto relevante evocar iniciativas de verdadeira renovação de companhias portuguesas; citamos então o Teatro Experimental de Cascais dirigido por Carlos Avilez, o Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra dirigido por Paulo Quintela, ou o Grupo 4 e mais espetáculos que acertavam este registo de modernização/renovação.


Isto, no que se refere a artistas portugueses. Porque, no que respeita a temporadas ou espetáculos vindos de outros meios, pelo palco do Tivoli passaram a Royal Shakespeare Festival Company com Barbara Jeford e Ralph Richardson, ou o Pirakon Theatron de Atenas, este em cooperação com a Fundação Calouste Gulbenkian.


E ainda as chamadas Galas Karsenty-Herber e outras companhias vindas de França, que levaram à cena peças de Montherlant, Peter Brook, Anouilh, Noel Simon, Ariano Suassuna ou Abélio Pereira de Almeida.  


E no que se refere à música? Aí, evocamos concertos em que se apresentaram “ao vivo” artistas com a qualidade e projeção de Stravinsky, Rubinstein, Menuhin, Kempff, ou dos portugueses Viana da Mota, Freitas Branco, Ivo Cruz, Silva Pereira, Frederico de Freitas, Álvaro Cassuto, Tânia Achot e também tantos mais.


No catálogo da Exposição acima referido, enumeram-se os principais espetáculos ou textos dramáticos e bailados em que Raul Lino colaborou como cenógrafo, sendo certo que algumas delas não chegaram a estrear: "Rosas Bravas" de Afonso Lopes Vieira, "Auto de Mofina Mendes", "Fausto" de Júlio Dantas, João de Barros e Manuel Sousa Pinto, "Bailado do Encantamento" de Rui Coelho com coreografia de Almada, "Salomé" de Oscar Wilde, "Milagre" de Veva de Lima, "O Fidalgo Aprendiz", "Orfeu" de Monteverdi, "Pastoral" de Ivo Cruz e Margarida de Abreu - isto quanto a cenários projetados ou executados e para além de largas dezenas de figurinos desenhados para estes e outros espetáculos de ópera e bailado, segundo o Catálogo da Exposição acima referido.


E ainda acrescentamos que Raul Lino é autor do projeto do Cineteatro Curvo Semedo de Montemor-o-Novo e de elementos decorativos do Cinema Palácio de Lisboa. Mas esses serão referidos noutra ocasião.

 

DUARTE IVO CRUZ

Obs: Reposição de texto publicado em 02.09.17 neste blogue.

REFERÊNCIAS A OBRAS, ARTISTAS E EDIFÍCIOS DE TEATRO NUM DICIONÁRIO

 

Não será obviamente esta a última vez que aqui se referencia o “Dicionário no Feminino (séculos XIX-XX)”, coletânea de estudos dirigida por Zília Osório de Castro e João Esteves, coordenada por António Ferreira de Sousa, Ilda Soares de Abreu e Maria Amélia Stone, num total de 904 páginas e, no que se refere ao teatro, contendo centenas de artigos sobre teatros, artistas e criações ligadas a  espetáculo, da autoria de 67 colaboradores especializados.

 

Tudo isto, no que refere então criadores e artistas, sejam escritoras, arquitetas, interventoras de espetáculo e outras intervenções, numa seletividade que o próprio nome da obra referencia: “Dicionário no Feminino”, como já citámos.

 

E desde já se assinale que a óbvia seletividade que o título do livro engloba, concilia-se numa imensa variedade temática, no que se refere especificamente ao ramo e às artes do teatro e do espetáculo. Pois de acordo com a seleção, nesta primeira fase da análise que aqui se efetua, encontramos algo com cerca de 103 artigos, todos de qualidade, englobando a vida e a obra de dezenas de artistas, escritoras, atrizes, encenadoras, jornalistas especializadas, cenógrafas, enfim, toda a imensa variedade de criação que marcaram nos séculos XIX-XX a atividade ligada ao teatro-texto, ao teatro- espetáculo, ao teatro- edifício, ao teatro-arquitetura, ao teatro-cultura...

 

De tal forma assim é, que não podemos aqui referir sequer a globalidade dos temas e ainda menos das referências criativas e profissionais. Por isso é pois de salientar a própria heterogeneidade, sendo certo – e é um mérito da obra - que são referidos teatros, peças, espetáculos, cenários, em suma, toda a complexidade que envolve esta arte.

 

E também é de salientar a abrangência da pesquisa no que envolve a própria complexidade das artes do teatro-espetáculo e a diferenciação dos nomes referidos, no que respeita às carreiras. Há que ter presente também aí a heterogeneidade que aliás constitui característica dominante da (s) arte (s) do teatro e do espetáculo.

 

 Pois no livro temos artigos adequadamente evocativos de grandes e conhecidos nomes da criatividade e da vida pública portuguesa: mas no conjunto de biografias, há que reconhecer e elogiar a variedade e seletividade de vidas, obras, criações e intervenções. Com um mérito ainda digno de especial destaque, pois surgem tanto artigos sobre personalidades femininas bem conhecidas, como artigos sobre personalidades femininas esquecidas ou hoje já completamente ignoradas, mesmo por especialistas, mas que merecem a referência e a pesquisa inerente! 

 

Dispensamo-nos, agora de fazer citações exemplificativas deste mérito do livro, no que se refere especificamente ao teatro e aos teatros: mas poderemos fazê-las em outras ocasiões.

 

DUARTE IVO CRUZ  

A VIDA DOS LIVROS

De 30 de março a 5 de abril de 2020

 

A história do “Jornal do Fundão” no mundo da cultura e da comunicação, graças à vontade de António Paulouro, merece uma referência especial, sobretudo no momento em que sai a lume a edição fac-similada do suplemento “& etc…” – magazine de Artes, Letras e do Espetáculo, que teve como artífice e animador Vítor Silva Tavares (Jornal do Fundão – Canto Redondo).

 

 

 UMA HISTÓRIA INESQUECÍVEL
De 1967 a 1971, com 26 números publicados, teve lugar a publicação de páginas memoráveis, cuja recordação merece a nossa homenagem. E é preciso recordar, antes de tudo, que, pouco antes dessa iniciativa, o “Jornal do Fundão” fora punido pela Censura com a suspensão de 6 longos meses, em virtude da publicação de um texto de Alexandre Pinheiro Torres sobre o Prémio atribuído em 1965 pela Sociedade Portuguesa de Escritores, entretanto extinta, a Luandino Vieira, preso no Tarrafal, pelo seu romance Luuanda. Em 1967, estava-se, assim, no final do consulado de Salazar, e na ressaca dessa severa punição, que envolveu a submissão de textos, fotografias e publicidade do jornal aos serviços de censura de Lisboa. Sob o impulso de José Cardoso Pires, o entusiasmo de António Paulouro e a concretização de Vítor Silva Tavares, o nascimento deste suplemento cultural situou-se no domínio do necessário improvável. E o jornalista costumava recordar a “trepidante adesão do Paulouro”, que “mais parecia uma criança toda virada à travessura do que um circunspecto adulto que somava ser o diretor de um jornal respeitável, sem dúvida o mais vertical e atuante de toda a imprensa dita ‘regional’, para apoucar”. Os riscos eram óbvios, mas o sabor do desafio valeria tudo. Com a inteligência necessária, a aventura começou com os necessários cuidados, não “com neorrealistas suspeitos”, mas com o venerável Professor Hernâni Cidade (“com muita honra”) no número 1, a falar de Raul Brandão. Assim, “não começou logo em velocidade de cruzeiro. Começa só aí ao quarto ou quinto número. Dentro daquela tática do Cardoso Pires que era: ao quarto ou ao quinto…, até para a censura não poder começar a cortar indistintamente porque já podia constituir algum escândalo. Tinha de se aguentar em crescendo, não mostrar logo o jogo”. Afinal, a independência era o que estava em causa – numa corrente que envolvia a contracultura, abrangendo, com saudável pluralismo, as diferenças democráticas. Mais tarde, segundo o próprio testemunho de Silva Tavares viriam os inevitáveis cortes, em que a censura obrigava a recompor tudo, mas com artificiosa colocação pela equipa de marcas subtis nos lugares do texto em falta. E a imagem de umas tesouras dava muito jeito… Nuno Júdice fala de um “duplo inconformismo”: “o primeiro em relação à Ditadura, embora outras revistas e suplementos literários também o fizessem, dentro das limitações censórias da época. O & etc… caracterizava-se por olhar também para fora do nosso universo e trazer o que de mais inovador e vanguardista se fazia nesse final da década de 1960; - o segundo, em relação a um certo conformismo estético da chamada cultura de oposição que decorria da submissão a uma linguagem condicionada pelos chavões ideológicos de uma esquerda ortodoxa que não permitia expressões de rutura, e quando elas surgiam eram marginalizadas”… Assim, “& etc…” ganhou uma marca que corresponde ao espírito do tempo, mas também ao anúncio de novos tempos. Ao folhearmos a publicação, sentimos que a evolução veio a confirmar os valores em que a equipa apostou.

 

ANTÓNIO PAULOURO E VÍTOR SILVA TAVARES
Depois desse encontro histórico com António Paulouro, Vítor Silva Tavares passou a ser passageiro regular da automotora da Covilhã, entre “gentes, cestos, galinhas, hortaliças”, tantas vezes sob a invernia dura da Cova da Beira, sendo acolhido a desoras na redação do jornal por umas vitualhas deixadas pelo diretor, um bife e um ovo a cavalo, pão e talvez meia garrafa de vinho, para aquecer a alma fatigada do jornalista… Até um dia em que os talheres foram esquecidos para drama e angústia do denodado artífice da escrita. Como Emanuel Cameira recordou na sessão da Fundação Calouste Gulbenkian (que outro local poderia adequar-se a este marco cultural?), pode falar-se de uma “revolução estética”: “Encontra-se aqui enquadramento favorável para explicar, por exemplo, a revolução do romance, protagonizada por José Cardoso Pires, tentando ir além do neorrealismo, mas depois também por gente mais distanciada como Almeida Faria, Nuno Bragança, Maria Velho da Costa (mais distanciada do neorrealismo como opção estética, mas não de uma resistência política, evidenciada de outras formas – recordo o caso de Carlos de Oliveira, exemplo de um neorrealismo não panfletário, realizado pela erosão da escrita)”. Silva Tavares vinha do círculo da editora Ulisseia e com ele vieram Rocha de Sousa, na área das artes visuais, Liberto Cruz na literatura, Romeu Correia no teatro, além de Virgílio Martinho e Luiz Pacheco. Júlio Moreira, um dos nomes mais presentes no suplemento, fala-nos da ideia de “fazer a revolução dentro”, de “poder transmitir às pessoas determinados pontos de vista culturais que correspondiam, de facto, a uma cultura do nosso tempo”. Havia, de facto, uma renovação em curso, nos meios culturais e artísticos. A democracia preparava-se, até pelo contacto com o que vinha de além-fronteiras, e isto já desde as revistas “Almanaque” (1959) e “O Tempo e o Modo” (1963).

 

UMA GRANDE DIVERSIDADE
A diversidade era significativa. As polémicas não se evitavam. E os horizontes apresentados eram bem diversos: José Régio, Maria Teresa Horta, José-Augusto França, José Blanc de Portugal, José Sesinando Palla e Carmo, Herberto Helder, António Ramos Rosa, Pedro Oom, Alexandre O’Neill, Ana Hatherly, E. M. de Melo e Castro, Ruben A… Os jovens Eduardo Prado Coelho (sobre o estruturalismo), Jorge Silva Melo (em depoimento breve) e José Pacheco Pereira (sobre literatura de viagem) estão presentes. Vasco Granja traz a Banda Desenhada e o cinema de animação. Nelson de Matos recorda o trabalho a que a pequena equipa era chamada: “recolhíamos as colaborações de várias áreas e de vários colaboradores e organizávamos o número de modo que tivesse algum interesse sem que os textos se relacionassem necessariamente uns com os outros”. Daí a vivacidade que o leitor inevitavelmente sentia… Era a lógica inconformista em vários sentidos. Assim, no poema de Ruy Belo “Nada consta”, fica dito: “quando as coisas se erguem contra o homem / se eriçam agressivas contra ele / nem ao poeta basta o parapeito das palavras”… O certo é que a vida de “& etc…” foi atribulada. Os 26 números foram publicados ao longo de 4 anos, verificando-se uma interrupção longa no último ano. Depois, a sigla teve uma vida própria, a partir de 1973 com uma revista com o mesmo título, mas sem reticências, que publicou 25 números, e Vítor Silva Tavares fez uma editora a que dedicou o resto da vida… Mas a história regista um magazine inesquecível, em luta corpo a corpo com a censura, num tempo em que os jornais se faziam a chumbo e em que era necessário muitas vezes reinventar quase tudo…    

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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