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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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  De 25 de junho a 1 de julho de 2018

 

«Estuário» (D. Quixote, 2018) é o mais recente romance de Lídia Jorge, no qual domina uma metáfora forte: o estuário surge, para a escritora, como uma paragem antes do esquecimento…

 

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UM CERTO REGRESSO

 

Em Estuário, Lídia Jorge volta, de algum modo, a O Dia dos Prodígios, não para repetir o tema, mas para retomar um certo sentido bíblico ou até litúrgico na consideração do tempo. Se o primeiro romance, justamente celebrado, nasceu da urgência libertadora, e se Os Memoráveis procuram uma reflexão feita a partir da relatividade dos acontecimentos, das pessoas e das coisas, Estuário parte da crise portuguesa e procura reencontrar “o carácter estoico e a honradez antiga” – perante a incapacidade de uma resposta que permita uma “sobrevivência digna”. E o que é aqui o homem moderno? Alguém que não sendo capaz de salvar o mundo, procura a ficção como modo de tentar consegui-lo. Edmundo Galeano são várias figuras a falar ao mesmo tempo – e o tema central não é outro senão o da resistência. E é bom que se diga que Lídia Jorge regressa, com coerência e determinação, a um tema que é seu e a que tem voltado persistentemente, em diversos registos e tons. E diz a autora: “o livro é sobre a grande crise que estamos a viver – mais do que sobre a crise que passámos” (DN, 26.5.2018). De facto, é ilusório pensar-se que a crise circunstancial está definitivamente passada. Há elementos duradouros que exigem reflexão e prevenção. E, ao longo de todo o romance, notamos um apelo constante a que nos mantenhamos atentos e firmes, e mais do que isso, que estejamos ativos. De facto, há muitos elementos dissuasores que impedem que as vozes cidadãs cheguem onde devem chegar para ser ouvidas. A comunicação de que muito se fala, torna-se tantas vezes uma ilusão. É este o problema da democracia hoje, tão mergulhada em crises e perplexidades, porque faltam instituições mediadoras, que impeçam a tirania do número, do imediato e da indiferença. E nos desencontros com o Estado a que aqui assistimos é da falta de mediação que, essencialmente, se trata.

 

 

UMA FAMÍLIA ENCLAUSURADA

 

O que encontramos no romance é uma família que vive enclausurada. E presenciamos um diálogo entre os grandes dramas globais, os processos históricos, e o que está próximo – o que vive ao nosso lado, sem cuja compreensão não podemos entender quem somos e onde estamos. Afinal, só se pode perceber o significado da tragédia dos outros quando esta deixa de ser abstrata – quando o medo deixa de ser difuso e passa a ser possível e próximo. Ao sentir a compaixão pelo próximo compreende-se que se pode escrever sobre o longínquo, sem que seja através de um mero conjunto de vagos lugares comuns. A distância desempenha, pois, um papel fundamental – os grandes problemas globais deixam na penumbra os dramas concretos que estão perto. E como em O Dia dos Prodígios também há a presença da magia, em breves apontamentos. Por exemplo, um casal atira ao mar uma mensagem dentro de uma garrafa à espera de uma boa notícia. Só os escritores podem perder o pudor para falarem sobre o que cada um procura esconder. Lídia Jorge tem-no repetido e assume como romancista o dever de não deixar por mãos alheias essa determinação. Urge desocultar o que está escondido. Resistência e emancipação, eis o que aqui encontramos ao longo de toda a obra. E Charlote encontra a sua força revelando a sua pele e o seu corpo, tornando a vulnerabilidade um modo de afrontar o medo, protagonizando uma história de amor. E que é o medo senão uma recusa de sermos nós perante os outros? Fechamo-nos dentro de uma concha, enclausuramo-nos e a memória, em lugar de se tornar um modo de nos abrirmos aos outros, torna-se lugar de ressentimento. Estuário poderia, segundo a autora, ter-se chamado “Casa dos Sonhos Trocados”. A crise geral, de facto, deve-se a uma inversão de valores e de sonhos… “A partir do que escrevemos tentamos iluminar. Cada frase é uma sombra da sombra de um sonho. Esse sonho é a realidade” (JL, 23.5.18).

 

Edmundo Galeano andou pelo mundo, esteve numa missão humanitária do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) no campo de Dadaab e regressou à casa paterna sem parte da mão direita. A grande casa de cinco pisos do Largo do Corpo Santo é uma metáfora da vida e do mundo e a mão direita desfigurada de Edmundo torna-se motivo da defesa da invenção literária perante a realidade nua e crua. Manuel Galeano, o pai, representa um tempo ligado ao mar que passou, mas faz da honradez a sua marca indelével, até às últimas consequências. A espera do Estado é desesperante, mas não é essa a salvação que se pode esperar. A resistência, afinal, manifesta-se contra esse Estado burocrático, distante, insensível. Há a frieza de Amadeu Lima, mas também o encontro entre ele e Charlote. São as duas faces da moeda – quem representa o poder de decisão e quem desesperadamente pede uma solução. “O que tinha ficado, isso sim, era um relâmpago que unia pessoas. Entre eles acontecia um relâmpago”… Esta era a face oculta de uma relação cheia de interrogações. A ficção da literatura torna-se um modo de afirmação substancial da resistência e da emancipação. Mais do que na culpa, importaria pôr a tónica na determinação em ir em frente. A literatura fixa a imagem que fica.

 

 

SOB A SOMBRA FERNANDO PESSOA

 

Se é verdade que “Ode Marítima” de Álvaro de Campos marca este romance – entre o drama do mar e a defesa da casa –, a Ilíada torna-se referência natural de um modelo literário revelador da humanidade de sempre. O funeral de Heitor, o herói amado pelos deuses, é lembrado – “como se o destino dos homens fosse um eterno combate, havendo um outro valor a defender” – para além do “compromisso dos contendores de adiarem por uns dias a nova batalha”. E Heitor é sempre um símbolo especial. Apesar de derrotado por Aquiles, depois de vencer Pátroclo, deixa-nos a ideia de que é essencial resistir. Com esta matéria-prima far-se-ia o caminho de salvação da humanidade, não feita de abstrações, mas de gestos e compromissos concretos. E aqui começa o romance de Edmundo Galeano, denominado 2030, no qual vamos encontrar temas de ameaça e perdição, mas também de salvação. Do que se trata é de um processo de aproximações sucessivas – a Terra gerida por quem tivesse a bomba nuclear ou o maior número de armas potentes e mortíferas; a ocorrência do Apocalipse e o subsequente Inverno Nuclear; e por fim a salvação dos que passavam por perto… “Salvavam-se os que conhecia, aqueles que surpreendera em plena batalha pela vida diária, esse humilde plano”… E que é o estuário? O encontro do rio e do mar, da água doce e da água salgada. A vida faz-se de contradições e complementaridades. E este romance permite-nos lidar com uma realidade multifacetada e inesgotável. Uma metáfora forte: o estuário surge, para a escritora, como uma paragem antes do esquecimento… E, não por acaso, Lídia Jorge usa como paráfrase do romance o que diz Saint-John Perse: “Eleva-se em nós um canto / que não conheceu nascente / e não terá foz em estuário”…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

Ensaio Geral desta sexta-feira é dedicado ao jardim botânico do palácio nacional de Queluz, que foi reabilitado e mereceu o prémio da União Europeia para o Património Cultural, prémio Europa Nostra. Convidados da Renascença foram Manuel Batista, presidente do conselho de administração da Parques Sintra; Nuno Oliveira, engenheiro que faz a direção técnica do espaço; e Guilherme d’Oliveira Martins.
 
 

LÍDIA JORGE

 

Estuário, o seu novo romance

 

Creio que as pessoas se perdem de nós e nós delas como se empurrássemos mundos que só se distanciam porque com o tempo somos conquistados por outros modos: pela morte ou pela vontade de uma escrita que os aceita, os quer buscar mesmo até à nudez que nos esclareça de tão blindada se sentir.

 

E escreve Lídia

 

Que a vida só está completa quando, ao morrermos, sentimos que obtivemos o conhecimento suficiente para outra vez nascermos. E essa contradição entre saber e percurso parece querer dizer que alguma coisa não está no seu lugar, mas está.

 

Escrever sobre este poderoso romance não é fácil, nem pretendo fazê-lo de jeito tradicional. Vou tentar dizer dele o que melhor saiba pelo ângulo que o senti, e direi de modo bifurcado, entre o espaço protetor do romance e o espaço sem contemplações do mundo cá de fora. E assim

 

Oferece-se também Edmundo para ser adivinhado neste livro e viver nele - terra tremenda - todas as traves, as casas, as muralhas, as ameias, o crepitar de vidas que ele quer colher no seu livro, escrito por sua mão amputada, por seus olhos fotográficos, pela sua capacidade de decifrar até quando desejará escrever tão avidamente o livro que tanto deseja, e deseja-o enfim, ao ponto de saber por entre as coisas secretas, que nenhum passo mais o levará a escrever algum dia esse livro, embaraço desvendado e eventualmente perturbador da sorte que lhe reserva um texto, qual grito de ave, lâmina.

 

Quero pensar que por entre os personagens de Estuário, por Edmundo Galeano chego a Tatiana e aos brincos de pérola, como proponho a chegada de David e da baleia cantora ao título do livro de Edmundo, a esse título 2030

 

E


Porque não havia uma correspondência entre as palavras e o mundo, ainda que muitos dissessem que sim. (…) que sentido tinha isso? O amor de Tristão e Isolda já não existe mais à face da Terra, ou antes, sabia-se agora que, afinal, sempre fora aquilo que fora, um mito construído com imaginação e palavras.

 

Um brinco de pérola salgada muito bela e criado em água doce e mansa. Ou a pergunta de David

 

Mãe, uma pessoa que se pendura de uma trave para morrer é muito fraca ou muito forte?

 

E responderá a baleia cantora pelo hino de Deméter que afinal é feliz quem dos viventes pergunta tal coisa.

 

Pois e não é que

 

Edmundo Galeano também entrou neste livro por uma garrafa que aportou à casa das vidas que queria escrever, que aportou ao estuário das saciedades e dentro da garrafa, uma película inextensa lhe permaneceu em negativo algures no seu cérebro.

 

Este livro de Lídia Jorge é também poético de tão real. Parece todo ele escrito entre o pôr-do-sol e o vir da noite, e, acaso adivinhais que nele também é dito

 

Quem disse alguma vez que os limites da nossa linguagem são os limites do nosso mundo, troçou da inteligência alheia. (…) Por que razão a vida sonhada era tão leve e a vida vivida, tão pesada? A imaginação tão diáfana, a realização tão grosseira? Perguntou-se Edmundo Galeano, com os olhos cheios de tristeza.

 

Edmundo optará por um regresso à casa, à casa junto à Praça do Mar e escreverá afinal o seu tão ansiado livro. Escreverá numa passada tutelada pela biblioteca onde A Cartuxa de Parma, A Peregrinação, a Ilíada, a Odisseia, O Homem sem qualidades, o Livro do Riso e do Esquecimento, a Ode Marítima, iluminarão sempre o que de melhor de si se salvará: a mão mutilada e afinal plena, ampla, como cavalo fogoso, agora esporeada para que a realidade não se fique por uma polegada acima ou abaixo do Estuário, antes substanciosa à vida.

 

Assim Lídia, neste teu livro senti uma mistura de inquietude e mágoa, humor e absurdo, capricho e segredo, mito e fantasia e o quanto as ligações humanas são todas tão perto do caos, verdade-herdeira de quem as escreve por mão insubmissa.

 

Teresa Bracinha Vieira