Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

 

De 1 a 7 de maio de 2017.

 

A publicação em curso da Obra Completa de Maria Helena da Rocha Pereira pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Universidade de Coimbra constitui a melhor homenagem que pode ser prestada à grande mestra dos Estudos Clássicos.

 

 

UM DIÁLOGO PERMANENTE COM OS CLÁSSICOS
“Quando se menciona, pela primeira e única vez na Odisseia, a possibilidade de um homem continuar a existir numa região privilegiada, a que se dá o nome de Campos Elísios, as palavras que traduzem esse pensamento dão claro testemunho da antiguidade da crença. Ao lado desta existiam outras, de que algumas perderam o significado no volver dos anos, entrando depois na mitologia sob uma rubrica diferente, e outras pela sua semelhança, vieram a confundir-se inextricavelmente com a mais antiga versão que conhecemos”. Este o ponto de partida da Dissertação de Doutoramento de Maria Helena da Rocha Pereira – Concepções Helénicas de Felicidade no Além, de Homero a Platão (1955) -, cuidadosamente preparada em Oxford, graças à orientação e magistério dos Professores Carlos Ventura, em Coimbra, e E. R. Dodds, em Inglaterra. Ao lermos hoje esse texto (irrepreensível exemplo do excelente domínio da língua portuguesa) referencial para os estudiosos da cultura clássica, compreendemos a especial paixão da autora pelos antigos, com quem gostava de dialogar permanentemente, na base de uma evidente proximidade histórica e humana. De certo modo, somos contemporâneos dessa gesta antiga, que nos configura culturalmente – na língua, nos valores, nas mentalidades. Isso nos ensinou a Mestra de muitas gerações, presentes e futuras. E essa relação não era fantasmática, mas palpável, uma vez que os testemunhos literários dão veracidade e verosimilhança à relação com os clássicos. E a grande riqueza desses testemunhos literários permite uma convivência espiritual, que a cultora dos estudos greco-latinos sempre nos legou, pode dizer-se, com autêntico amor. No tema escolhido do Além Feliz, estamos no âmago da compreensão da vida, da sua dinâmica e dos seus limites, hoje e sempre - desde as crenças mais antigas, dos mitos das terras longínquas, dos Campos Elísios ao Jardim das Hespérides, à Bem-aventurança no Hades, até às ideias sobre a felicidade do Além nos séculos VI e V a. C., no Orfismo e no Pitagorismo, em Empédocles, na poesia lírica e dramática, nos testemunhos epigráficos – e nos grandes mitos de Platão: Górgias, Fédon, Er, Fedro e no diálogo pseudo-platónico Axíoco…

 

NA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
O percurso da estudiosa é apaixonante, tanto mais que a jovem o seguiu pelas vias mais audaciosas. Tudo isto num tempo em que a mulher estava ainda fora da vida académica. Só uma alemã, Carolina Michaëlis, tinha tido lugar antes na docência da Lusa Atenas. Frederico Lourenço falou, por isso, justamente, de coragem, determinação e vontade de aprender. Em Coimbra, Maria Helena fora desafiada por Carlos Simões Ventura e seguira o conselho de ir até Oxford. A opção parecia impensável. A família do Porto Culto apoiou e abriu um caminho novo para as humanidades, no sentido mais rico e amplo do termo. Desse seu professor dirá: “Escrupulosamente fiel aos seus princípios (…) norteou a sua vida académica e particular por uma rigidez quase estoica, sem desvios nem afrouxamentos numa linha de conduta sempre coerente e límpida…”. E lembrava a expressão de Horácio - justum et tenacem propositi – e a paráfrase vernácula de Correia Garção: “constante varão justo e firme”. A discípula seguiu as pisadas do professor, superando-as largamente. E atenta ao exemplo do Professor E. R. Dodds (o célebre autor de Os Gregos e o Irracional) manteve uma ligação constante à evolução das condições históricas e das mentalidades nas sociedades greco-romanas. Daí um especial cuidado relativamente à dimensão humana subjacente aos textos que analisa. Homero, Hesíodo, Píndaro, Aristófanes, até culminar em Platão. “O mito do Górgias está claramente ligado à tradição homérica, embora já nele se evidenciem alguns traços novos. O do Fédon constrói um vasto cenário geográfico, onde a luz, a cor e a forma desempenham o papel mais importantes. No mito de Er depara-se-nos uma cosmogonia, na qual os efeitos visuais e auditivos ocupam um lugar não menos proeminente, embora o problema central não deixe nunca de ser o da escolha do destino. O mito de Fedro coloca definitivamente a cena no céu e retira deliberadamente todos os pormenores que possam sugerir objetos materiais”.

 

A CAMINHO DE OXFORD
Teria sido a leitura de uma tragédia grega, Oresteia, de Ésquilo, quando tinha 13 anos, que a levou a seguir Clássicas, mas quando chegara à Escola Litterae Humaniores de Oxford, ainda sob os efeitos do racionamento da Guerra, terminada cinco anos antes, apenas tinha quatro anos de Grego. As excecionais capacidades de trabalho permitiram-lhe, porém, ganhar grande competência na língua grega, envolvendo crítica textual, paleografia e epigrafia. E ainda se tornaria uma reputada especialista de vasos helénicos. O seu contacto desde cedo com a língua e a cultura alemãs foi de grande utilidade, tendo realizado para a célebre Biblioteca Teubneriana a edição crítica da obra de Pausânias em três volumes. A obra de Maria Helena da Rocha Pereira tem um valor múltiplo – é cientificamente essencial, é pedagogicamente única e é historicamente indispensável para o conhecimento das raízes culturais europeias e mediterrânicas. A edição da Fundação Gulbenkian de A República de Platão é justamente considerada uma tradução exemplar, reveladora de um conhecimento abrangente e universalista da sua autora. A publicação da obra completa pela Gulbenkian e pela Imprensa da Universidade de Coimbra em curso tem assim um valor indiscutível. A Medeia de Eurípedes e a Antígona de Sófocles, nascidas da colaboração com o Teatro Universitário de Coimbra, são, em si mesmas, obras literárias de primeira água. António Guerreiro falou da preocupação da Professora “de mostrar que (a cultura grega e latina) não era uma relíquia de museu ou objeto de uma historiografia mortuária” (Público, 11.4.2017). Daí também a importância dos ensaios sobre a influência clássica nos autores portugueses, de Camões a Torga, a Eugénio de Andrade e Sophia de Mello Breyner. A sua familiaridade com a obra de Platão leva a ter de ser considerada como uma das leitoras mais estimulantes do ponto de vista filosófico. Mas o que se revela fascinante é a capacidade integradora do pensamento na cultura grega. Desse modo, considera a inclinação dionisíaca de Nietzsche um “erro genial”, mas um erro, já que não pode subalternizar-se a força indiscutível da tendência apolínea. Como afirma no fecho da sua crucial dissertação doutoral: “a noção de que a bem-aventurança no além devia ser de natureza puramente intelectual surgiu, pela primeira vez, do cérebro de um filósofo, como era de esperar. Representa uma meta alcançada na evolução do pensamento escatológico, cuja importância não é demais encarecer. Porém, as outras conceções, que acabámos de ver, de tal modo refletem o amor pela beleza da forma e das cores, o desejo de gozo da vida física em toda a sua plenitude, que menosprezá-las seria pôr de parte uma das características mais marcantes do espírito helénico”… Não esqueço a sua amizade!    

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS


   De 17 a 23 de abril de 2017

 

Frederico Lourenço, quando recebeu o Prémio Pessoa, lembrou uma conversa com Sophia de Mello Breyner sobre a sua opção pelos estudos clássicos. É da maior importância essa recordação e a proposta que lhe está subjacente, no sentido do reconhecimento da importância das Humanidades, num sentido amplo e integrador, para a compreensão das nossas raízes.

 

CNC _ A Vida dos Livros.jpg

 

AO ENCONTRO DAS RAÍZES

A poesia da autora de Geografia e de Dual foi profundamente inspiradora para o jovem Frederico Lourenço que então dava passos decisivos relativamente à sua vocação. Houve, naturalmente, outras influências, como as muito marcantes de seus pais, Manuela e M.S. Lourenço ou a de seu padrinho João Bénard da Costa – nessa geração extraordinária de “O Tempo e o Modo” – mas o caso de Sophia foi muito especial. Ela “inventou uma Grécia própria. Não é a Grécia dos guias turísticos, não é a Grécia dos compêndios de história, filosofia ou literatura. (…) É uma Grécia construída pelo olhar dela, uma geografia anímica que tem tanto de Grécia como de Portugal” (Valsas Nobres e Sentimentais). De facto, a atração clássica, veio até Sophia dessa confluência fantástica do Mediterrâneo e do Atlântico, donde houve existência Portugal e que Orlando Ribeiro estudou com génio e brilhantismo. E Frederico Lourenço recorda o búzio comprado na ilha de Cós, onde apenas se ouvia “o cântico da longa vasta praia / Atlântica e sagrada / Onde para sempre a minha alma foi criada”. É Sophia quem fala, naturalmente, e cada um de nós sente familiaridade nessa sensação. E poderíamos recordar ainda nos Contos Exemplares as referências homéricas a Manuel Bote, banheiro mítico da Granja… Mas voltemos ao discurso do premiado e à recordação do modo desconcertante como a autora de Livro Sexto rematou essa conversa iniciática: “Só espero que não se arrependa”… Nada havia mais a acrescentar, tudo de essencial estava, porém, na ligação poética ao mar e ao “país de montanhas e navios onde os golfinhos correm quase à tona de água, onde a alegria se multiplica de ilha a ilha e sobre o qual paira a grande felicidade dos deuses de Homero” (O Nu na Antiguidade Clássica). Tudo estava dito e não dito. O amor fundamental de Sophia tinha a ver com as raízes antigas, em que os portugueses, como novos Argonautas, não poderiam ser compreendidos sem a referência aos genes que nos chegaram de Homero e de Ulisses – nosso pai mitológico...

UMA PROPOSTA SÉRIA E NECESSÁRIA

Naquele fim de tarde, na Culturgest, ao ouvirmos o galardoado, fomos transportados até a essas fontes mais distantes, onde bebemos a cultura que nos formou. E percebemos como o gérmen da cultura clássica ficou bem presente na criatividade perene do mais recente tradutor da Bíblia. “Além da inspiração que fui beber a Eugénio de Andrade e a Ruy Belo, ou a Camões e Pessoa, não tenho a menor dúvida de que o génio tutelar da minha tradução é Sophia. No fundo, o que eu tentei fazer foi traduzir Homero como se eu próprio me chamasse Sophia Andresen, embora, como eu já frisei, sem andresenizar artificialmente o texto” (Valsas…). Com especial pertinência, F. Lourenço defendeu agora ser “preciso começar o estudo do grego e do latim no ensino secundário. Enquanto isso não voltar a acontecer, a qualidade das nossas humanidades e o estudo da história e cultura portuguesas estarão no futuro seriamente comprometidos”. Esta ideia merece uma especial atenção. E não se pense que estamos perante uma sugestão avulsa de um cultor de determinado ramo de saber. Não. Do que se trata é de um apelo sério, que tem a ver com a preparação adequada dos estudantes na área essencial da língua e da cultura. O bom domínio da língua não é tema de gramáticos, é questão de cidadãos. Precisamos de saber comunicar bem, de modo a que nos entendam, a que nos entendamos uns aos outros e a que saibamos exprimir-nos com ideias claras e distintas. Não há verdadeiro diálogo se não soubermos falar e ouvir. Infelizmente, quando ouvimos tantos debates nos meios de comunicação, presenciamos monólogos maçadores e uma invariável incapacidade para exprimir pontos de vista próprios e para responder aos interlocutores.

 

A CULTURA COMO CRIAÇÃO

A sugestão de Frederico Lourenço é muito mais profunda, positiva e plena de consequências do que à primeira vista possa parecer. E não se julgue que tudo se poderia resolver com acrescentos curriculares. Bem sei que há sempre a tentação de colocar mais um adereço numa espécie de árvore de natal de temas. Não é disso que se trata. Impõe-se uma atitude inteligente que permita nos núcleos essenciais de aprendizagem saber integrar o conjunto e o contexto, a razão histórica, a diacronia e a sincronia, a etimologia, as regras e o método. Nesse sentido, o escritor tem toda a razão. Como poderemos entender e proteger a língua que falamos se não conhecemos de onde provém e qual a razão de ser das palavras que usamos. De facto, a qualidade das nossas humanidades e o estudo da história e cultura portuguesas estarão no futuro seriamente comprometidos se não dermos atenção as nossas raízes culturais. E insisto num ponto de que tenho feito cavalo de batalha – uma cultura aberta, consciente da necessidade de preservar o património como realidade viva, precisa de assentar numa atitude que favoreça a atenção ao que tem valor humano, assegurando o cuidado relativamente ao que recebemos dos nossos ancestrais. Só haverá atenção e cuidado se estivermos despertos. E as humanidades têm a ver com as letras e as artes, mas também com a matemática, a cultura científica e a importância do método experimental. Não se trata de dizer que tudo tem lugar, mas de compreendermos que a complexidade do mundo contemporâneo obriga à complementaridade de conhecimentos e de perspetivas. Mais do que da especialização, vivemos a era da cooperação de saberes. Na última crónica falávamos de Damião de Goes e de José Mariano Gago. Não podemos esquecer que os gregos referiam a “paideia” e os romanos a “humanitas”. E temos de nos lembrar das artes liberais da Idade Média: o Trivium, abrangendo: lógica, gramática e retórica; e o Quadrivium, com aritmética, música, geometria e astronomia… Se lembro isto mesmo não é para desfazer fronteiras e enfraquecer as ditas ciência sociais, mas sim para evitar o fechamento e garantir o encontro, a inter e a transdisciplinaridade. Sobre Oxford, que Frederico Lourenço conheceu desde tenra idade, encontramos, como se fosse uma metáfora sobre o diálogo entre o conhecimento e a vida: “é indesmentível que Oxford parece propiciar esse constante esmaecimento de fronteiras entre o literário e o factual, sobretudo quando o olhar que perceciona a cidade é, já de si, atreito a substituir a realidade que tem à sua frente por imagens e projeções livrescas”. A valorização das humanidades é, no entanto, o favorecimento de um combate constante e sereno contra a mediocridade e a ignorância. Não se trata de fechar conhecimentos sobre si mesmos ou de ignorar que a educação para todos obriga, nas suas profundas diferenças, a compreendermos a subtileza das relações entre cultura e vida e que não podemos confundir pessoas e robôs. A presença dos clássicos ajuda certamente.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença