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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

A tela como superfície a transcender.


Através de outra pessoa ou através de uma coisa é mais fácil falar sobre a verdade de um eu interior.


‘...preciso eu mesma de achar, a minha própria forma’, Etty Hillesum, 4 de julho de 1941.


O diário de Etty (Esther) Hillesum (1914-1943) abre a importância da descoberta do mundo interior. O livro trás uma verdade: a vida dentro da obra coincide com a vida dentro do criador. E mostra a importância de uma constante interrogação interior na obra do artista. Etty queria ser escritora e, portanto, era importante para ela afirmar que corpo e alma são exatamente a mesma coisa. Tudo o que ela sentia por dentro era outra forma de viver. O processo dentro do seu corpo - pensamentos, desejos, conhecimento - também participa na construção de ser. Para criar e escrever o seu diário, Etty confia a sua alma e toda a sua vitalidade a um insignificante pedaço de papel. Só então os seus pensamentos poderão ser claros e os seus sentimentos profundos. Mas uma grande inibição e falta de confiança não permitiam que seus pensamentos saíssem completamente livres e fluídos - na maioria das vezes, eles ficavam presos dentro de si. Etty sempre sentiu que ainda havia algo encarcerado. E ela treinava todos os dias para olhar e ouvir o que havia dentro dela.


‘...há algo que continua profundamente encarcerado dentro de mim.’
, Etty Hillesum, 9 março 1941


Algumas obras de arte revelam o interior oculto e infinito do artista que se encontra atrás de uma superfície e de uma pele. Alguns artistas desejam superar os limites do corpo (como pessoa e como objeto). Por isso a pintura pode passar a ser um objeto capaz de transportar, de transcender e de projetar.


A superfície de uma tela, pode ser: Alma em Agnes Martin; Personagem em Angela de la Cruz; Cor em Gothard Graubner; Corpo em Helena Almeida; e Espaço em Lucio Fontana.


Tela = Alma


There are two endless directions. In and out', Agnes


Os escritos de Agnes Martin (1912-2004) são muito profundos e claros em relação à ideia de que a alma é a única coisa de que um artista precisa para trabalhar. As pinturas de Agnes Martin estão relacionadas com a pureza da mente e com a "alma limpa". Para criar, o artista deve viver uma intensa experiência interior. Pode salvar-se se olhar para sua alma e a alma pode ser transportada para o objeto que se cria. Agnes, vivia quase como eremita no Novo México e acreditava que a alma ao ser independente da matéria deseja, por isso, libertar-se de qualquer corpo para que possa retornar à sua origem divina. A criação de uma alma visível na tela, acontece quando Agnes Martin utiliza retângulos, linhas horizontais, através do branco e do preto. As suas telas precisam de subjetividade e profundidade para serem interpretadas e compreendidas.


Tela = Carácter


Angela de la Cruz (1965) transforma as suas telas em personagens e sentimentos humanos - ora estão dobradas, rasgadas, quebradas, escondidas, curvadas, torcidas, colocadas nos cantos, no chão, na parede...


Angela de la Cruz estudou durante um período (1989-1996) em que a pintura triunfava e por isso desejava ultrapassar os limites físicos da estrutura e do material da tela tradicional.


Angela de la Cruz baseia o seu trabalho no legado da pintura modernista - abstração monocromática, superfícies planas, cores primárias e explora sobretudo a possibilidade das pinturas serem também objetos. Angela de la Cruz desconstrói a tela para, através da metáfora, representar o mundo real. A superfície é manipulada como se de uma personagem se tratasse. E assim, o objeto criado encarna qualidades antropomórficas, expressivas, alusivas e figurativas - corpos gordos perdem peso, telas esmagam-se umas contra as outras ou contra a parede, o tecido é arrancado, remendado, mutilado, morto, o nada.


Angela de la Cruz chama as suas telas de ‘cargo bodies’ - são peças performativas e são tão reais quanto as pessoas.


Tela = Cor


Na década de 1960, Gotthard Graubner (1930-2013) trouxe a possibilidade do volume da pintura se fundir com o espaço, como uma esponja colorida na água. A cor distribui-se e cobre todo o espaço da tela/almofada de maneira a enfatizar os cantos - a borda interna do retângulo da tela dá assim a impressão de um torso.


Graubner cria Farbraumkörper - os corpos do espaço e da cor. E por isso,se afirma uma forte intenção da cor em se tornar um corpo - pelo uso de esponjas e tecidos que succionam e absorvem a tinta. As esponjas são ainda recobertas por um tecido transparente (Perlon) que potencializa o efeito espacial da cor. Graubner criou a palavra Farbleib (corpo colorido) para representar a transferência entre o elemento que faz a obra e a própria obra. Os seus Körperbilder são retratos.


Para Graubner, a sua fórmula é: cor = transformação do organismo = pintura.


Embora a fixação na parede não seja necessária, pois o objeto também pode ser colocado como uma almofada numa superfície horizontal, Graubner gosta de pendurar os objetos para que o observador tenha uma conexão direta com seu centro de energia - o solar plexus.


Tela = Corpo


Helena Almeida (1934-2018) nos anos 1960 e 1970, vive na tela e trabalha o suporte da pintura como se fosse um corpo, o seu corpo.


As primeiras peças de Helena Almeida, de 1967-68, recusam o uso simples das duas dimensões, rejeitam a pintura ótica e sublinham as propriedades tácteis e plásticas (qualidades que vão para além de qualquer olhar). A matéria e a superfície da pintura são manipuladas como um objeto. Helena Almeida repensa a pintura a partir dos seus elementos estruturais e inverte a sua lógica convencional. A pintura (ainda que pendurada na parede) literalmente sai da tela - o seu interior e a sua dimensão oculta passam a ficar a descoberto, passam a ser o seu exterior. Posteriormente, Helena Almeida usa até as suas pernas, os seus braços, o seu rosto e todo o seu corpo para habitar a tela.


Tela = Espaço


The discovery of the Cosmos is that of a new dimension, it is the Infinite: thus I pierced this canvas, which is the basis of all the arts and I have created an infinite dimension...’, Lucio Fontana


Lucio Fontana (1899-1968) ao cortar a superfície das telas criou um conceito espacial - o universo da pintura foi transcendido. As perfurações tornaram-se irreparáveis. Os cortes representam um espaço filosófico - e o espaço para Fontana não é mais uma abstração. Ele afirma que a tela não é mais um veículo pictórico.


Fontana corta a tela em busca de porosidade, de interioridade, de penetrabilidade, de infinitude, de escape, de objetualidade.


Inesperadamente, Fontana afirma a ambivalência de uma obra de arte - não é somente pintura, nem escultura, nem instalação, nem ambiente ou tecnologia. Novas dimensões associam-se agora à tela - o infinito, a espiritualidade, a dor física, o terror de criar, a negação da mente, a ansiedade do incerto, a liberdade do corpo, a ampliação do desconhecido.


Os diários de Etty Hillesum fornecem o motivo para discutir a transcendência da superfície de uma pintura. Etty é uma escritora com um intenso mundo interior, mas que não consegue encontrar palavras para escrever. Por isso trago à luz pintores que com a mesma necessidade, transferem para a tela a sua alma, o seu carácter, o seu cor, corpo e espaço na esperança de criar um novo objeto com vida.

Ana Ruepp

ESTE LIVRO É UM CORAÇÃO QUE O ESCREVE EM JEITO DE ORAÇÃO.

 

Ela, como ninguém, ensinou-me a importância de exercitar a gratidão.
Ela, como ninguém, mostrou-me que é o facto de esperarmos um destino comum que nos faz cúmplices e irmãos na aventura do caminho.»
Filipe Condado

 

José Tolentino de Mendonça e Filipe Condado atentos ao parto da alma de Etty Hillesum, porque se vive sempre e primeiro por dentro; porque a reconciliação é o pré parto que expele qualquer ódio que mine o entendimento da vida espiritual, porque se o desejo desta for identificado e abraçado pela única porta que nos conduz a nós e aos outros: então saberemos que nos referimos ao amor; então julgo que sei um pouco do itinerário deste livro.

 

Emocionou-me profundamente a leitura deste livro: os excertos do diário de Etty, as fotografias e as palavras de Filipe Condado, as palavras de Tolentino.

 

Este livro propõe um horizonte que não se esgota através do humano, mas por aí encontra a sua expressão/mediação de chegar lá onde e aonde se trabalha espiritualmente a vida, sobretudo para nela confrontarmos os pontos dolorosos, quantas vezes vividos na nossa família (não se escolhe lugar onde se nasce, nem pai nem mãe, nem outros pontos de partida) que nos condicionaram o sonho de muitos modos, e até nos fizeram sentir abandonados, ou, como diz Etty ao falar de casa

É tragicómico, não sei que tipo de casa é esta, mas aqui uma pessoa não progride.

 

Esta substância aniquiladora, da qual se apercebe Etty insinua-se sólida na sua vida e ela receia que prisioneira, perpetue aquela mistura de barbarismo e cultura, espécie de qualquer coisa que era, sem nunca ter sido, e, no entanto fora.

 

Talvez a partir daqui, por um caminho ou outro, comecemos um começo sem fugirmos de nós, e escutando-nos, até que nessa escuta caiba a nossa vulnerabilidade, a nossa necessidade de aperfeiçoamento a cada hora, a fim de expelirmos a tal

Tralha humana e matagal manhoso

que temos em nós, se não passarmos também da cabeça para o coração como diz Spier a Etty.

E tudo isto com a ajuda do silêncio.

 

Só o silêncio nos aproxima a pergunta: quantas pessoas existem em cada um de nós? Creio que pergunta semelhante aproximou Etty Hillesum a um caminho com Deus; um caminho, o tal caminho muito encostadinho ao seu íntimo, tão encostadinho que lhe confiava um calor de xaile de mãe, um calor que a apaziguava consigo mesma.

 

A partir desta conciliação, interpretei, abre-se sempre uma vastidão apta há muito! A tanto! que até o que nos ensina a ocupar-nos dos outros é o mesmo que se ocupou da nossa mão e nos disse de algum modo que

Existe algo de «Deus» na Nona de Beethoven.

 

Surge-me uma Etty Hillesum que se não quer perder em constantes campos de batalha; uma Etty que deixa o umbigo para espreitar um tantinho de eternidade, outro tantinho dentro dela que é a intuição de encontrar uma sabedoria que a faça pessoa, e não um conhecimento que lhe aporte poder.

 

E este livro também se pode ler abrindo-se em qualquer página. E este livro também se lê só vendo os desenhos; e este livro é uma preciosidade contra o medo e não o simplifica, antes o sossega: eis a tranquilidade.

 

Quando uma pessoa leva uma vida interior, talvez nem haja tanta diferença entre estar fora ou dentro dos muros de um campo.

 

O campo de concentração: o trabalho do espírito a enfrentá-lo de dentro para fora.

 

Lembrei-me que se torturam barbaramente os elefantes para lhes retirarem o espírito, isto é, para os subjugar e humilhar pela dor, faze-los ceder, desaparecer de si. Mas como fazer sumir no ar as humilhações no campo de concentração? E Etty escreveu

Esta manhã desfrutei do vasto céu (..). Diria eu que Etty nos propõe o céu total, mesmo que visto por uma brecha minúscula.

 

E chega outra proposta de pensamento: será que o maior roubo que nos é feito, é feito por nós próprios? Se assim for é necessário o despojamento material e de aparência, para melhor vivermos uma vida em cada dia, uma vida na posteridade, e dentro dela, acolhe-se então, simplesmente, a morte.

 

Etty deixou de estar revoltada, mas resignada nunca! Foi capaz, sim, de tirar energia do sofrimento e como escreveu

A partir de agora vou extrair o essencial de tudo com o meu espírito e guardá-lo para tempos de vacas magras.

 

Se Deus não me ajudar mais, nesse caso hei-de eu ajudar a Deus.

 

Saberemos todos os caminhos que em nós se abrem ao entendimento da condição humana? Da sua índole? Saberemos nós perdoar-nos para que possamos perdoar os outros?

 

Saltam-me os poemas à memória, e todos eles sabem que à beira do morrer se descobre a paz da vida, e na mochila que connosco há-de partir em frutos e cereais vocacionados ao indizível sossego, digo, que mesmo que expressão alguma de desgosto humano não me seja alheia, que o absoluto possa conter em si o bem e o mal

Uma pessoa deve ser a sua própria pátria

e estar preparada para todos os inícios, acrescento, mesmo que eu não saiba como, mesmo que esteja eu num descampado de mim, saiba a minha mão por ela, que a estendo para ti.

 

Teresa Bracinha Vieira