Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Publicamos hoje, quando iniciamos o “Disquiet”, uma carta imaginária a Eugénio de Andrade, invocando a sua obra.
Meu Caro Eugénio de Andrade
Começo por lembrar o que um dia o meu amigo (permita-me que o trate deste modo) disse sobre Camões, e que constitui referência fundamental para compreendermos como a língua se faz através da vida dos seus melhores cultores. E se falo de vida, refiro-me ao testemunho de quem faz da literatura a essência da comunicação e do ofício.
«Foi Camões que deu à nossa língua este aprumo de vime branco, este juvenil ressoar de abelhas, esta graça súbita e felina, esta modulação de vagas sucessivas e altas, este mal corrosivo da melancolia”. Não poderia haver melhor apreciação, ligando o maior poeta da nossa língua à própria existência da língua como a mais intensa e pura expressão da nossa cultura.
O aprumo do vime branco representa o equilíbrio no uso das palavras, no que podemos considerar como a maturidade da língua na poesia, desde as origens dos trovadores, da decisão do rei poeta de tornar a língua vulgar em idioma oficial para legistas e tabeliães, até à lírica e à épica em “Os Lusíadas”. O juvenil ressoar das abelhas significa ouvir os passos de Leonor pela verdura, formosa e não segura. A graça súbita e felina vem do picaresco. A modulação de vagas sucessivas e altas põe-nos diante do Adamastor, mas também do juízo critico do saber de quem estava na praia, todo de experiências feito e do alerta contra a glória de mandar e a vã cobiça. Enquanto o mal corrosivo da saudade e da melancolia, do desejo e da lembrança desenvolve a tensão entre o drama e o sentimento, o passado e o futuro…
Por isso mesmo, estimado Eugénio de Andrade, pela sua sensibilidade e pela sua escrita, pôde tornar, por exemplo, a cidade do Porto, onde viveu, vindo da Beira Serra, ainda mais heroica, dramática e sentimental. Bem haja. Por um momento, percebemos, como a transparência se liga ao granito, à saudade e ao humor melancólico. «A transparência é aqui nostalgia: até a luz terá a cor do granito. Mas o granito é às vezes de oiro velho, e outras azulado, como o luar escasso que nesta noite de outono escorre dos telhados. Quando o sol, mesmo arrefecido, incide nos vidros, as mil e uma claraboias e trapeiras e mirantes da cidade enchem o crepúsculo de brilhos – o Porto parece então pintado por Vieira da Silva: é mais imaginário que real».
E, mesmo sem querer, ouvimo-lo como poeta na mais pura expressão da sua palavra: «É urgente o amor. / É urgente um barco no mar. / É urgente destruir certas palavras, / ódio, solidão e crueldade, / alguns lamentos, / muitas espadas. /É urgente inventar alegria, / multiplicar os beijos, as searas, / é urgente descobrir rosas e rios / e manhãs claras. / Cai o silêncio nos ombros e a luz / impura, até doer. /É urgente o amor, é urgente permanecer».
As palavras marcam, deste modo, a ligação íntima entre pessoas e pessoas, entre pessoas e lugares, e na sua obra, Eugénio, isso se sente com especial intensidade.
E não nos cansamos de o ouvir, dirigindo-se à palavra poética: «1. Sê tu a palavra, / branca rosa brava. / 2. Só o desejo é matinal. / 3. Poupar o coração / é permitir à morte / coroar-se de alegria. /4. Morre de ter ousado / na água amar o fogo. /5. Beber-te a sede e partir / - eu sou de tão longe. / 6. Da chama à espada / o caminho é solitário. / 7. Que me quereis, / se me não dais / o que é tão meu?». E como não recordar o modo como tem procurado o essencial: «Colhe / todo o oiro do dia / na haste mais alta / da melancolia»?
E tenho bem presente o que sempre nos disse: «É contra a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge, é contra esta amputação no corpo vivo da vida que o poeta se rebela». E o nosso Eduardo Lourenço com a lucidez poética que bem conhecemos disse, melhor que todos: “Talvez a essência e o milagre dessa singular transparência, que tornaram a poesia de Eugénio de Andrade ao mesmo tempo a mais refinada e a mais popular do nosso tempo português, se cifre toda no facto de ser, na medida em que isso é possível, uma poesia sem sujeito. Poesia sem sujeito como o pode ser a do nosso contacto, impossivelmente inocente, com as realidades primordiais que nos inventam no ato em que as olhamos e nos devolvem sem mediação à nossa esquecida mas sempre presente condição celeste, a luz do sol, o fluir dos rios, o passar do vento, o ritmo das estações, a visão das árvores, o apelo dos frutos. Como se um Alberto Caeiro, realmente novo Adão antes da culpa (da consciência) se tratasse, foi quase irresistível inscrever o poeta de As Mãos e os Frutos na arcádia do paganismo poético moderno”. E o ensaísta reforça esta intuição. “Toda a poesia é ‘palavra no tempo’ sem dúvida, mas a do autor de Ostinato Rigore, de tão colada ao tempo, de tão íntima do instante e sua fulguração, mais parece, sem ser intemporal, uma como que sensível suspensão do tempo”.
Lembramo-nos da sua estreia de 1939 com “Narciso”, ainda como José Fontinhas, e de “Adolescente”, ou do encontro com António Botto, e sobretudo da publicação de As Mãos e os Frutos, com o auspicioso reconhecimento de Jorge de Sena e de Vitorino Nemésio. José Saramago resumiu com felicidade o lirismo dessa poesia, que se singulariza por uma permanente referência ao corpo, a que chega através de um depurado caminho de aperfeiçoamento da palavra. Ficam na memória As Palavras interditas (1951); Ostinato rigore” (1964); Escrita da terra e outros epitáfios (1974); Limiar dos pássaros (1976); Memória doutro rio (1978); Matéria Solar (1980); Ofício de Paciência (1994); O Sal da Língua (1995); ou Os Sulcos daSede. Cada uma destas palavras constitui exemplo de uma maturidade poética conquistada num permanente exercício digno de uma oficina de artesão… O mesmo se diga na prosa: em Rosto precário (1979) ou À sombra da memória (1993). E em 2001, veio, com inteira justiça, o Prémio Camões, graças a uma obra segura e consistente, como de primeira grandeza na poesia portuguesa do século XX.
Em carta de junho de 1949 (leio a “Correspondência - 1949-1978 entre Jorge de Sena e Eugénio de Andrade”), Jorge de Sena foi muito claro a propósito de As Mãos e os Frutos: “Não sei se alguma vez lhe disse da estima que a sua poesia me merece, pela categoria autêntica, tão diferente do que a nossa desvairada geração tem produzido (…). Lembro-me que, em tempos, o acusaram de desumanidade. Não encontro, todavia, senão uma pagã humanidade; e mais vale uma humanidade assim, que só se importa com o que liricamente toca, do que fingir sentimentalidades oportunas”. Estou de acordo e julgo que ao longo do tempo tem-no demonstrado. O curso do tempo confirmou e afinou essas qualidades e a coerência.
E devemos recordar Montaigne: “l’essentiel est dit: deux êtres singuliers se rencontrent et comprennent en un éclair, que leur vie ne sera plus jamais comme avant». E o Eugénio fala dos Amigos com especial cuidado: «Os amigos amei /despido de ternura/ fatigada;/uns iam, outros vinham, /a nenhum perguntava /porque partia, /porque ficava; /era pouco o que tinha, / pouco o que dava, / mas também só queria / partilhar / a sede de Alegria / - por mais amarga». É La Boétie que vem à lembrança, já que não existiria na nossa memória sem o testemunho admirável do amigo Montaigne: “parce que c’était lui, parce que c´était moi!”.
E devo dizer, caro Eugénio, que a sua humanidade se exprime bem no diálogo com Dario Gonçalves, ao mesmo tempo, causa e consequência de muitos de seus versos. Passou a ser, de facto, uma espécie de afinador de palavras e fonte de inspiração. O piano poético em que o intérprete toca torna-se naturalmente mais legível.
Leia-se o postal de outubro de 1987 sobre uma viagem do Porto até Ribatua. Aí se nota a proximidade e a cumplicidade de uma partilha quase perfeita de sentimentos e de sensações. “Querido Amigo. Retomo a tradição dos postais em viagem. Saímos do Porto atrasados, comemos bogas fritas, já perto do Pinhão, e mal chegamos a casa, por volta das quatro, o Laureano acendeu o lume e aqui me tem à lareira a escrever-lhe. Só para lhe dizer que tem de ter cuidado consigo, que tem que alterar o seu ritmo de vida, essas correrias tiram-lhe anos de vida e eu quero que V. dure muitos anos, porque a sua amizade me é preciosa, além do livro sobre o Porto».
E voltamos ao mal corrosivo da saudade e da melancolia, ao desejo e da lembrança que desenvolve a tensão entre o drama e o sentimento, o passado e o futuro… E interrogo-me sobre as “Espadas da Melancolia”. Aqui está o corpo e pergunto-lhe se não é a essência da sua humanidade que aqui se encontra, como Jorge de Sena reconheceu.
“Um corpo / para estender a náufragos – o teu corpo. / Um rasto de cadelas aluadas, / um charco de maçãs apodrecidas / ou longas cabeleiras apagadas // Não dizias palavras, ou só dizias / aquelas onde o rosto se escondia. // Palavras onde o sangue não abria / a corola de fogo à madrugada. // O azul não canta, a água morre / na mais secreta boca do teu corpo. // Aqui não brilha a terra, a luz é fria, / aqui o horizonte não respira. // Não havia vento: só medo e cobardia”.
É esta a realidade humana, contraditória, duvidosa, mas próxima. Sem ilusão, importa entender que o lirismo nos obriga a ouvir a história trágico-marítima, e que esta também reclama o picaresco. Não acha, caro Eugénio de Andrade, que todos temos em nós um pouco do aventureiro Fernão Mendes Pinto? E a sua paixão pela língua que nos une e o seu amor camoniano obrigam-nos a ligar tudo isto, compreendendo que, como disse ainda o nosso querido Eduardo Lourenço – “Eugénio de Andrade, nascido já para cá de Pessoa, reinventou o canto dessa aparência (com que só em sonhos Pessoa comunicava) tornou-se puro olhar, escuta atenta do milagre do mundo, fez do universo seu espelho, aceitando-lhe o brilho da superfície e a sua sombra. É o poeta do mistério em pleno dia: ‘Claridade sem repouso, ó claridade, / aguda nos juncos, nas pedras rasa.”
Caro Eugénio, não é fácil descortinar a realidade humana na sua integralidade. Para os mais distraídos até parece que a humanidade está ausente quando deseja torná-la evidência. Mas basta ler atentamente e ouvir as palavras realmente ditas para não ter dúvidas. “Ama / como o rio sobe os últimos degraus / ao encontro do seu leito”.
Por isso, chamei para junto de nós Eduardo Lourenço, com a preocupação de ir além das aparências. Ele tinha toda a razão. Ao interrogar o mistério da realidade, o Eugénio tornou puro o olhar, como escuta atenta do milagre do mundo. “Estou de passagem: / amo o efémero”. E tenho de lhe agradecer, como leitor fiel, essa sua capacidade única. E por isso não esqueço: “Assim eu quero o poema: / fremente de luz, áspero de terra / rumoroso de águas e de vento”. Desse modo deve ser.
Eis por que lhe fico eternamente grato, evocando a busca do que está para além da superfície do tempo: “De palavra em palavra / a noite sobe / aos ramos mais altos // e canta o êxtase do dia”.
Aceite, assim, um abraço do admirador que o não esquece
Nascido em 19 de janeiro de 1923, há cem anos, Eugénio de Andrade é um dos grandes poetas contemporâneos. Cuja leitura permite a abertura de portas amplas para a compreensão da contemporaneidade da nossa cultura.
É URGENTE UM BARCO NO MAR Qual a força de Eugénio de Andrade (1923-2005) para tornar o Porto ainda mais heroico, dramático e sentimental? Por um momento, percebemos, como a transparência se liga ao granito, à saudade e ao humor melancólico. «A transparência é aqui nostalgia: até a luz terá a cor do granito. Mas o granito é às vezes de oiro velho, e outras azulado, como o luar escasso que nesta noite de outono escorre dos telhados. Quando o sol, mesmo arrefecido, incide nos vidros, as mil e uma claraboias e trapeiras e mirantes da cidade enchem o crepúsculo de brilhos – o Porto parece então pintado por Vieira da Silva: é mais imaginário que real». E ouvimos o poeta: «É urgente o amor. / É urgente um barco no mar. / É urgente destruir certas palavras, / ódio, solidão e crueldade, / alguns lamentos, / muitas espadas. /É urgente inventar alegria, / multiplicar os beijos, as searas, / é urgente descobrir rosas e rios / e manhãs claras. / Cai o silêncio nos ombros e a luz / impura, até doer. /É urgente o amor, é urgente permanecer». As palavras marcam a ligação íntima entre pessoas e pessoas, entre pessoas e lugares. E continuemos a ouvi-lo: «1. Sê tu a palavra, / branca rosa brava. / 2. Só o desejo é matinal. / 3. Poupar o coração / é permitir à morte / coroar-se de alegria. /4. Morre de ter ousado / na água amar o fogo. /5. Beber-te a sede e partir / - eu sou de tão longe. / 6. Da chama à espada / o caminho é solitário. / 7. Que me quereis, / se me não dais / o que é tão meu?». E como não recordar, como procura do essencial: «Colhe todo o oiro»: «Colhe todo o oiro do dia / na haste mais alta / da melancolia?» E o poeta que clarifica: «É contra a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge, é contra esta amputação no corpo vivo da vida que o poeta se rebela».
ESTREIA AUSPICIOSA Estreando-se em 1939 com o livro “Narciso”, ainda sob o seu nome civil, José Fontinhas, Eugénio de Andrade vai-se tornando conhecido, em especial quando em 1942 dá à estampa “Adolescente” Entretanto, é incentivado a prosseguir, por António Botto, com quem entra em contacto, que reconhece a qualidade indiscutível do novel poeta. Mas é com a publicação de “As Mãos e os Frutos” que se verifica o reconhecimento público, através da receção positiva da melhor crítica, como Jorge de Sena e Vitorino Nemésio. E José Saramago resume com felicidade o carácter lírico dessa poesia, que se singulariza por uma permanente referência ao corpo, a que chega através de uma depuração contínua. De Lisboa vai para Coimbra e depois para o Porto – e começa a publicar com regularidade: “Os Amantes sem dinheiro” (1950); “As Palavras interditas” (1951); “Ostinato rigore” (1964); “Véspera da água” (1973); “Escrita da terra e outros epitáfios” (1974); “Limiar dos pássaros” (1976); “Memória doutro rio” (1978); “Matéria Solar” (1980); “Rente ao Dizer” (1992); “Ofício de Paciência” (1994); “O Sal da Língua” (1995); “Os Lugares do Lume” (1998) ou “Os Sulcos da Sede” (em 2003 Prémio de Poesia do Pen Clube). São exemplos de uma maturidade poética adquirida num permanente exercício, como num cuidado produto de oficina de artesão… Também publica em prosa: “Os Afluentes do Silêncio” (1968); “Rosto precário” (1979) ou “À sombra da memória” (1993), além de obras infantis como “A história da Égua Branca” (1977) e “Aquela Nuvem e as Outras” (1986). Traduz Federico Garcia Lorca, António Bueno Vallejo, René Char e Jorge Luís Borges… E em 2001, ser-lhe–ia atribuído o Prémio Camões, graças a uma obra segura e consistente, que se afirma como de primeira grandeza na poesia portuguesa do século XX.
A MEMÓRIA DE MONTAIGNE Em carta de junho de 1949 (leia-se a “Correspondência - 1949-1978 entre Jorge de Sena e Eugénio de Andrade”, publicada pela Guerra e Paz, 2016) Jorge de Sena era muito claro a propósito de “As Mãos e os Frutos”: “Não sei se alguma vez lhe disse da estima que a sua poesia me merece, pela categoria autêntica, tão diferente do que a nossa desvairada geração tem produzido (…). Lembro-me que, em tempos, o acusaram de desumanidade. Não encontro, todavia, senão uma pagã humanidade; e mais vale uma humanidade assim, que só se importa com o que liricamente toca, do que fingir sentimentalidades oportunas”. É difícil dizer melhor. O tempo confirmou e afinou essas qualidades e a coerência. E vem à memória Montaigne: “l’essentiel est dit: deux êtres singuliers se rencontrent et comprennent en un éclair, que leur vie ne sera plus jamais comme avant». E Eugénio de Andrade fala dos Amigos com especial cuidado: «Os amigos amei /despido de ternura/ fatigada;/uns iam, outros vinham, /a nenhum perguntava /porque partia, /porque ficava; /era pouco o que tinha, / pouco o que dava, / mas também só queria / partilhar / a sede de Alegria / - por mais amarga». E chegamos a La Boétie, que não existiria na nossa memória sem o testemunho admirável de Montaigne: “parce que c’était lui, parce que c´était moi!”. «A partir de 1986, Dario Gonçalves foi, ao mesmo tempo, causa e consequência de muitos versos de Eugénio de Andrade. Passou a ser uma espécie de afinador de palavras e grande fonte de inspiração. Leia-se o postal de outubro de 1987 sobre uma viagem do Porto até Ribatua. Aí se nota a proximidade e a cumplicidade que permitem uma partilha quase perfeita de sentimentos e de sensações. “Querido Amigo. Retomo a tradição dos postais em viagem. Saímos do Porto atrasados, comemos bogas fritas, já perto do Pinhão, e mal chegamos a casa, por volta das quatro, o Laureano acendeu o lume e aqui me tem à lareira a escrever-lhe. Só para lhe dizer que tem de ter cuidado consigo, que tem que alterar o seu ritmo de vida, essas correrias tiram-lhe anos de vida e eu quero que V. dure muitos anos, porque a sua amizade me é preciosa, além do livro sobre o Porto».
«Correspondência 1949-1978 – Jorge de Sena – Eugénio de Andrade», com organização de Mécia de Sena e Apresentação de Isabel de Sena (Guerra e Paz, 2016) reúne um rico manancial de elementos epistolares extremamente esclarecedores sobre as duas personagens fundamentais da cultura portuguesa do final do século XX. No ano do centenário de Jorge de Sena e num momento em que a criação poética de Eugénio de Andrade merece ser visitada e refletida, trata-se de uma obra necessária.
COMPREENDER O MUNDO Ouvimos Eugénio de Andrade (1923-2005) no poema de “O Sal da Língua” e compreendemos a força da sua sensibilidade: «No fim do verão as crianças voltam, / correm no molhe, correm no vento. / Tive medo que não voltassem. / Porque as crianças às vezes não / regressam. Não se sabe porquê / mas também elas / morrem. / Elas, frutos solares: / laranjas romãs / dióspiros. Sumarentas / no outono. A que vive dentro de mim / também voltou; continua a correr / nos meus dias. Sinto os seus olhos / rirem; seus olhos / pequenos brilhar como pregos / cromados. Sinto os seus dedos /cantar com a chuva. /A criança voltou. Corre no vento». Estreando-se em 1939 com o livro “Narciso”, ainda sob o seu verdadeiro nome, José Fontinhas, o poeta vai-se tornando conhecido, designadamente quando em 1942 dá à estampa a obra “Adolescente” Entretanto, é incentivado por António Botto, com quem entra em contacto, e que reconhece a qualidade indiscutível do novel poeta. Mas é com a publicação de “As Mãos e os Frutos” que há o reconhecimento público, através da receção favorável da melhor crítica, representada por Jorge de Sena e Vitorino Nemésio. E José Saramago resume com felicidade o carácter lírico dessa poesia, que se singulariza por uma permanente referência ao corpo, a que o poeta e os seus leitores chegam através de uma depuração contínua.
UMA OBRA FECUNDA Nascido no Fundão, reside em Lisboa desde os 10 anos de idade e daqui vai para Coimbra com vinte anos (onde encontra Miguel Torga e Eduardo Lourenço) e depois para o Porto (em 1950), onde trabalhará durante quarenta anos – e publica com regularidade: “Os Amantes sem dinheiro” (1950); “As Palavras interditas” (1951); “Ostinato rigore” (1964); “Véspera da água” (1973); “Escrita da terra e outros epitáfios” (1974); “Limiar dos pássaros” (1976); “Memória doutro rio” (1978); “Matéria Solar” (1980); “Rente ao Dizer” (1992); “Ofício de Paciência” (1994); “O Sal da Língua” (1995); “Os Lugares do Lume” (1998) ou “Os Sulcos da Sede” (em 2003 Prémio de Poesia do Pen Clube). São exemplos de uma maturidade que foi sendo adquirida no permanente exercício da escrita poética, como se do produto de uma oficina de artesão se tratasse… Na prosa, publica: “Os Afluentes do Silêncio” (1968); “Rosto precário” (1979) ou “À sombra da memória” (1993), além de obras infantis como “A história da Égua Branca” (1977) e “Aquela Nuvem e as Outras” (1986). Traduziu Federico Garcia Lorca, António Bueno Vallejo, René Char ou Jorge Luís Borges… Em 2001, ser-lhe–ia atribuído o Prémio Camões. Estamos diante de uma obra segura e consistente, que se afirma como maior na poesia portuguesa do século XX. Acaba ainda de sair, com organização de António Oliveira, a “Correspondência de Eugénio de Andrade a Dario Gonçalves”, onde sentimos a força da amizade. E vem à memória Montaigne: “l’essentiel est dit: deux êtres singuliers se rencontrent et comprennent en un éclair, que leur vie ne sera plus jamais comme avant ». E Eugénio fala dos Amigos com especial deleite: «Os amigos amei /despido de ternura/ fatigada;/uns iam, outros vinham, /a nenhum perguntava /porque partia, /porque ficava; /era pouco o que tinha, / pouco o que dava, / mas também só queria / partilhar / a sede de Alegria / - por mais amarga». E se falamos do célebre autor dos “Ensaios”, chegamos ao seu dileto amigo La Boétie, que não existiria na nossa memória sem o testemunho admirável de Montaigne: “parce que c’était lui, parce que c´était moi!” Como diz o organizador desta correspondência diversa e múltipla: «a partir de 1986, Dario Gonçalves foi, ao mesmo tempo, causa e consequência de muitos versos de Eugénio de Andrade. Passou a ser uma espécie de afinador de palavras e uma grande fonte de inspiração (para não dizer musa inspiradora). A dedicação do poeta para com o seu amigo é de tal forma sincera e pura que ele escreve o seguinte no bilhete datado de 9 de janeiro de 1991: “Eu bem faço o possível para dar algum sentido aos seus dias, mas em vão”».
SENTIMENTOS E SENSAÇÕES Mas leia-se o postal de outubro de 1987 sobre uma viagem do Porto até Riba-Tua. Aí se nota a proximidade e a cumplicidade que lhe permitem uma partilha quase perfeita de sentimentos e de sensações. “Querido Amigo. Retomo a tradição dos postais em viagem. Saímos do Porto atrasados, comemos bogas fritas, já perto do Pinhão, e mal chegamos a casa, por volta das quatro, o Laureano acendeu o lume e aqui me tem à lareira a escrever-lhe. Só para lhe dizer que tem de ter cuidado consigo, que tem que alterar o seu ritmo de vida, essas correrias tiram-lhe anos de vida e eu quero que V. dure muitos anos, porque a sua amizade me é preciosa, além do livro sobre o Porto. V. tem tanta coisa ainda para fazer – as suas fotografias são cada vez mais bonitas, cada vez se parecem mais com um poema, eu quero que V. viva muitos anos”… Há, assim, um forte sentido do quotidiano. E é o uso magistral da palavra que faz irradiar a luz da lírica. “Poesia do ser e do amor, entre a carne e o espírito, lá onde as almas não existam para torturar-se e os corpos não saibam o que seja traírem-se” – é como Jorge de Sena identifica o que encontra na obra de Eugénio de Andrade. E em carta de junho de 1949 (leia-se a “Correspondência - 1949-1978 entre Jorge de Sena e Eugénio de Andrade”, publicada pela Guerra e Paz, 2016) Sena é muito claro a propósito de “As Mãos e os Frutos”: “Não sei se alguma vez lhe disse da estima que a sua poesia me merece, pela categoria autêntica, tão diferente do que a nossa desvairada geração tem produzido (…). O gosto de um equilibrado acabamento formal, sem uma falsa beleza retórica à Torga, na linha de cuja poesia originariamente V. se insere; a simplicidade, que não é banalidade; um discreto pudor, capaz de, com vigor, escrever ‘to a green god’; e o profundo lirismo…(…) Lembro-me que, em tempos, o acusaram de desumanidade. Não encontro, todavia, senão uma pagã humanidade; e mais vale uma humanidade assim, que só se importa com o que liricamente toca, do que fingir sentimentalidades oportunas”. É difícil dizer melhor. O tempo confirmou e afinou essas qualidades, e a coerência, relativamente à relação entre a poesia e a compreensão humana.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
Ah! Como é diverso o género humano. Estamos felizmente sempre a deparar com gente singular. Encontro na imagem de hoje muitos dos meus vizinhos e vizinhas. Poderíamos aqui falar do percurso do boato ou da má língua – hoje chamaríamos pós-verdade ou “fake news”… São caras dos anos cinquenta, mas poderíamos pôr-lhes uns fatos de treino, uns bonés de pala virados ao contrário, uns telemóveis modernaços. Gosto de ver estas caras – que dizem como somos seres imperfeitos, mas com o dever de sermos melhores… Que é a Ética senão isso mesmo? E temo que nestes dias de hoje, voltemos à tentação de delinear uma suposta perfeição politicamente correta. Lembramo-nos do que aconteceu aos puristas do terror francês de 1789. Como ninguém era suficientemente perfeito à luz dos supostos novos valores, o que lhes aconteceu foi irem parar à guilhotina, a uma cadência regular e inexorável. Hoje há mesmo quem ache que a difamação deve ser despenalizada para que a caça às bruxas seja mais eficaz… Há quem não entenda que a falta de ética começa com imaginária inocência. Inicio hoje um novo ciclo de colaborações em “Raiz e Utopia”… E começo por recordar que o título do Blog do Centro Nacional de Cultura não é uma escolha de acaso ou de circunstância. Pode dizer-se que foi de algum modo por via desta revista extraordinária e de boa memória, que irei recordar aqui em vários momentos, que o CNC renasceu depois de 1977. Havia quem dissesse que a missão do Centro como lugar de resistência estava esgotada com a chegada da liberdade. Puro engano. Abriu-se um novo ciclo, assente na inovação e na participação cultural. Lembrou-se Régio em “Davam grandes passeios aos Domingos” e procurou-se “Os Portugueses ao Encontro da Sua História”. Mas a revista “Raiz e Utopia”, graças ao impulso de António José Saraiva, de Carlos L. Medeiros e José Baptista, representou uma nova dinâmica – que Helena Vaz da Silva compreendeu melhor que ninguém. Guardo religiosamente na minha biblioteca a coleção completa da revista e sei que ela é em muitos dos seus números raríssima. Não me desfaço dela nem à lei da bala. Por isso, tenho muito orgulho em escrever neste blog, à sombra de tão significativas referências da cultura contemporânea. A ilustração que hoje escolhi, já referida, é de Norman Rockwell (1894-1978) um genial ilustrador norte-americano que desenhou como ninguém o “american way of life” dos inesquecíveis anos do pós-guerra. Os exemplos são múltiplos – desde o peru de Natal até à oração à mesa. Mas não posso esquecer o perturbador e extraordinário desenho intitulado “The Problem will all live with” de 1963 que é um ícone do combate ao racismo. Uma criança negra vestida de branco dirige-se à escola entre polícias, e na parede do fundo há despojos de tomates atirados por energúmenos quem sem o respeito como regra… Nestes tempos é bom revermos esta ilustração. A criança, os polícias, a parede suja de tomates lembram uma luta sem tréguas em nome da cultura da paz. O tema volta como os velhos fantasmas. A liberdade e a dignidade nunca estão adquiridos. Mas esses são outros contos largos a que regressarei… Por hoje deixo um belo poema de Eugénio de Andrade… O tema são “Os Amigos”…
«Os amigos amei despido de ternura fatigada; uns iam, outros vinham, a nenhum perguntava porque partia, porque ficava; era pouco o que tinha, pouco o que dava, mas também só queria partilhar a sede de alegria — por mais amarga».