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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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EUGÉNIO LISBOA (1930-2024)

  


Conheci Eugénio Lisboa em Londres, sempre com o mesmo rigor e afabilidade, com a amável presença de Maria Antonieta, sua mulher. Conferencista exemplar, era claríssimo até no modo como pronunciava as palavras, assinalando com naturalidade cada sílaba, cada frase, com a preocupação de deixar nítidas as ideias que exprimia. Tinha um sentido de humor único, não perdendo oportunidade para recordar um episódio burlesco. Engenheiro eletrotécnico de formação, no IST, entregou-se, ao longo da vida à literatura com uma dedicação digna de nota. Muitas vezes disse que no pelouro crítico só há uma regra, que considerava de ouro: ler, ler e ler. “Ler com atenção despreconcebida. Ler, aguardando sem a malícia de um programa prévio. Sem querer enfiar pelo texto abaixo a incompetência do método pré-fabricado. É o texto, a sua natureza, a sua força específica, a sua originalidade própria, a sua frescura intrépida – que nos hão de sugerir o método (se algum) mais adequado” (As Vinte Cinco Notas do Texto, INCM, 1987). Afinal, a clareza é a boa fé dos filósofos. E costumava lembrar António Sérgio, quando este pedia que não se fizessem confusões. “Um eclipse do Sol é uma escuridão, mas a teoria dos eclipses é uma doutrina clara”.


Eugénio Lisboa era um leitor permanente e insaciável – vário, intrépido e fecundo. Estou a ver a sua caligrafia cuidada, em cadernos de linhas, e a ordenação de citações oportunas, escolhidas com elevado critério. Não é possível compreendermos o que se chamou segundo modernismo, da revista “Presença”, sem recorrer a quem melhor conheceu e melhor estudou esse singular encontro cultural. Leu e estudou o seu amigo José Régio melhor do que ninguém, e como exímio intérprete entendeu bem os contributos de Adolfo Casais Monteiro, Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões. Percebeu cedo a originalidade do grupo e concordaria com a exceção à ideia de que o Português não é nada inclinado ao conhecimento de si próprio: “gosta muito de falar de si, mas daí a conhecer-se vão mundos”. Contudo, se se seguisse tal simplificação teríamos de concluir que “Antero, Pessoa e Pascoaes, por exemplo, não existiram, ou não foram portugueses, porque o mais significativo da poesia e da personalidade deles – aquilo que mais centralmente os devorou – é muito pouco característico do Português, tal como em média o conhecemos”.


Autor é aquele que acrescenta e foi esse o critério fundamental de Eugénio Lisboa na busca da literatura relevante. Lembremos o conselho que deu a António Osório, em boa hora, para que publicasse a sua inconfundível e sublime poesia. Por outro lado, a admiração que reservou a Jorge de Sena permite-nos aquilatarmos da originalidade e da força de um autor que sempre se considerou menos reconhecido do que deveria, mas que com a passagem do tempo e a limpeza dos caminhos assumiu o lugar essencial, como o crítico sempre considerou. Eugénio citou a propósito de outro intelectual marcante, o Padre Manuel Antunes, Charles Lamb, que disse: “Gosto de me perder no espírito dos outros homens”. Foi assim que aconteceu com ele próprio, numa obra plena de referências e de análises argutas e inteligentes assentes na busca incessante da eterna sabedoria do pensamento e da escrita. Montherlant, Reinaldo Ferreira ou Rui Knopfli também o ocuparam especialmente. Era um cosmopolita, com uma costela anglo-saxónica, criada na experiência moçambicana e na presença em Londres. Ao folhearmos números antigos da revista “Colóquio – Letras”, encontramos sempre o leitor atual, exigente e insaciável, a descobrir aquele pormenor essencial que passaria despercebido ao leitor ocasional. Não esqueço ainda a ação que desenvolveu na Comissão Nacional da UNESCO, sempre atento aos vários domínios da organização: a educação, a cultura, a ciência, o património e a comunicação. E as suas memórias em Acta est Fabula são imperdíveis, um autêntico néctar para a leitura do mundo.


GOM

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


171. LER É VIVER VÁRIAS VIDAS EM LIBERDADE


Extrapolando o excerto bíblico, é verdade que no princípio era o verbo, ou seja, a palavra falada, já que a palavra oral se antecipou temporalmente, em milhares de anos, no mínimo, à escrita.


E se é possível imaginar um mundo sem escrita, sem esta pouco ou nada saberíamos das civilizações que a criaram, nem poderíamos, sem leitura, contactar e dialogar com outras gerações que nos antecederam ao longo de milénios de história.   


Quem não lê, um país que não lê será sempre fraco, a falar e escrever pior, a ser mais prontamente manipulado, menos eficiente em algo de essencial e no exercício do contraditório, não estimulando a memória e a aquisição de conhecimento, perdendo-se a capacidade de questionar e de ser livre, ficando mais despossuídos de mandarmos em nós próprios e mais permissivos para sermos mandados.   


Ler é ter porta aberta a todos os mundos, alegres, tristes, pacíficos, sombrios, sinistros, fantásticos, futuristas, imaginários, um sonho que nos liberta pela mão de outrem e pela nossa imaginação. 


É um escape, uma fuga, voar mais alto, ir mais além do atingível, tocável e inteligível.   


Ao chavão “só fala e escreve bem quem lê muito”, opina-se que “falar e escrever bem estão em extinção, dada a redução do vocabulário, porque não se lê ou lê pouco”, com a cultura da leitura à beira do abismo, endeusando-se a quimera da igualdade e do saber das redes sociais, mesmo tendo-se como adquirido não ser o mesmo ler num ecrã de telemóvel/computador ou num livro, como sucede com os livros clássicos e sapienciais, pois escreve-se e lê-se pior através dos pequenos e grandes ecrãs.


Se é verdade que a leitura de livros vai perdendo a competição para os tablets (na maioria das casas, mesmo endinheiradas, os livros não existem ou são coisas raras), também a sua aprendizagem e uso privilegia e singulariza cada vez mais, pela positiva, quem o faz, não desprezando o lado analógico da nossa condição humana. 


E se para acionarmos a fala inventámos a escrita, se para acionar a escrita criámos a leitura, para a leitura exercitamos a imaginação de vivermos múltiplas vidas em liberdade, pois “Ler é transformarmo-nos, de um em muitos, de singular a plural” (Eugénio Lisboa, em Indícios de Oiro).


19.04.24
Joaquim M. M. Patrício

A VIDA DOS LIVROS

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   De 21 a 27 de agosto de 2017

 

"Diário de Viagens Fora da Minha Terra" de Eugénio Lisboa (Opera Omnia, 2017) completa os imperdíveis cinco volumes das Memórias do escritor e ensaísta - «Acta est Fabula».

 

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UM LEITOR INCANSÁVEL

Depois de termos seguido a par e passo nas Memórias as deambulações ao longo da vida do escritor, do engenheiro, do diplomata, do ensaísta, do estudioso e do crítico literário, temos direito a uma interessante sobremesa, na qual contamos com a verve e o estilo do leitor incansável, que nos acompanha em encontros e caminhadas por Montevideo, Los Angeles, Peru, Viena, Budapeste, Praga, São Tomé, Havana, Paris e Marrocos. E Antonieta está presente. É como se o escritor nos convidasse para irmos com ele ao encontro de referências culturais e literárias que nos enchem de prazer e curiosidade. As recordações de Eugénio Lisboa têm a extraordinária virtude de ser genuínas e de não embrulhar em papel de presente, com flamantes laços, o que pensa sobre o que vê, lê, conhece e encontra. Daí dizer-nos, a propósito de um obituário sobre Vergílio Ferreira, que a melhor atitude perante um autor que respeitamos é dizer o que se pensa – abrangendo os claros e os escuros, as penumbras e as luminosidades, e nesse sentido elogia a prática britânica, que se revela imbatível em rigor e respeito por quem se pretende recordar. Ao começar por Montevideo, no ano de 1996, tão próximo, parece que se retrata um momento distante, talvez do neolítico, quando, com uma dose especial de ironia, o autor nos fala de pessoas que usavam, por uma questão de estatuto, telemóveis falsos. E conta que nesse tempo em Madrid num lugar público houve um incêndio, vieram os bombeiros, o vestiário ficou intacto e, surpresa das surpresas, nos casacos deixados pelos utentes, metade dos telemóveis eram falsos. Hoje, parece anedota... E lembro o que Umberto Eco afirmou, nessa altura, sobre a utilidade dos telemóveis sobretudo, dizia ele, para intriguistas e doentes crónicos... Onde já vai tudo isso... Em duas décadas, o que avançou o mundo da tecnologia e da informação... Hoje, há mais telemóveis que habitantes nas sociedades de consumo e a dependência desses bicharocos tornou-se endémica. Mas o fait-divers serve para ilustrar um seminário académico, em que Cleonice Berardinelli pontua com charme e interligência. Eugénio gostou do Uruguai – “a gente é acolhedora e simpática e as ruas parecem, por enquanto, seguras. Mas vê-se que é um país recente, a que ainda falta um bom bocado de história. (...) Mas há um ar exterior de riqueza relativamente bem distribuída e parece que a maior fatia da população é constituída pela classe média”. Também gosto do país, que é uma espécie de domínio do “portunhol”, dadas as vicissitudes históricas. E, pensando na Colónia de Sacramento, ainda há muito para fazer para valorizar esse património que tem tudo a ver com a cultura da língua portuguesa.

 

JOSÉ RÉGIO VEM À LEMBRANÇA

Em Los Angeles, José Régio vem à lembrança. A encenação de Lisistrata de Aristófanes é motivo de regozijo. “Fiquei contente. E o Régio também ficaria, se fosse vivo”. Mas sobre os excessos da criatividade interpretativa, lembra-se Yehudi Menuhin no King’s College a dizer que cada intérprete dá sempre a sua interpretação de uma partitura, mas esta só admite uma certa margem de variação... O reparo visa em cheio certas liberdades teóricas que nada têm a ver com o sentido original, para além da margem do bom senso... Entre contratempos burocráticos e contactos inteligentes, na companhia do amigo Boris Katz, um médico cheio de solicitações, o escritor encontra a afirmação de Charles Townes, especialista em Eletrónica Quântica: “Se olharmos para aquilo de que a religião se ocupa, verificamos que ela visa compreender o propósito e o significado do universo. A ciência tenta compreender funções e estruturas. Se existe algum significado, a estrutura terá muito que ver com esse significado. A longo termo, chegarão a convergir”. Mas Eugénio Lisboa fica cético e fala de especulação e de wishful thinking... O mundo do conhecimento está naturalmente cheio de dúvidas e contradições... No Peru, “pobrete e nada alegrete”, vai ao encontro da filha Geninha e família, e depara com o “país vivendo de desassossego em desassossego, até que um dia salta uma erupção qualquer, que um ditador sem escrúpulos, como Fujimori, sufocará, legislando no sentido de dar às forças de repressão imunidades que são uma vergonha”. Sente-se uma situação de incerteza e instabilidade – e na passagem por Caracas (era 2005) ainda não se sentia todo o inferno em que a Venezuela se transformou. Já a peregrinação ao Império Austro-Húngaro – a Viena, Budapeste e Praga – é singular. Apesar das pequenas desilusões culinárias, é Graham Greene, do “Terceiro Homem”, a ser recordado, como símbolo da transição após o fim da catástrofe da Segunda Guerra, que prolongou por trinta anos o inesperado conflito iniciado em Agosto de 1914. Há um fundo musical mozartiano nesta invocação vienense. Os Habsburgos, o Palácio de Belvedere, o principe Eugénio,  e compreende-se que a ponte Francisco José tenha as luzes apagadas, por contraste com a iluminação da ponte Sissi – que é venerada, “farta das peneiras austríacas, veio viver para Budapeste e não quis mais nada com os seus compatriotas, que abominava...”. Depois vem Kafka: “Habita-me a presença de Kafka que, obviamente, não cabia aqui”... Eugénio parece-se fisicamente com Kafka, já o diziam Vergílio e Régio... A inesgotável matéria-prima kafkiana poderia não ter chegado até nós... E a imersão total parisiense lembra que “foi bom ter-te conhecido, em 1953, ter-te visitado, depois, uma dúzia e meia de vezes e ter estado contigo, agora, mais uma – que será, provavelmente, a última. Que milagre ter nascido e que milagre maior ter nascido entre aquele número muito reduzido de pessoas a quem foi dado conhecer cidades e tesouros, como tu, Paris...”. E se a capital francesa é uma referência civizacional, Cuba é o lugar mítico que recorda Fidel e Che a descerem da Sierra Maestra em 1959, para pôr fim à ditadura de Fulgêncio Batista. Depois o regime começou a endurecer, a eternizar-se no poder  e a perseguir e prender os dissidentes. E com que emoção, na viagem a S. Tomé, Eugénio Lisboa fala de Isaura Carvalho, que com João Carlos Silva era a alma da deslumbrante roça de S. João dos Angolares. Deixou-nos há pouco – com uma voz lindíssima e um português que era um modelo de perfeição... As memórias tornam a vida presente...  

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

A VIDA DOS LIVROS

De 1 a 7 de Dezembro de 2014.

 

Eugénio Lisboa prossegue galhardamente a publicação das suas memórias, que constituem documentos essenciais para a compreensão da vida e da cultura portuguesas do século XX. Falamos de «Acta est Fabula, Memórias IV, Peregrinação: Joanesburgo, Paris, Estocolmo, Londres (1976-1995)» (Opera Omnia, 2014).

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PEREGRINO CURIOSO…
Nada melhor do que fazer um fim-de-semana em Londres, em visita à família, acompanhado de um livro desejado – de memórias e serena atitude crítica. Entre as deambulações citadinas, as obrigações, as livrarias e tudo o mais, foi muito bom contar com a companhia do último livro de Eugénio Lisboa - «Acta est Fabula, Memórias IV, Peregrinação: Joanesburgo, Paris, Estocolmo, Londres (1976-1995)». E a verdade é que ao regressar a Londres, sempre recordo os nossos primeiros encontros, há mais de vinte anos. Eugénio Lisboa, cuja amizade se foi reforçando com o tempo, é um peregrino curioso, uma personalidade especial, em quem o conhecimento literário e a vasta cultura são complementos naturais de uma simpatia inesquecível. Conheci-o primeiro, como é óbvio, através da sua obra e em especial da sua relação fundamental com José Régio. Não é, aliás, possível compreender o lugar da «Presença» na literatura e na cultura portuguesa sem conhecer a visão de conjunto, a leitura crítica e o acompanhamento pormenorizado por Eugénio do autor de «A Velha Casa» e da sua geração. E se houve quem o classificasse como presencista, foi certamente por desatenção ou desleitura, já que, admirando Lisboa a personalidade de Régio, possui luz própria, sendo um leitor crítico praticante.

 

CICERONE DA CULTURA
Eugénio é, nos seus ensaios, um extraordinário cicerone da cultura do século XX, sempre capaz de encontrar o singular e o melhor, mas também de descobrir os mais inusitados pecadilhos, às vezes onde menos se espera. Foi este crítico que cedo encontrei e que depois conheci pessoalmente em Londres (como Hélder Macedo). O contacto com a sua personalidade tornou a admiração antiga natural proximidade e especial afeição, extensiva a sua mulher Antonieta… A verdade é que a obra memorialística de Eugénio Lisboa vem trazer-nos a ligação da sabedoria, da cultura e do conhecimento ao humanismo e à independência de espírito (que nos levam a António Sérgio…). A cada passo, se nota, de facto, essa independência crítica que permite reconhecer a importância das suas apreciações e comentários, nunca tributários de qualquer favor, mútuo elogio ou cedência à moda. Estamos perante um crítico fiável, muitas vezes incómodo, mas sempre livre. O problema não está em concordar ou discordar, mas em sabermos que a sinceridade é a fidelidade suprema à busca da verdade e da justeza. Nesse sentido, Eugénio Lisboa cita, a propósito do que viu, com tristeza, em Moçambique, nas «nacionalizações selvagens e desordeiras, anunciadas e prontamente executadas, à ponta das kalashnikovs», a afirmação de Alfred North Whitehead, o matemático e lógico, amigo de Bertrand Russell: «a arte do progresso é preservar a ordem, no meio da mudança e preservar a mudança no meio da ordem». Assim, o autor de «Acta est Fabula», se conhece a história e o género humano como poucos, nunca desiste de fazer a democracia uma questão séria.

 

NOVA PARTIDA DE MOÇAMBIQUE
O volume agora dado à estampa inicia-se com uma nova partida de Moçambique, depois da independência, desta feita sob a invocação (dramática) de Tennessee Williams: «há um tempo para partir, mesmo quando não há um lugar certo para ir», com um aceno comovedor inspirado em Robert Graves: «Good-bye to all that». Estamos perante nostalgia, desprendimento, amargura, mas também a consciência plena de que o melhor seria mesmo partir. Ao longo de toda a obra, vê-se, contudo, que o autor nunca esquece essas raízes fortes e ternas da África Oriental… Se a peregrinação passa por Joanesburgo (onde a memória do Pai fica indelevelmente lembrada), por Paris (sem festa nem companhia…), por Estocolmo («um controlo suave, apoiado na abundância e na segurança») e sobretudo por Londres, por entre as estadas portuguesas, a verdade é que Eugénio liga sempre o seu ofício ao gosto da vida e das pessoas. O livro deve ser lido, pois, atentamente, contando com partes suculentas de um diário inédito e reflexões atualíssimas. Muitas vezes, deixa-nos mesmo ver o avesso das coisas para que entendamos melhor a superfície real. Há episódios tocantes, como o da terrível destruição da valiosa papelada que estava na garagem na avenida Massano de Amorim, ou o da chegada ao aeroporto de Mavalane, quando os zelosos funcionários moçambicanos se negaram a tratar Eugénio como estrangeiro, apesar do passaporte português. «Havia muita gente boa naquela boa terra moçambicana, mas, infelizmente, não era necessariamente essa que detinha nesse momento as rédeas do poder». E entre as referências sentidas ao longo do volume, temos a recordação de personalidades marcantes como Rui Knopfli, Fernando Namora (criador da insubstituível Biblioteca Breve do velho ICALP), David Mourão-Ferreira, Fernando de Mello Moser, Luís Amaro, Alberto Lacerda e Luís de Sousa Rebelo (que deveria ter merecido outras atenções, que não teve).

 

MEMORIALISTA DE ELEIÇÃO
Em Londres, o memorialista descreve-nos, com sentido prático, a situação um pouco peculiar do diplomata: «vive dentro da Embaixada, onde fala português com os colegas portugueses e lida com assuntos que dizem respeito a Portugal. E comunica todo o tempo com Lisboa. Mas, lá fora, é Londres com a sua vida própria, os seus valores, os seus sons, os seus ritmos, as suas atrações e repulsões. Há o teatro, os concertos, os pubs, os museus, o Tamisa, os parques, os scones, a língua… Estamos e não estamos instalados, somos e não somos londrinos, somos e não somos portugueses». Há quem pretenda dizer que estamos desenraizados, eu prefiro sustentar que fiquei pluralmente enraizado. Fui gostando e não gostando: nem tudo (…) é admirável». A cada passo sente-se o domínio do tempo, com uma fantástica capacidade de contar os pequenos nadas de que a vida é feita – em especial a paciência para lidar com a estupidez, com os empatas e com os burocratas, apesar das boas surpresas. E, com o humor, que nunca deixa, lembra G. B. Shaw a dizer que todos os prazeres do cidadão inglês podem ser partilhados com o seu cão e recorda H.G. Wells a invocar a lenta passagem da compreensão à ação na Albion quanto às mudanças necessárias… Ao meditar sobre a cultura, porém, arremete justamente contra os nossos que acham que é um «meio acessório chic, uma espécie de flor na lapela que dá jeito, mas não tem propósito de maior (…). A prova do bolo está em comê-lo, ou seja, no dinheiro que estão dispostos a investir nela (…) (que) foi sempre uma autêntica miséria». Longe do elogio, temos sempre a broca crítica, de quem se define assim: «Sou refilão (…) mas não sou ingrato e desprezo a ingratidão. Simplesmente o formato da minha gratidão não se compadece com curvar o espinhaço, para tomar do Eça, a contundente fórmula (…). As minhas admirações foram sempre críticas, que é para isso que serve a cultura…». 

 

Guilherme d'Oliveira Martins