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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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EDGAR MORIN E A GUERRA NA EUROPA

Edgar Morin e a Guerra na Europa.png

 

GUERRA NA UCRÂNIA – ESCALADA E QUEDA

CARTA ABERTA DE EDGAR MORIN

 

Vivemos uma paz armada com os nossos corpos instalados na paz e os nossos espíritos situados entre bombas e escombros. Atacamos um inimigo com palavras, e ele ataca-nos com ameaças, mas dormimos na nossa cama e não num abrigo. E, no entanto, participamos na verdadeira guerra, sem que tenhamos entrado, mas fazendo entrar nela armas e munições.

 

A guerra da Ucrânia internacionalizou-se progressivamente. À ajuda humanitária e depois alimentar às populações ucranianas vítimas da agressão russa, sucedeu a ajuda militar em armas, primeiro defensivas e depois contraofensivas, cuja qualidade e quantidade crescem principalmente com o contributo massivo dos Estados Unidos, acompanhados pela maior parte dos países da União Europeia.

 

A estratégia do exército russo é implacável. É filha do método de Jukov, da Segunda Guerra Mundial, com formidáveis bombardeamentos de artilharia, não só contra as tropas inimigas, mas também contra as cidades a tomar, com destruição completa pela artilharia pesada da capital do Reich, Berlim. Como acontece com qualquer exército vencedor, mas mais terrivelmente no caso do avanço soviético na Alemanha, as mortes e as violações multiplicaram-se. Soubemo-lo então, mas fomos impedidos de os denunciar, explicando-os como vingança dos enormes sofrimentos e mortes infligidos pela Alemanha nazi às populações soviéticas.

 

No tocante à Ucrânia, o povo senão irmão pelo menos parente próximo do povo russo, podemos perguntar-nos se as mortes e violações são devidas à desordem de algumas tropas, ao furor da derrota ou a uma vontade de aterrorizar.

 

Não sabemos ainda se a intenção primeira da agressão de Putin foi a de fazer cair toda a Ucrânia como um fruto maduro, decapitando-a desde os primeiros assaltos. Parece que a ambição atual sob o efeito da resistência ucraniana seja conquistar duradouramente as regiões maioritariamente russófonas do Donbass e o litoral do mar de Azov.

 

No momento em que escrevo (maio de 2022), a luta é intensa e incerta: a ofensiva russa é muito poderosa mas o exército ucraniano, no decurso da guerra desde 2014 contra os separatistas russófilos estabeleceu fortificações em profundidade e escalonadas, que travam consideravelmente os avanços russos ainda pouco decisivos.

 

O que parece provável daqui em diante, salvo um golpe de Estado no Kremlin, um golpe militar fatal ou ainda um golpe de teatro diplomático (cessar fogo, compromisso de paz), é que a guerra deve durar e intensificar-se com o contributo cada vez mais abundante de armas ocidentais e retaliações cada vez mais amplas da Rússia.

 

O carácter internacional da guerra da Ucrânia vai crescendo. É certo que o campo ocidental guiado pelos Estados Unidos declara não fazer guerra à Rússia. Mas a intervenção militar de apoio à Ucrânia é uma guerra indireta a que se junta uma guerra económica acrescentada pelo crescimento das sanções.

 

Estamos em plena escalada, sustentada por novos bombardeamentos, por novas acusações mútuas, por novas vagas de criminalização recíproca. A guerra indireta em que se tornou a guerra da Ucrânia pode a todo o momento alargar-se com bombardeamentos não acidentais em território russo ou europeu.

 

Nesse ponto Putin retomou o seu anúncio de uma resposta «rápida e avassaladora» se um certo limiar não precisado de hostilidade ou ingerência puder ameaçar a Rússia, criando condições para o uso de uma arma decisiva, desconhecida de todos os outros países, de que a Rússia seja a única possuidora.

 

Esta ameaça não é levada a sério pelos Estados Unidos e seus aliados, em virtude de um argumento racional, bem conhecido depois da guerra fria. Se a Rússia nos quer menorizar, a resposta imediata menorizá-la-ia. Este argumento racional não considera um possível carácter acidental e a possível irracionalidade. O possível carácter acidental seria o lançamento involuntário de um engenho nuclear sobre o inimigo potencial, o que deflagraria uma resposta nuclear imediata. A possível irracionalidade é a de um ditador cheio de raiva ou perturbado pelo delírio.

 

De todo o modo, é atualmente provável (sabendo-se que o improvável pode acontecer) que de derrapagem em derrapagem a guerra se alargue nos territórios europeus e se amplifique pelos misseis intercontinentais nos territórios russo e americano sem sequer poupar a Europa. Uma terceira guerra mundial, dum tipo novo, com utilização de armas nucleares táticas de alcance limitado, drones, ciberguerra com destruição de sistemas de comunicação que asseguram a vida das sociedades, seria a concretização lógica da ampliação da atual guerra internacionalizada.

 

Juntemos uma verificação importante: a guerra introduz nos países em conflito controlos, vigilâncias, eliminação de todas as opiniões diferentes da linha oficial e o desenvolvimento de propaganda de justificação permanente dos seus atos e de criminalização ontológica do inimigo. A Rússia de Putin era já um Estado autoritário às ordens de um ditador. A guerra agravou o controlo e a repressão, atingindo aqueles que não só se opunham à agressão, mas também àqueles que duvidavam dos seus fundamentos. Na Ucrânia a caça aos espiões e terroristas suscitou um controlo das populações, os excessos cometidos por algumas das suas tropas ou grupos são ocultados e, denunciando os desvios reais, a propaganda desenvolve-se contra um inimigo totalmente criminalizado. Em França, embora não beligerante e ainda com o conforto último da paz, só temos acesso às considerações mais enganadoras da Rússia de Putin e às imagens de destruição que esta causa.

 

Estamos na escalada da desumanidade e da destruição da humanidade, na escalada do simplismo e da destruição da complexidade. Mas, sobretudo, a escalada para a guerra mundializada significa o arrastamento da humanidade para o abismo. Poderemos escapar a esta lógica infernal?

 

A única possibilidade seria uma paz de compromisso que instaurasse e garantisse uma neutralidade na Ucrânia. O estatuto das regiões russófonas do Donbass poderia ser tratado por referendo. A Crimeia, região tártara em parte russificada, mereceria também um regime especial. Em suma, as condições de um compromisso, tão difícil de estabelecer, são claras. Mas a radicalização e a ampliação da guerra levam a recuar nas possibilidades positivas de modo indefinido. A situação geopolítica da Ucrânia e a sua riqueza económica em trigo, aço, carvão, metais raros atraem os grandes predadores, que são as duas superpotências. A inclinação da Ucrânia para ocidente, depois de Maidan, suscitou a agressão russa, e a agressão russa suscitou não apenas o apoio a uma nação vítima de invasão, mas a vontade de a integrar no mundo ocidental, o que correspondia de resto ao voto maioritário dos ucranianos.

 

A Ucrânia é mártir não somente da Rússia, mas do agravamento das relações conflituais entre os Estados Unidos e a Rússia e do alargamento da OTAN, ele mesmo inseparável das inquietudes suscitadas pela guerra russa na Chechénia e da sua intervenção militar na Geórgia.

 

O objetivo da Ucrânia não é apenas libertar-se da invasão russa, mas também libertar-se do antagonismo entre a Rússia e os Estados Unidos. Esta dupla libertação permitiria às nações da União Europeia libertarem-se igualmente desse conflito e procurarem ligar segurança e autonomia.

 

As sanções contra a Rússia, atingindo duramente não apenas o regime de Putin, mas também o povo russo, não se sabe até que ponto atingem igualmente os sancionadores, virando-se contra eles: não é apenas o seu abastecimento em energias e em alimentação que é ameaçado, é, sem dúvida, com a inflação aumentada e as restrições anunciadas, a sua economia e toda a sua vida social. Uma crise económica é sempre ela mesma geradora de regressões autoritárias e de instalação duradoura de sociedades submetidas.

 

A Rússia de Putin é um abominável regime autoritário. Mas não é semelhante à Alemanha de Hitler; o seu hegemonismo pan-eslavo não é, como foi o hitleriano, a vontade de colonizar a Europa e de escravizar povos racialmente inferiores. Toda a hitlerização de Putin é excessiva.

 

Estamos num mundo dominado pelos antagonismos entre superpotências e entregue aos delírios religiosos, étnicos, nacionalistas e racistas.  Por muito repugnantes que sejam as superpotências a títulos diversos o apaziguamento dos seus conflitos é uma condição sine qua non para evitar desastres generalizados. Devemos aspirar a um compromisso. A humanidade não seria salva, mas ganharia uma trégua e talvez uma esperança.

 

(Direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização do autor)
Foi publicado em “Ouest-France” em 18/03/2022

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


118. VISÕES EUROPEIAS, DO MUNDO E DA RÚSSIA


1. Perguntar “Que Europa queremos?”, coloca uma questão de fundo a que temos de responder: ou assumimos a nossa pertença ao mundo ocidental e fazemos da relação transatlântica um eixo fundamental de uma política de construção europeia, ou rejeitamos essa especificidade e elegemos o antiamericanismo e o imperialismo americano como causa estrutural de ressentimentos e traumas. O 11.09.2001 mudou a nossa perceção sobre o mundo em termos geoestratégicos e de sobrevivência. A que acresce a atual invasão da Ucrânia, tida como uma ameaça mundial, em especial para o ocidente. 


Se a Europa é uma Babel de culturas e línguas diferentes e a sua construção assenta essencialmente nas conveniências geopolíticas e estratégicas resultantes de pressões económicas, demográficas, políticas e de segurança, não é menos verdade que com o alargamento a mais países (via União Europeia) se desejou dar um salto qualitativo de um ente de natureza marcadamente económica para uma entidade política e cultural através da adoção de um tratado constitucional. E falhou. Não só porque não existe uma generalizada consciência e cidadania europeia, mas também porque falta à Europa uma massa de coesão em questões essenciais. Por um lado, o espírito europeu é embrionário e frágil, não ultrapassa as fronteiras do Estado ou da nação querendo, cada um e todos, sempre mais (da Europa e UE) do que aquilo com que se contribui. Por outro lado, há países com visões diferentes, em que os mais desenvolvidos e poderosos não querem ver as suas estratégias muito diluídas num vasto grupo de aderentes. Sempre houve tentativas de unidade europeia que falharam, em que a Europa quis ser Europa, ou mais Europa, e não foi. Desde a República Cristiana, ao império de Carlos Magno, ambições de Carlos V, Napoleão e Hitler.     


2.
Se uma histórica e permanente fragmentação da Europa se assemelha a uma “manta de retalhos”, em que os mais poderosos (à escala europeia) se têm como privilegiados, de igual modo todas as grandes potências mundiais (europeias ou não) se alimentam do culto de um suposto excecionalismo, próximo ou associado ao universalismo.


Usando as palavras de Bernardo Pires de Lima (Putinlândia, editora Tinta da China): “Todas as grandes potências vivem a mitologia de um pretenso excecionalismo. Há quem tenha adotado uma missão zelosa de universalismo liberal (EUA), quem temporize a singularidade do seu critério de ascensão (China), quem não se conforme com uma civilização contida no espaço (Irão), quem não consiga aceitar o declínio (França), quem não tenha encontrado a fórmula pós-imperial (Reino Unido), quem duvide do seu Karma (Alemanha), quem se glorifique através do espelho da geografia (Brasil), quem não descole por medos vizinhos (Índia). E depois há a Rússia”.   Rússia que com a revolução bolchevique descolou da sua escala clássica e foi modelo ideológico mundial, como farol de uma ideologia universal, o socialismo científico, que falhou, sendo agora promotora de um império eurasiano, através da União Eurasiática, em construção. Pretende ser, também, um modelo de diversidade na unidade. Desde o Báltico e dos Cárpatos ao Pacífico, devendo a Eurásia substituir, a prazo, a liderança dos EU. Tendo como indestrutível a ligação à Ucrânia, as tentativas desta, de parceria e de integração na UE, são tidas, pela Rússia, como contranatura e inadmissíveis, devendo juntar-se à União Eurasiática. 


3.
Não obstante a Rússia ser eurasiática do ponto de vista geográfico, é um país com  raízes europeias, de matriz civilizacional essencialmente europeia, pelas suas fontes históricas, nomeadamente cristãs, pela sua literatura, música clássica e as belas artes em geral que são parte da erudição europeia, ocidental e mundial, pela “joia da coroa” russa, fundada por Pedro, o Grande, ser pró-europeia (São Petersburgo), pelo seu centro do poder (Moscovo) e a maioria dos russos viver na Europa, de traços mais comuns com ocidentais do que com os vizinhos do extremo asiático. Os seus grandes momentos estão mais ligados ao Velho continente, sendo legítimo pensar que é mais uma extensão da Europa que da Ásia. Urge encontrar o meio mais adequado rumo a uma coexistência e sã convivência de direitos, tradições e costumes com respeito mútuo. Antes seja, no mínimo, um parceiro estratégico, como já foi, e não a ameaça de agora. O que não implica tergiversar com a agressão da Ucrânia, havendo que pressionar e compelir a política russa a respeitar a vontade soberana de Estados independentes que optem pela UE e o Ocidente, sem prejuízo de uma paz de compromisso.


Estamos face a uma encruzilhada, em que há que fazer uma escolha fundada numa aliança sólida com quem partilhamos os mesmos princípios e valores, os agarra mais de perto ou respeita. Liberdade, dignidade e direitos humanos são valores máximos que devemos preservar e exportar. Se os perdermos ou renegarmos a recuperação de um mundo melhor é utópica. Sem excluir uma inclusão e acomodação em diversidade e responsabilidade dentro dos padrões dominantes e vigentes, rumo a uma convergência de interesses e visão estratégica comum, fazendo a escolha de um mal menor, entre vários, dada a imperfeição da natureza humana, mas em que a magna diferença está em poder criticar, corrigir, escrutinar em liberdade num Estado de Direito que se quer sempre aberto ao debate.


12.08.2022
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  

 

115. POR UMA ESTRATÉGIA EUROPEIA


Se a Europa é cada vez menos uma mera convenção geográfica, em que a fixação das suas fronteiras tem mais a ver com um recorte político, cultural e civilizacional, e não geográfico, tem de ser vista como uma entidade com um papel estratégico na cena mundial, e não virada para o seu próprio umbigo.   


Sendo uma enciclopédia de culturas, a sua construção e projeção tem de assentar em conveniências estratégicas de médio e longo prazo, e não consoante as circunstâncias, em comunhão e conjugação de esforços com uma herança cultural, histórica e religiosa que tem de ser promotora de um diálogo entre culturas e convivência de costumes, numa perspetiva evolutiva e inclusiva que ajude a transformar o mundo.


Tem de crescer como um organismo vivo, sendo as pressões económicas, demográficas e de segurança que definem, no essencial, as suas conveniências estratégicas como ente com um papel estratégico a nível mundial.   


Esta nova mentalidade estratégica europeia alicerça-se em referências laicas, humanistas, princípios ideológicos e jurídicos gerais compatíveis com a filosofia dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana, da subordinação do Estado e da democracia representativa e suas instituições ao Direito, da economia de mercado, na qual a iniciativa privada e a regulamentação pública se complementam num amplo mercado livre (economia mista).         


Trata-se de um paradigma civilizacional que representa uma parte muito significativa do mundo ocidental, com uma história comum, laços culturais e políticos que se aproximam cada vez mais, quer a nível linguístico, emigratório, económico, turístico, entre outros. Não surpreende que dessa convergência de valores e de interesses surja uma visão estratégica comum, fazendo com que países como o Canadá, Estados Unidos da América, Austrália, Nova Zelândia, Singapura, Coreia do Sul, Japão, tenham um modo de vida ocidental ou ocidentalizado, de crescentes influências europeias. Incluindo a América Latina e países africanos que comungam línguas oficiais de génese europeia, embora com espaços democráticos menos amadurecidos e economias menos abertas ao exterior. Sem esquecer que na própria Europa há, em termos políticos, países não democráticos.


A Europa, em particular, ao assumir a sua pertença preferencial ao mundo ocidental, faz da relação transatlântica um eixo fundamental da política de construção europeia, posição esta reforçada com o 11 de setembro de 2001, com o qual a ameaça terrorista se globalizou, sendo inviável uma construção europeia sem uma política global capaz de enfrentar os novos desafios, que tem de assentar numa aliança sólida com quem partilhamos os mesmos princípios e valores. Após os atentados, também houve uma aproximação maior entre a Rússia e o Ocidente. 


Porém, com a invasão da Ucrânia pela Rússia, a Europa confronta-se e questiona-se de novo. O que torna mais claro que tem de ter uma opção estratégica, saindo reforçada a relação transatlântica da União Europeia, ocidente europeu e seus aliados. Só que, de momento, o epicentro dos acontecimentos bélicos é na Europa, entre europeus, russos e ucranianos, povos e países eslavos, o que nos interroga sobre a Europa a leste, da antiga União Soviética e antigos países do Pacto de Varsóvia.

 

22.07.2022
Joaquim Miguel de Morgado Patrício 

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  

 

114. A EUROPA E O “FIM DA GEOGRAFIA”


Confrontada com o risco de perder “o seu modo de vida”, a Europa interroga-se: Quem somos e para onde vamos? Ao sentir-se ameaçada, questiona-se: existe uma identidade europeia? Se há uma ameaça, esta define-se em alternativa ou por oposição a um outro “modo de vida”.


Há fatores comuns da identidade e civilização europeia, havendo que os consciencializar, por maioria de razão em tempos de um adverso choque de civilizações, ideias, culturas.         


Há quem recuse essa identidade comum, refugiando-se na história e na política. Quem invoque uma memória de guerras, de imperialismo, colonialismo, neocolonialismo, fascismo, nazismo, estalinismo, conflitos civis, deportações, escravatura e genocídios, confundindo aquilo que somos, nos molda e estrutura, com política e narrativa histórica. Ou quem defenda que não há património europeu, que a Europa é um acidente, um “mal branco”, um covil de supremacistas brancos e racistas, que usaram meios violentos e desumanos para subjugar culturas e civilizações. Quem a veja como um ente abstrato, acima das nações que a integram. Quem o faça por ressentimento ou traumas. 


O que não exclui, sob qualquer perspetiva, a existência de referências e valores comuns, não sendo hoje exclusivos europeus, tendo-se disseminado para outras latitudes e longitudes, constituindo a chamada civilização ocidental.


Havendo uma convergência de valores, devemos procurar uma convergência de interesses e uma visão estratégica comum.   


Democracia, humanismo, racionalismo, cristandade, iluminismo, separação de poderes, primado da lei, laicismo, tecnicismo, individualismo e direitos humanos são referências e valores comuns à Europa, ao mundo ocidental, seus descendentes e aliados, estando o Ocidente mais amplamente alargado no seu espaço “físico” e mental.


Mesmo na ausência de uma continuidade territorial europeia subsiste sempre a mental e espiritual, como o provam comunidades linguísticas transcontinentais organizadas em blocos linguísticos como a anglofonia, lusofonia, francofonia e hispanofonia. Tendo como referência, no mundo ocidental e global, a presente liderança dos Estados Unidos, é num descendente da antiga Europa imperial que assenta o atual “império” linguístico, dada a aposta na adoção do inglês como língua franca comum. O que, por similaridade, sucede com a língua portuguesa, em termos de projeção, transitando de uma perspetiva lusíada para uma lusófona, a que acresce uma lusófila e como língua de exportação. Em que o Brasil lidera, de momento, com as adaptações inerentes ao facto de também ser um continuador da velha Europa.   


Se, por exemplo, são os descendentes e sucessores da antiga Europa imperial os novos impérios linguísticos do futuro, por analogia com o que tem sucedido com o inglês, espanhol, português e francês, tem de haver uma nova mentalidade europeia, um novo paradigma civilizacional, em irmandade com os contributos dos demais povos e, em primeiro lugar, aqueles cujo modo de vida e convivência de costumes agarra mais de perto aquilo que a Europa foi, é e quer ser.   


A Europa não pode ser um clube de aristocratas com poses solenes eurocêntricas, tendo que se agregar e ampliar geograficamente, crescer adaptando-se às novas conveniências e realidades estratégicas, sendo cada vez menos uma mera convenção geográfica, em que a fixação das suas fronteiras tem mais a ver com a fixação de um recorte político, cultural e civilizacional, que geográfico.     

 

15.07.2022
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  

 

113. QUE EUROPA QUEREMOS?


A grande base civilizacional da Europa foi a tradição greco-latina, com o culto da razão e do espírito individualista, o gosto pela técnica e pelo Direito. A que se junta a tradição judaico-cristã, marcando a sua valorização espiritual. O experimentalismo e o otimismo ocidental, na época das navegações. A tradição revolucionária e liberal com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da divisão tripartida dos poderes, da liberdade de formação dos partidos políticos e eleições. A revolução industrial, cuja base de conhecimentos é europeia. 


São fatores comuns da identidade europeia, entre outros, o primado da lei e do indivíduo, o cristianismo, a separação da Igreja e do Estado, os direitos humanos e a democracia representativa. Sem renegar as trevas que a ensombram, como o Holocausto.   


Se identidade é a arquitetura interna daquilo que determina grandemente aquilo que somos, não só nascemos portugueses, mas também europeus, em interação com o que agarramos mais de perto.


Mas o querermos saber quem somos, invocando os pilares e fundamentos de uma matriz cultural europeia comum não chega, pois apegarmo-nos ao seguro de uma herança é sermos adeptos primordiais de uma perspetiva conservadora não evolutiva, não amiga de modificar o mundo.


As fronteiras da Europa - sejam geográficas, culturais, políticas ou religiosas - têm de ser alargadas, pelo que, nesta perspetiva, pode ser incompreensível que a herança do mundo islâmico - para com a qual os europeus têm em dívida uma parte da sua evolução - seja secundarizada.


Supor-se que a herança histórica, cultural e religiosa europeia é uma realidade mais ou menos homogénea é incorrer num equívoco, dado que a Europa é um exemplo de diversidade linguística, cultural, religiosa e social, uma Babel de línguas e culturas diferentes, sendo exigível um diálogo para a coexistência da cultura cristã, judaica e muçulmana, a par de um humanismo secular, em desfavor de monólogos belicistas e uma tendência apelativa para o falhanço do multiculturalismo.   


No seu pequeno território continental a Europa não sofre de monotonia, sendo tanta a diversidade que há nela um número crescente de seleções de futebol que não correspondem a países, desatualizando e ultrapassando o princípio da territorialidade inerente à soberania dos Estados, em nome de povos e nações que fraturam a unicidade e particularidades da globalização. Veja-se o Reino Unido, com cinco equipas: Inglaterra, País de Gales, Escócia, Irlanda do Norte e, recentemente, Gibraltar. Ou as Ilhas Faroé, dependentes da Dinamarca. Estando pendente a candidatura da seleção catalã de futebol (não reconhecida por oposição de Espanha), por que não, de futuro, o País Basco, a Flandres, a Valónia e a Lombardia, por confronto com microterritórios dependentes, mas membros da UEFA, como Andorra e Listenstaine?   


É a unidade com diversidade, a inclusão sem discriminação, uma solução de síntese, promovendo a conciliação e o respeito mútuo. 


Mas se a Europa cultural e política não tem de coincidir (nem pode) com a Europa geográfica, é lícito interrogarmo-nos se a sua construção assenta, essencialmente e doravante, em conveniências ou projetos circunstanciais ou em estratégicas resultantes de pressões em termos de médio e longo prazo.   

 

08.07.2022
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


112. ONDE FICAM AS FRONTEIRAS DA EUROPA?


A Europa é, em primeiro lugar, uma convenção geográfica.

Uma primeira visão abstrata remete-nos para as suas fronteiras geográficas.

Usando como referência a territorialidade continental dos países integralmente europeus que a compõem, temos a Albânia, Alemanha, Áustria, Bélgica, Bielorrússia, Bósnia-Herzegovina, Bulgária, Chéquia, Chipre, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Irlanda, Islândia, Itália, Kosovo, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Macedónia do Norte, Malta, Moldova, Montenegro, Noruega, Países Baixos, Polónia, Portugal, Reino Unido, Roménia, Sérvia, Suécia, Suíça e Ucrânia. A que se juntam a República de São Marinho, o principado de Andorra, do Mónaco e de Listenstaine, e a cidade-estado do Vaticano.

Tem como países transcontinentais, parte integrante da Europa e da Ásia, a Rússia, Turquia, Arménia, Azerbaijão, Cazaquistão e Geórgia.

Que as convenções geográficas (e políticas) são flexíveis, prova-o o facto de, pelas mais atualizadas, a localização da Madeira e das Canárias ser africana, a de Chipre asiática, estando Malta na mesma latitude do Magrebe.   

Também da lista de membros da União das Associações Europeias de Futebol (UEFA), faz parte Israel, situado na Ásia.

E entre os países concorrentes ao festival eurovisão da canção consta a bem longínqua (em termos geográficos) Austrália e, de novo, Israel.

Não se veem razões para negar qualquer vocação europeia a países transcontinentais como a Arménia, Azerbaijão, Cazaquistão, Geórgia, Rússia ou Turquia. A países com uma parte considerável de história comum como Israel, Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos, Canadá, toda a América Latina, africanos mais próximos como Cabo Verde, Marrocos e Tunísia (entre outros), de que a apetência crescente de adesão e de cooperação com a União Europeia é sintomática.

Indicia-se, por exemplo, que a Europa política, cultural ou religiosa não tem de coincidir com a geográfica, sendo prioritário saber até onde vai esta, onde começa e acaba, alargando-a para outras fronteiras não meramente geográficas, tornando politicamente insustentável, a longo prazo, a atual linha divisória entre a Europa e a Ásia, a África e demais continentes.       

 

01.07.2022
Joaquim Miguel de Morgado Patrício 

TRANSFUGA DA NATUREZA...


Não se volta atrás, não há regresso possível. O que era foi, sem repetição alcançável. Disse Ortega y Gasset que "el hombre es un transfuga de la naturaleza". E por isso, por em cada um de nós se iniciar e progredir sempre a consciência da liberdade de ser, somos, em música, uma fuga. Desenvolvemos um tema. Ou, em poética, glosamos um mote. À procura dessa qualquer harmonia, do que, à frente e para além, nos reconstitua na felicidade. Esta terá sido perdida - assim nos contam os relatos originais em textos religiosos e filosóficos - mas talvez volte a ser possível, não como regresso, só como porvir. Os homens são como as árvores: precisam de raízes para crescer, são uma semente cuja sombra possível ninguém conhece. Mas no advento de qualquer futuro - ainda que incógnito - de pessoas, instituições, nações, culturas ou civilizações, há sempre uma parte decorrente do exercício da nossa responsabilidade. E este é inalienável. Este ano, o Prémio Nobel da Paz foi atribuído à União Europeia. Qualquer "Nobel" vale o que qualquer pessoa lhe queira atribuir, é contingente como todas as coisas do mundo. Mas, em tempo de crise, este gesto dá que pensar: afinal, o que se destaca e premeia é a realização de alianças e instituições supranacionais que conduziram a Europa das guerras a décadas de paz; mas é também uma chamada de atenção para um projeto que, parecendo emperrado, terá de encontrar inspiração e caminhos para o futuro. Quando, sem grande surpresa, recebi a notícia de já se discutiria quem, de entre Barroso, Van Rompuy e Schultz, deveria ir a Oslo receber o prémio, encantou-me a sugestão da Comissária Cacilia Malmstrom: "Porque não enviar 27 crianças?" E ocorreu-me uma ideia de Jean- Louis Bourlanges que já aqui citei: "Não foi a Europa que fez a paz, mas a paz que fez a Europa". Na verdade, na sua memória histórica que lhe mostrou o quanto violou o princípio da paz, todavia bem presente na inspiração cristã das suas raízes espirituais, encontrou a Europa a razão da paz que a uniu. Mas é hoje necessário compreender como a paz só se mantem pela justiça e pela solidariedade. Na verdade, a frase de Bourlanges não se refere à paz no sentido inspirador com que dela aqui falamos, mas quer, sim, dizer que a CEE percursora da União só foi possível graças à pax americana, garantida pelo plano Marshall e pela proteção defensiva que os EUA asseguraram. Pessoalmente, penso que essa "entrega" da defesa europeia explica, em grande parte, quer a incapacidade de se constituir uma intervenção europeia independente e comum em palcos internacionais como os Balcãs ou a Líbia, quer o acento posto, pelos Estados Membros, na preferência por ações em que cada um considerava prosseguir objetivos de interesse ou prestígio nacional. Hoje, já não temos Plano Marshall e temos o euro. A continuidade da construção europeia, de modo a assegurar a harmonia interna e a sua irradiação, portadora de valores de justiça, esperança e paz, num mundo global, só será possível se os nossos povos e os nossos políticos tomarem consciência firme da riqueza espiritual da Europa, onde mergulham as nossas raízes comuns e ganham sentido propósitos de entreajuda e solidariedade social. É certamente necessário pôr cobro ao facilitismo de um despesismo imprudente ou irresponsável, seja dos indivíduos ou dos Estados. E aqui será indispensável corrigir os comportamentos e propostas, sobretudo os relativos a símbolos de riqueza ou de poder (v.g. a frota automóvel da classe política) e ao gosto do luxo e do supérfluo, que os noticiários e a publicidade todos os dias nos apresentam. Só porque o exemplo também manda nas mentalidades. Como é necessário que os Estados hoje menos afetados pela crise compreendam que esta, agravando-se, começa a bater-lhes à porta. E que não é com ressentimentos históricos (de que a Alemanha, p.ex., foi vítima entre as duas grandes guerras do séc. XX) que se cria o clima propício à correção de erros e à procura de um futuro melhor. Finalmente, teremos de tratar a res publica com sentido no bem comum, e jamais no modo doentio da prossecução de interesses particulares, classistas, sectoriais ou partidários, nem com o desejo de protagonismo que torna a ação dos nossos políticos num lamentável exercício de "marketing" político. Antes, e mais do que económica e financeira, a nossa crise é de cultura ética.

 

Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 19.10.12 neste blogue.

REGRAS TÉCNICAS. E AS PESSOAS?

  


Do que aqui se tem dito, facilmente se poderá entender que a perplexidade de quem pretende encarar e ajudar a resolver a "crise" decorre, por um lado, da crescente verificação de que as receitas "técnicas" que, aparentemente, poderiam trazer uma saída viável não se coadunam, nem com a capacidade das populações para aceitarem os remédios propostos, nem com a apregoada austeridade necessária: é como estar preso por ter cão e preso por não ter. Ou seja: vivemos numa cultura que refere a vida das pessoas ao desempenho do "homo economicus": todos acreditaram em que o crescimento do PIB era desenvolvimento social e humano, discordando uns dos outros apenas quanto ao modo de divisão do bolo. A planificação de uma economia centralizada deu os resultados que todos sabemos; a regulação entregue ao mercado vai-nos conduzindo ao impasse que antevemos. Promoveu-se o consumo, o crédito ao dito e o apagão de outros critérios de comportamento, na crença de que se induziria uma interminável espiral de produção e rendimento, que o bondoso e atento mercado naturalmente regularia. Hoje, destruídas as ilusões fáceis, opomos em discussão outras ilusões. Mas a evidência é que, no quadro do aberrante sistema que criámos, ou não se consome como nos ensinaram, ou não se pagam as dívidas como se pretende.

Inverteu-se a espiral. Por outro lado, a perplexidade decorre da nossa incapacidade para mudar de cultura. Ficamos agarrados ao materialismo serôdio das opções de vida que nos propuseram e abraçámos e às respetivas regras de "sucesso": o trabalhador por conta de outrem só se interroga sobre se estará a alimentar o infame capitalismo quando o seu salário não é aumentado, mas não quando foi consumindo coisas várias, sobre as quais nunca se perguntou se seriam supérfluas, ou mesmo nocivas e deseconómicas; o gestor financeiro reclama ao povo consumidor que pague as dívidas que ele incitou, sem jamais se inquietar com o valor humano do que propunha, quando apenas pensava no "valor" acrescentado para os acionistas. Até no ensino, que deveria ser educação, nos esquecemos da formação do espírito crítico, da consideração do outro, da solidariedade, da procura compreensiva das nossas raízes, do gosto do belo, do lúdico até, pela música e pelas artes e a literatura. Hoje, muito daquilo a que chamamos cultura é também objeto de consumo, e disso tudo se fala numa perspetiva economicista: discutem-se, de uma e de outra banda, subsídios e preços, já não se fala em valores. Vem a talho de foice citar a filósofa americana Martha Nussbaum, no seu "Not for Profit - why democracy needs the humanities": "No que todavia insisto (...) é nas faculdades de pensamento e imaginação que nos tornam humanos e fazem, das nossas relações, relações humanamente ricas, não meras relações de utilização e manipulação. Quando nos encontramos em sociedade, se não tivermos aprendido a olhar para nós e para os outros dessa maneira, imaginando uns nos outros faculdade íntimas de pensamento e emoção, a democracia está condenada a falhar, porque a democracia se constrói sobre o respeito e o cuidado do outro, e estes por sua vez se constroem sobre a capacidade de ver as outras pessoas como seres humanos, e não simplesmente como objetos". Daí concluir a necessidade imperiosa de dar um lugar largo - como ainda hoje é, aliás, facultado no ensino norte-americano - às humanidades nos curricula escolares tão programados para efeitos de produzir agentes do crescimento do PIB... Creio que a "crise", portuguesa ou outra, não se resolve com receitas financeiras nacionalmente aplicadas, mas apenas num quadro europeu, que deve ser um projeto novamente inspirado.

A Europa terá de ir buscar às suas raízes humanísticas a inspiração necessária a uma nova democracia. Terá de se reaprender com a sua história. A limitação dos objetivos da construção europeia à gestão do crescimento económico só nos trará frustrações, quer para as aspirações dos que pensaram aceder ao eldorado, quer - como já começamos a verificar - para os que pensavam que o seu próprio "sucesso" económico lhes garantiria o privilégio de exigir dos outros o cumprimento de deveres de subalternidade. O que é assim verdade para os estados e nações, deverá também ser entendido pelos agentes económicos enquanto classes sociais. Com a exposição crescente, até ao pormenor, da vida e da riqueza privadas - ainda por cima designadas pela publicidade, que faz "funcionar" o sistema, como "ideais" de vida para todos - o mercado das ilusões vai-se fechando em ghettos e ressentimentos. Não deixa, aliás, de ser curioso ver como o fim do coletivismo soviético é a plutocracia russa. E será talvez assustador demorarmo-nos na consideração dessa bomba de rebentamento universal que poderá ser o "capitalismo de Estado" (?) chinês. Talvez valesse a pena voltarmos ao princípio de todos os valores: a pessoa humana como medida de todas as coisas.

 

Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 05.10.12 neste blogue.

A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR...

  


Quando por razões ideológicas, se negou a referência ao Cristianismo num projeto de Constituição Europeia, recusaram-se as raízes e cometeu-se um quase-crime de lesa história. Foi algo de mesquinho, na medida em que não se negou apenas a afirmação de uma realidade, mas teimou-se em não a compreender que o Cristianismo é culturalmente multirradical. Também se disse que o nosso reconhecimento nos abre ao conhecimento dos outros. Aliás, um dos obstáculos sérios, por exemplo, ao diálogo islâmico-cristão está no facto de ninguém perceber com clareza quais são os nossos valores, aqueles que deveriam estar na mão que a Cristandade deveria estender ao Islão. Poderá parecer paradoxo, mas é a perceção desapaixonada e serena da nossa identidade, a consciência perspetiva, no tempo e no modo, dos nossos valores, que nos aproxima dos outros e nos permitirá racionalmente interrogar-nos por que não poderá, por exemplo, a Turquia, maioritariamente muçulmana, aceder à União Europeia? Ou, positivamente: como poderá fazê-lo? Não tem, certamente, e sabe-o, que negar a matriz cristã da Europa, com a qual, aliás, lidou durante séculos. Tampouco tem de se converter ao Cristianismo, pois a própria tradição cristã da dignidade da pessoa humana fundou, no Iluminismo e depois dele, o respeito ético e jurídico da liberdade religiosa... Tal como sabemos, uns e outros, cristãos e muçulmanos, que nem sempre os nossos poderes instituídos, políticos e religiosos, respeitaram nos outros a dignidade divina da pessoa humana e a liberdade da sua escolha, também houve, na Cristandade e no Império Otomano, admiráveis exceções de tolerância e acolhimento. Também nestes valores comuns que, em culturas diferentes, traduzem o princípio fundador que é o da misericórdia de Deus, deveremos encontrar um caminho e o seu sentido, de harmonia, não como receita, mas como procura. Há que lembrar ainda, no diálogo com o islamismo, um princípio que se foi afirmando ao longo da história do Cristianismo europeu e, finalmente, conduziu ao Estado laico das democracias atuais: o da distinção entre poder espiritual e temporal, entre a submissão a Deus e o tributo a César. Desde a tentação constantiniana às lutas entre os sacro-impérios e Roma, entre os reis de Portugal e o Papado, passando por guelfos e gibelinos, cismas de Avignon e tratados de Tordesilhas, até à unificação da Itália e às suas sequelas, aprendemos muito. Ao fim e ao cabo, o que Jesus Cristo disse: a César o que é de César, a Deus o que é de Deus. Neste princípio assenta a liberdade religiosa, que o Estado constitucional e democrático deve garantir até como contrapeso à própria tentação totalitária do poder político. Universitário e escritor muçulmano, Abdelwahab Meddeb, no seu livro com um título desafiador, "Pari de Civilisation", para fundamentar a sua visão cosmopolita da religião cita Kant e a sua proposta "Para a Paz Perpétua": "Diversidade das religiões? - curiosa expressão! Tão singular, como se falássemos de morais diversas. Pode bem haver várias maneiras de crer, por força da história dos meios utilizados para a promover, os quais pertencem ao campo da erudição e dos livros religiosos (o Zendavesta, os Vedas, o Corão, p.ex.). Mas só pode haver uma religião valendo para todos os homens e todos os tempos. Assim, os modos de crer só podem conter o veículo da religião, o que é contingente e pode variar segundo a diversidade dos tempos e dos lugares". Muito interessante é ainda verificar que Abelwahab Meddeb refere que a expressão "paz perpétua" surge, pela primeira vez em Nicolau de Cusa (herdeiro espiritual do místico dominicano medievo Mestre Eckhart), na sua obra "De Pace Fidei", escrito durante a guerra com os turcos, que conduziu à tomada de Constantinopla em 1453. Em tempos tão conturbados, Nicolau de Cusa, respeitado homem de Igreja e amigo de Papas, procurou como que "estabelecer uma paz perpétua em religião": "Apesar da diversidade dos ritos, a paz da fé permanece todavia inviolada". Proximamente regressaremos ao tema das fronteiras da Europa e do desafio da definição geográfica, política e cultural da União Europeia, bem como à análise dos critérios que, para o efeito, têm sido propostos. Por agora, interroguemo-nos apenas sobre se serão suficientes os princípios definidos no Conselho de Copenhague em 1993: o Estado de direito, a estabilidade das instituições, a democracia pluralista, o respeito das minorias, a economia de mercado e a incorporação nas diferentes esferas jurídicas nacionais, do "acquis communautaire"... Pois tudo se constitui com objetivos inspirados pelo desejo de realização de valores fundadores. A falta de visão a prazo e a ausência de profundidade de reflexão são, no momento em que escrevo estas linhas, fustigadas por Fernando Henrique Cardoso, contestando o consumismo como guia. Por aí me ocorrem estas palavras de Zigmunt Bauman: "O modelo de PNB que domina (monopoliza) a maneira como os habitantes da líquida, consumista e individualizada sociedade moderna pensam o bem-estar ou imaginam o ´bem social´ (...) é mais notável, não pelo que classifica de modo equivocado ou claramente erróneo, mas por aquilo que nem chega a classificar, que deixa totalmente fora do cálculo, negando qualquer relevância típica à questão da saúde nacional e do conforto individual e coletivo". No presente debate sobre a "crise financeira" na Europa, é evidente a preocupação de cada um com o que pode consumir, dos políticos com as suas obsessões, e das nações europeias com o seu egoísmo nacional. Falta-nos espírito. O que nos fará sair da " crise" não será o debate de modelos econométricos e contabilísticos impostos, sem outra razão que a das previsões matemáticas (que vão falhando), e muito menos a exigência infantil do consumismo misturado com "direitos adquiridos". Temos, no fundo, de repensar o sentido da vida e o valor (esquecido) da pessoa humana.

 

Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 28.09.12 neste blogue.

PENSAR UMA EUROPA PACÍFICA

  


Por volta de 1715, um padre francês, o abade de Saint-Pierre, publicava uma obra intitulada "Projeto para tornar a paz perpétua na Europa", em que defendia a criação de uma instância europeia política, acima das nações, que asseguraria o governo da paz entre elas e uma sociedade europeia harmonizada. Oitenta anos mais tarde, Immanuel Kant retoma o propósito e o título de "Projeto para a paz perpétua", para adiantar a ideia de que os governos dos povos devem assentar num sistema representativo e com separação de poderes, e as nações formarem uma aliança federal. Surge esta proposta em contraponto à vocação hegemónica da revolução francesa, que Napoleão viria a incarnar. Curiosamente, é depois da derrota do imperador francês, antes e depois de Waterloo que, no Congresso de Viena (1814-15), as quatro potências vencedoras (Rússia, Prússia, Áustria e Reino Unido) discutirão o projeto... Até ao Congresso de Berlim (1878), e deste até à Conferência de Londres (de dezembro de 1912 a agosto de 1913) o Concerto Europeu discutirá e procurará resolver pacificamente questões que vão da vigilância sobre a França à sua integração no grupo, da revolta liberal em Nápoles à independência da Grécia e constituição da Bélgica, do comércio de escravos à repartição colonial da África (situações estas em que Portugal estará diretamente envolvido)... É também a era da constituição da super-Alemanha de Bismarck, do Risorgimento italiano e da redução dos Estados Pontifícios ao Vaticano, do definhamento do império otomano, e a anexação da Bósnia-Herzegóvina pela Áustria-Hungria, da oposição entre esta e Napoleão III, da derrota deste (em 1870) no conflito franco-alemão precedendo a IIIª República e prenunciando a 1ª Grande Guerra. Esta, cujos motivos Barbara Tuchman tão bem explanou em "The Tower of Proud", marca o fim do séc. XIX e de "uma certa Europa". No seu "Le Concert Européen - aux origines de l’Europe (1814-1914)", Jacques Alain de Sédouy encontra nesse tempo uma consciência de comunidade europeia como cultura e civilização comuns e garante da paz. É curioso ver como foi Alexandre I da Rússia um dos seus mentores, e aquele que mais acreditava na cristandade como fundamento da Europa. Interessante também, ver-se como já então se considerava a hipótese da participação turca. A revolução bolchevique, cem anos depois de Alexandre I, implantando a União Soviética e dividindo, na sequência da 2ª Grande Guerra, a Europa em dois blocos, exclui (até quando?) a Rússia do projeto comunitário, enquanto a preocupação em opor, ao fundamentalismo islâmico, um estado muçulmano democrático abre a perspetiva da inclusão europeia da Turquia hodierna. Citando Sédouy, vamos então ao séc. XIX: "É Castlereagh, ministro britânico dos negócios estrangeiros, que correntemente fala de ‘commonwealth of Europe’. É Alexandre I que evoca ‘a grande aliança’ dos Estados europeus. É Metternich que, referindo-se ‘aliança’, fala do «grande sistema pacífico da Europa» e escreve a Wellington em 1824: «Desde há muito que a Europa tem, para mim, o valor de Pátria». São os negociadores do tratado que funda a independência da Bélgica que declaram em fevereiro de 1831: «Cada nação tem os seus direitos próprios; mas a Europa também tem o seu, foi a ordem social que lho deu. É Guizot que, diante da Câmara, a 18 de novembro de 1840, distinguindo claramente a Europa das potências que a constituem, declara: ‘A grande política e o interesse superior da Europa e de todas as potências na Europa é a manutenção da paz em toda a parte, sempre’. É o Congresso de Paris de 1856 que declara a Turquia «admitida a participar nas vantagens do direito público e do concerto europeus». São os participantes no Congresso de Berlim m 1878 que se dizem, no preâmbulo do tratado que assinam, animados de ´um pensamento de ordem europeia´. São os embaixadores das potências em Constantinopla que, nas diligências feitas por ocasião das crises que sacodem o Império Otomano, entre 1880 e 1912/13, falam sempre «em nome da Europa». Outro paralelismo curioso entre aspetos do Concerto Europeu e a presente União Europeia é o da "hierarquia" de Estados. Leia-se esta carta de Frederico de Gentz, braço direito de Metternich, ao príncipe Karadja, em 1818: «O sistema político que se estabeleceu na Europa desde 1814 e 1815 é um fenómeno inédito na história do mundo. Ao princípio do equilíbrio ou, melhor dizendo, dos contrapesos formados pelas alianças particulares, princípio que governou e, por demasiadas vezes, também perturbou e ensanguentou a Europa durante três séculos, sucedeu um princípio de união geral, reunindo a totalidade dos Estados por um laço federativo, sob a direção das principais potências... Os Estados de segunda, terceira e quarta ordem submetem-se tacitamente, e sem que nada jamais tenha sido estipulado a esse respeito, às decisões tomadas em comum pelas potências preponderantes; e a Europa parece enfim não formar senão uma grande família política, reunida sob um aerópago de sua própria criação, cujos membros se garantem, a si mesmos e a cada uma das partes interessadas, o gozo tranquilo dos seus direitos respetivos. Esta ordem de coisas tem os seus inconvenientes. Mas é certo que, se a pudermos tornar duradoura, seria a melhor combinação possível para assegurar a prosperidade dos povos e a manutenção da paz que é uma das suas primeiras condições". Proximamente refletiremos sobre esta questão da organização política da Europa e, antes ainda, na definição do próprio conceito de Europa: como será possível abrir um projeto europeu que traduz uma herança cultural própria da cristandade europeia, mas também se inspira no ideal da paz, a outras nações dispostas a partilhar politicamente aquilo a que Bourlanges chamou «a afirmação organizada de uma interdependência de valores escolhidos»?

 

Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 21.09.12 neste blogue.