Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ROBERT BADINTER

  


Conheci Robert Badinter na Convenção para o Futuro da Europa (2002-2003), num momento de grande esperança sobre a necessidade de se avançar para a construção de uma União Europeia de Direito, na qual uma Lei Fundamental pudesse permitir a criação de uma democracia supranacional e de uma cidadania de liberdade e igualdade, baseada nos direitos humanos. Conversámos sobre essa exigência, compreendendo um longo percurso que terá de ser prosseguido com determinação. Sentávamo-nos lado a lado no grande hemiciclo de Bruxelas e na sua voz pausada, serena e determinada encontrei sempre a firme defesa dos direitos fundamentais como o centro de todas as reflexões e de todos os compromissos da vida democrática. Legislador experimentadíssimo, sabia bem que qualquer norma para ser eficaz teria de ponderar o empenhamento dos destinatários, já que direitos e deveres, liberdade e igualdade, igualdade e diferença constituem o cerne da democracia. Mais do que um método de funcionamento das sociedades ou do que um conjunto de procedimentos funcionais, a democracia é um sistema de valores, em que a ética, a moral e o direito se completam. Estudioso e biógrafo (com Elisabeth Badinter) de Condorcet, herói incompreendido da Revolução, considerava que o método de descobrir a verdade estaria na aprendizagem e no conhecimento, como artes que permitem não cair na obscuridade. Uma sociedade de iguais, mulheres e homens, deveria, assim, progredir num gradualismo comprometido, capaz de garantir o aperfeiçoamento permanente no sentido do reconhecimento pleno da dignidade humana.


Está na memória de todos o memorável discurso na Assembleia Nacional francesa de 17 de setembro de 1981, como Ministro da Justiça. Afinal, ao fim de vários anos de combate incessante, havia que reafirmar. “A pena de morte significa que o Estado assume o direito de dispor da vida do cidadão; implica secretamente o poder de vida ou de morte do Estado sobre o cidadão, E eu recuso isso”.  E foi possível concretizar tal desígnio, com determinação e coragem, apesar de resistências e receios. E não esqueço a profunda admiração que tinha em relação ao pioneirismo de Portugal nesse domínio. Tantas vezes o ouvi lembrar a carta de Victor Hugo ao diretor do Diário de Notícias, Eduardo Coelho, publicada no dia 10 de julho de 1867: "Está, pois, a pena de morte abolida nesse nobre Portugal, pequeno povo que tem uma tão grande história!”


Como disse o seu amigo Jacques Attali, “Robert Badinter era um gigante, um imenso jurista, um homem de Estado, um observador irónico, que gostava do mundo, companheiro magnifico nas refeições e conversas, desde a literatura a uma curiosidade insaciável. Era tudo menos um político obcecado pelo poder”. Advogado, penalista, pensador, professor de Direito, Ministro da Justiça (1981-1986), Presidente do Conselho Constitucional (1986-1995), Senador por Hauts-de-Seine (1995-2011), estava casado com a escritora e militante dos direitos humanos Elisabeth Badinter, que fez dos combates pela liberdade e igualdade uma constante da sua vida, sem cedência a argumentos de oportunidade. Não se pense, porém, que o consenso a que assistimos nos últimos dias no elogio ao cidadão exemplar foi uma constante durante a sua vida. Não, foi alvo de muitos ataques e incompreensões, uma vez que o seu combate era de princípios e valores éticos e tantas vezes os seus críticos confundiram as situações concretas e a defesa intransigente da pessoa humana como essencial nas suas causas. Lembro com saudade os encontros que tivemos, a sua paixão e o seu empenhamento. Não esqueço as suas dúvidas e preocupações, pela liberdade e pela verdade, como afirmou num dos seus últimos relatórios no Senado, designadamente respeitantes a um perigoso recuo dos valores democráticos, com perda do sentido universalista e avanço das intolerâncias e do medo dos outros e das diferenças.


GOM

A VIDA DOS LIVROS

  

De 19 a 25 de fevereiro de 2024


"Du personnalisme au fédéralisme européen - en Hommage à Denis de Rougemont", Centre Européen de la Culture, Genève, 1989, é um livro oportuno no momento em que duas guerras às portas da Europa exigem o reforço do projeto europeu.


MARE NOSTRUM, EUROPA NOSTRA
Nos quarenta anos da morte de Denis de Rougemont, lembramos que a Europa que herdámos nasceu em volta do Mediterrâneo e depois tornou-se continental ao longo dos séculos. As guerras civis europeias do século XX, com projeção mundial e resultados trágicos, levaram a que, sobretudo depois de 1945, tenha havido um forte movimento pan-europeu, que o Congresso de Haia de 1948 procurou projetar e desenvolver como um sobressalto cívico e um fator preventivo de futuras guerras e conflitos desregulados. Denis de Rougemont, no Centro Europeu de Cultura, de Genebra, foi um dos principais protagonistas dessa ação intelectual, que passou pela descoberta de autores e correntes de pensamento europeístas. Milan Kundera disse um dia que o europeu poderia ser definido como aquele que tem nostalgia da Europa. Tendo afirmado que na Idade Média a unidade europeia era baseada na religião e na Idade Moderna na cultura, perguntava qual seria o fator atual de unidade? Não há homogeneidade nem uma nação europeia, mas um caleidoscópio heterogéneo, pleno de complementaridades. No entanto, vista de fora, a Europa tem uma personalidade, muitas vezes olhada com desconfiança. Na célebre conferência de Genebra de setembro de 1946, Karl Jaspers procurou dar resposta a este intrincado problema. O pensador falou então de Liberdade, de História e de Ciência como marcas da personalidade europeia. “Se queremos citar nomes, a Europa é a Bíblia e a Antiguidade. (…) A Europa está nas suas catedrais, nos seus palácios, nas suas ruínas, é Jerusalém, Atenas, Roma, Paris, Oxford, Genebra, Weimar. A Europa é a democracia de Atenas, da Roma republicana, dos suíços e dos holandeses, dos anglo-saxões…”. Sentimos, no íntimo de nós a Europa como lugar de múltiplas diferenças, que trazem consigo a audácia da liberdade. A Liberdade (para Jaspers) significava inquietude e agitação, vitória da vontade sobre o arbitrário. A consciência trágica liga-se, assim, à esperança cristã, e o diálogo entre culturas torna-se busca de uma consciência de si. A História é a lógica sequência da Liberdade – situando o que é real e o que é possível, a partir da pessoa humana, num caminho inesgotável. A Ciência, por fim, parte da ideia de que o saber nos torna mais livres, pelo sentido crítico, pela experiência e pelo uso equilibrado da razão.


NOME PREMONITÓRIO
O adjetivo “Eurôpos” significa o que é largo e espaçoso. Como pessoa, “Eurôpé” quer significar aquela que tem grandes olhos – que permitem ver longe. Há afinidades evidentes com Eurídice. O rapto da formosa Europa por Zeus, transformado em touro, é a alusão mítica referenciada quando falamos da designação do velho continente. Uma princesa da Ásia trazida para a Grécia liga a civilização fenícia à cretense. Em 1948, o Congresso Europeu de Haia deu o sinal: haveria que usar um novo método na reconstrução da Europa e do mundo, depois da catástrofe da guerra. E a declaração de Paris de Schuman (9.5.1950) consagraria o objetivo defendido pelos intelectuais na capital holandesa. É neste contexto que se insere a obra de Denis de Rougemont, empenhado em lançar as bases desse novo método, baseado na descentralização e na subsidiariedade. As pessoas e os cidadãos devem, assim, ser a base de uma nova construção, não centrada na perspetiva nacional e nos egoísmos agressivos ou protecionistas, mas na procura de uma via pacífica e funcionalista, baseada na economia e na sociedade. Não se trataria de criar um Estado Europeu nem uma nação europeia, mas de construir uma solidariedade de facto e de direito, centrada no pluralismo e nas diferenças, numa palavra, unidade na diversidade. Daí a importância da procura das raízes comuns, não em nome da harmonização, mas sim de uma realidade complexa. Fernand Braudel, o historiador da economia, falou do carácter pioneiro e necessário do projeto europeu. Mas perguntava: “A unidade política da Europa poderá fazer-se hoje não pela violência, mas pela vontade comum dos parceiros? O programa desenha-se, levanta entusiasmos evidentes, mas também sérias dificuldades”. E o historiador lança os alertas necessários, uma vez que a construção europeia depressa se tornou menos um projeto político de cidadania, para ser uma mera adição de preceitos técnicos e de burocracias. “É inquietante verificar que a Europa, ideal cultural a promover, venha em último lugar na lista dos programas em causa. Não há uma preocupação nem com uma mística, nem com uma ideologia, nem com as águas falsamente acalmadas da Revolução ou do socialismo, nem com as águas-vivas da fé religiosa. Ora a Europa não existirá se não se apoiar nas velhas forças que a fizeram, que a trabalham ainda profundamente, numa palavra se negligenciarmos os humanismos vivos. (…) Europa dos povos, um belo programa, mas que está por formular”. Mais do que invocarmos os grandes idealistas, somos chamados a dar um salto desde os ideais até à realidade. E quando recordamos Denis de Rougemont ou Altiero Spinelli, não podemos esquecer os funcionalistas (como Jean Monnet) e os políticos europeus (como De Gasperi, Schuman, Delors e Mário Soares). A Europa do futuro constrói-se com mais política, com melhores instituições, com Estados de Direito e Uniões de Direito. Longe da tentação de construir instituições artificiais (que se tornam perigosamente reversíveis). Do que se trata é de superar os egoísmos nacionais pela salvaguarda sã das diferenças culturais (os Estados-nações não podem ser esquecidos, mas têm de subsistir, compreendendo que se tornaram, a um tempo, grandes e pequenos de mais). No fundo, é a dignidade da pessoa que está em causa, como sempre insistiu Alexandre Marc, um militante europeu centrado na liberdade e na dignidade humana. Do que se trata, pois, não é de criar uma identidade europeia, mas de entender a complexidade do pluralismo e das diferenças “Com um pouco de nervo político (diz o filósofo alemão Jürgen Habermas), a crise da moeda comum pode acabar por produzir aquilo que alguns esperavam em tempos da política externa comum – a consciência, por cima das fronteiras nacionais, de compartilhar um destino comum europeu”.


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS


De 15 a 21 de janeiro de 2024


O Relatório da UNESCO sobre a Educação para o século XXI – “A Educação um Tesouro a Descobrir” (Edições Asa, 1996) coordenado por Jacques Delors constitui uma peça-chave para a compreensão do desenvolvimento humano no mundo atual.



COMPROMISSO E REFORMA
A imprensa internacional foi unanime em salientar que as ideias de compromisso e de reformismo gradual foram as marcas fundamentais do percurso cívico e político de Jacques Delors, que foi um grande impulsionador da causa europeia. Militante cristão desde a adolescência, na Juventude Operária Católica, no escutismo e no movimento “La Vie Nouvelle”, no seio do qual dirigiu os cadernos “Citoyens 60”, foi um discípulo confesso de Emmanuel Mounier. Recorde-se que o pensamento de Mounier (1905-1950) se organizou em torno de dois grandes polos: por um lado, a procura fundamental das condições de uma nova civilização, capaz de equilibrar a pessoa e a comunidade, e, por outro, o compromisso na história que interpela o pensamento através do acontecimento. «O acontecimento é o nosso mestre interior», escreveu Mounier a Jean-Marie Domenach, pouco antes de morrer. O aforismo resume a posição filosófica do autor, que recusou sempre fazer do personalismo um sistema. Por isso, Paul Ricoeur preferiu sempre falar de “filosofia da pessoa”. Assim, se há um pensamento de Mounier em busca das «estruturas do universo pessoal», este não pretende forçar o terreno concreto, histórico, para indicar a priori o sentido do acontecimento ou a orientação das ações a levar a cabo – como afirmou Guy Coq. O «campo de estrutura personalista» não é pensável em si mesmo ex ante, compreendemo-lo no interior dos problemas concretos, sociais ou políticos. É através dos problemas, no compromisso assumido no terreno, que este «campo de estrutura personalista» suscitará soluções. Mounier procurou, assim, constantemente uma coerência entre o discurso, a qualidade de homem e a ação. E Jacques Delors foi sempre fiel a esta ideia, insistindo sempre na fidelidade a esta ideia. Como disse Bernard Comte com felicidade: «O método de Mounier e o seu estilo de ação, são marcados pelo exemplo de Péguy: recusa separar o combate de ideias, o trabalho de elaboração dum pensamento, da presença na frente da atualidade política e social, nas lutas travadas em nome da justiça, da liberdade e da paz» (Cf. Guy Coq, Mounier: Compromisso Político, trad, portuguesa, Gradiva).


DEMOCRACIA E PESSOA HUMANA
A ideia de democracia como sistema de valores esteve, de facto, bem presente no percurso político de Jacques Delors e na sua ação. E são as raízes do pensamento de Mounier que animam esse entendimento dinâmico. Assim, a formação económica obtida no Banco de França foi sempre caldeada pela consciência social. O planeamento estratégico deveria constituir uma agenda orientada para uma economia humana, considerando que o mercado só por si era incapaz de garantir a satisfação plena das necessidades numa perspetiva de desenvolvimento humano. Daí a defesa precursora dos objetivos de um desenvolvimento sustentável articulado com a equidade intergeracional e a justiça distributiva. O europeísta visionário considerou, assim, que o mercado, sendo necessário, não poderia ser um meio exclusivo definidor da partilha de recursos. Como afirmou em Braga, nas Semanas Sociais de 2006, o facto de “alguns desejarem impor a tese segundo a qual o social seria um travão ao crescimento e à competitividade, a verdade é que tal é um erro”.  A economia ao serviço da pessoa humana é “crucial”. Por isso, não podemos “aceitar que apenas os mecanismos do mercado determinem ao mesmo tempo o útil e o justo” – ou seja, a economia de mercado não pode tornar-se sociedade de mercado. A ligação entre democracia, coesão económica e social, justiça e criação de espaços supranacionais como a União Europeia era para Jacques Delors um método necessário. Por isso, no último texto que escreveu, sintomaticamente sobre os cinquenta anos da “revolução dos cravos” de 25 de abril de 1974 afirmou que, pondo fim à ditadura, “Portugal ao abrir as portas da democracia, abriu ao mesmo tempo, as portas da Europa. E insistia na ligação indissociável entre democracia representativa e integração europeia, quando o alargamento da União volta à ordem do dia. A União Europeia deve ser constituída apenas por democracias e apenas poderá ser maior se for democrática. O ideal europeu depende da qualidade da representação democrática que o sustenta. Para o humanista de sempre, amigo saudoso de Mário Soares, a democracia como a unidade europeia não são conceitos abstratos, baseando-se em homens de boa vontade, capazes de tornar as profundas aspirações dos povos em resultados de paz, liberdade e prosperidade. “Quando tantos países sob ameaça batem à porta da União Europeia, quando as nossas próprias Assembleias representativas perdem o gosto do bem comum e o sentido do compromisso, quando a tentação do autoritarismo e a espera de um homem providencial nos afastam das nossas responsabilidades cidadãs minadas pelo individualismo, a doce recordação da alegria popular de 25 de abril de 1974 vem reavivar em toda a Europa as cores frágeis, mas brilhantes da democracia”.


DELORS E A CULTURA
Para Jacques Delors, a cultura, envolvendo a educação e a ciência, as artes e a memória, deve estar no centro da vida democrática. Por isso, abraçou com grande entusiasmo a coordenação do fundamental relatório da UNESCO sobre a Educação no século XXI. O texto intitulado “Um Tesouro a descobrir” invoca a fábula de La Fontaine “o lavrador e os filhos” revelador de que a melhor herança que o pai sábio tinha para deixar, o tesouro escondido, era a educação. A educação durante toda a vida está no coração da sociedade, as diferentes sequências da educação devem estar interligadas, as estratégias de reforma têm de ligar escola, famílias e comunidades, devendo alargar-se a cooperação internacional à aldeia global. Exemplo, experiência e cuidado são essenciais. Daí a complementaridade necessária entre aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver com os outros e aprender a ser. “Fundamentalmente, a UNESCO estará a servir a paz e a compreensão entre os homens, ao valorizar a educação como espírito de concórdia, fruto de um querer viver em comum, como militantes da aldeia global que há que pensar e organizar, para bem das gerações futuras. Deste modo, estará a contribuir para uma cultura da paz”. Compreendendo a complexidade da vida humana, Delors estava ciente de quanto conhecimento se perde na informação e de quanta sabedoria se perde no conhecimento. Daí a insistência numa Europa aberta, respeitadora das raízes, ciente do respeito mútuo e da defesa da liberdade, da igualdade e da diferença, capaz de se tornar um fator de mediação e de paz. Não sendo uma fórmula mágica, a aprendizagem é um dos principais meios disponíveis para procurar o desenvolvimento humano mais profundo e harmonioso e assim diminuir a pobreza, a exclusão, a ignorância, a opressão e a guerra. Eis o que Jacques Delors procurou nunca esquecer.


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

JACQUES DELORS (1925-2023)

JACQUES DELORS.jpg

 

Jacques Delors: porque existe Europa e o inesquecível sonho de a concretizar

 

E o horizonte aproximou-se e com ele a vontade de uma exímia paz concretizada em conteúdo e forma.

Cada país seria um todo e cada todo um pensamento aquietado no desafio.

Jacques Delors,

assim lhe pudéssemos traduzir a nossa gratidão encurtando distâncias entre os povos e criando passagens por entre os muros.

 

Teresa Bracinha Vieira

 

A EUROPA E A ESCOLA


Os programas e os currículos escolares não podem ser confundidos com árvores de Natal, onde há sempre lugar para um novo elemento, tema ou matéria julgados de interesse. Importa seguir as reflexões antigas de grandes pedagogos, segundo as quais há a respeitar um núcleo fundamental, claro e limitado de objetivos e matérias, já que como disse Montaigne é preciso privilegiar uma cabeça bem feita, em lugar de uma cabeça bem cheia. Compreende-se a tentação de sermos mais abrangentes, mas é indispensável que uma escola seja um lugar de partilha de saberes e responsabilidades, de modo a abrir horizontes, mais do que criar um gabinete de curiosidades de cultura geral. John Dewey ou António Sérgio ensinaram-nos, por isso, a colocar a tónica no exemplo e na experiência. A escola não existe para a vida futura, mas para garantir desde já uma cidadania inclusiva, envolvendo todos. Participei em Paris numa reflexão sobre a Europa e a escola, a propósito da atribuição do prémio do livro do ano para melhor compreender a Europa a Caroline de Gruyter, dos Países Baixos, autora da obra Monde d’hier, monde de demain, un voyage à travers l’empire des Habsburg et l’Union Européenne (Actes Sud, 2022), com o apoio do Instituto Jacques Delors – “Notre Europe”. A experiência de um império de diversas línguas, povos, nações, religiões e territórios, a ponto de o lema dos Habsburgos ser Austriae Est Imperare Orbe Universo, AEIOU, constitui hoje uma lição histórica para prevenir vicissitudes e riscos de uma realidade muito complexa. De facto, a experiência europeia deve ser lida à luz não de uma lógica formal ou utópica, mas de instituições mediadoras capazes de criar soluções duradouras de paz, desenvolvimento e sustentabilidade. Mas, como foi afirmado no debate, a consciência europeia não se constrói pelo estudo abstrato e meramente formal das instituições comunitárias, mas pela mobilização dos jovens cidadãos em iniciativas concretas.


Recordo o facto de no Ano Europeu do Património Cultural (2018) ter sido possível envolver as redes de bibliotecas e centros de recursos escolares em iniciativas que permitiram a cada escola a escolha não só de um exemplo do património local, material ou imaterial, um monumento ou uma tradição, mas também de uma referência de outro Estado. Deste modo, o diálogo entre diferentes escolas e situações permitiu uma partilha, na qual cada comunidade poderia não só conhecer-se melhor, mas também conhecer as experiências dos outros. E assim o património cultural permitiu realizar experiências concretas de cidadania ativa, juntando a um tempo exemplos, princípios e valores. Ao invés da lógica nacional, fechada sobre si, pôde ganhar-se com o aprofundamento da identidade e das diferenças. E a defesa do património cultural, abriu pistas para a memória, o meio ambiente e o conhecimento da evolução da história e da cultura, no entendimento de que a paz exige a consideração da conflitualidade e da respetiva regulação.


O desenvolvimento humano obriga, assim, a garantir uma cidadania inclusiva, que fundamente a “republica escolar”, baseada na liberdade, na igualdade e na responsabilidade, em que haja participação e subsidiariedade, que reconheça as diferenças, o papel do outro e aproxime a realização do bem comum respeitante às pessoas concretas e à sociedade civil. Num cenário com duas guerras às portas do nosso continente, temos de desenvolver os fatores de coesão e de confiança, precisamos dos outros, procurando consensos duráveis. Como Jacques Delors afirmou no relatório sobre o futuro da educação, que coordenou para a UNESCO, é indispensável respeitar quatro pilares nesse tesouro escondido que é a aprendizagem: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver com os outros e aprender a ser. A Europa na escola, como a cidadania, não podem ser, assim, referências teóricas, têm de ser fatores de compreensão e de ação.


GOM

A VIDA DOS LIVROS

  

De 19 a 25 de junho de 2023


“Pátrias – Uma História Pessoal da Europa” de Timothy Garton Ash (Temas e Debates, 2023) é um livro precioso para a compreensão da evolução europeia, dos seus riscos e potencialidades.

 


NOVA FRONTEIRA DA EUROPA
Em maio de 1994, convidei Timothy Garton Ash, no âmbito dos III Encontros Internacionais de Sintra, organizados pela SEDES, com o apoio da então Comissão portuguesa da Fundação Europeia de Cultura. O tema era “A Nova Fronteira da Europa”, e houve oportunidade para refletir sobre as consequências do fim da guerra fria e sobre os cenários para a reconstrução europeia, considerando a reunificação alemã de 1990, o tratado de Maastricht e a reforma monetária, a trágica evolução na guerra dos Balcãs, a incerteza na situação russa (entre o otimismo de Hélène Carrère d’Encausse e o realismo de Iouri Afanassiev) e a iminência da entrada da Suécia na União Europeia. Nessa circunstância, não bastaria invocar a União Política europeia, tornava-se fundamental dar passos para que o espaço supranacional comunitário fosse dotado de órgãos de decisão e de controlo constitucional representativos e legítimos capazes de resolver problemas comuns e de consolidar a solidariedade europeia. Por outro lado, os alargamentos exigiriam especiais cautelas, porque uma Europa de portas abertas obrigaria a uma casa arrumada, devendo a solidariedade ser resultado de uma vontade comum, de instituições representativas e de uma legitimidade democrática comummente aceite. A epígrafe que animava a reflexão era de Karl Jaspers: “A Liberdade mantém o europeu na intranquilidade e na inquietação”. Nada mais apropriado para o momento e para a complexidade dos problemas então vividos…. Era um tempo em que Vaclav Havel representava o melhor do início do período pós-Muro e a ex-Jugoslávia representava o pior.


UMA HISTÓRIA PESSOAL
Timothy Garton Ash é um dos mais lúcidos analistas da situação europeia e acaba de publicar um livro notável que merece uma leitura muito atenta, confirmando o bem fundado da afirmação de Jaspers, que servia de mote à reunião de 1994. Refiro-me a Pátrias – Uma História Pessoal da Europa (Temas e Debates, 2023). Longe de uma tentativa de interpretação ou de uma previsão relativamente ao futuro, encontramos nesta reflexão uma rica experiência pessoal e a necessidade de compreender a falibilidade das tentativas de prever o futuro sem consideração da complexidade. Há trinta anos, num congresso sobre prospetiva chegou-se, aliás, à conclusão de que um dos poucos exercícios de sucesso para antecipar o futuro coube, não a um relatório de especialistas, mas a Júlio Verne, numa obra póstuma, “Paris no século XX”, que o editor em 1860 se recusou a publicar em vida do autor, por ter previsões arriscadas. Todavia, quando hoje lemos o livro (então considerado impossível), lá estão, por exemplo, muitos dos instrumentos de comunicação que se tornaram comuns. E Timothy Garton Ash constata que, num simpósio em Delfos realizado em 2018 para falar do futuro, lembrando o velho oráculo, ninguém foi capaz de prever que o mundo iria estar em breve sob o domínio de uma pandemia nem que iríamos ter uma guerra importante na Europa em menos de quatro anos. “É loucura imaginar que podemos saber o que vai acontecer amanhã, para já não falar de mais tarde no futuro. É sabedoria tentarmos fazer as conjeturas mais informadas e inteligentes sobre os desafios que é provável que venhamos a enfrentar, para nos prepararmos para eles”. De facto, a questão não está em tentar prever a natureza, mas em fazer planos de emergência melhores. Como afirmou Reinhart Koselleck, “quanto mais as nossas previsões informadas se possam inspirar na experiência recorrente, maior será a probabilidade de serem rigorosas”. Mas há sempre surpresas. O velho império soviético caiu em apenas três anos praticamente sem um tiro, daí que fosse provável uma reação violenta da antiga potência imperial. Por isso, a partir de 2008 ocorreram a intervenção na Geórgia, a tomada da Crimeia, a guerra continuada na Ucrânia oriental desde 2014, e ainda a invasão de 2022…  Ocorre, assim, consultando a bola de cristal, considerar que enquanto Putin estiver no Kremlin teremos uma Rússia agressiva e impiedosa, que o maior desafio global é a China, que utiliza já a sua riqueza para exercer influência designadamente no Sudeste europeu, sendo muito atraente para o hemisfério sul, enquanto o tema de Taiwan abre incertezas sérias quanto à hipótese de um conflito com os Estados Unidos. Tudo isto, a somar aos efeitos do aquecimento global, à crise da energia e à dependência dos combustíveis fósseis, aos desafios demográficos, às migrações, à saúde e à aprendizagem. Garton Ash intitula esta sua viagem como uma história pessoal, considerando o foco em especial no centro e leste da Europa. Desde o dia D e da participação de seu pai no desembarque da Normandia, passando pela destruição ocorrida no fim da guerra em 1945, pela divisão ocorrida entre 1961 e 1979, pela batalha pela liberdade (1980-1999), pelo mundo do pós-Muro, repleto de contradições, esperanças e desilusões (1990) e pelas vacilações recentes, financeiras, sanitárias e bélicas (2008-2022). É este o quadro histórico possível de desenhar. A referência às Pátrias pressupõe o realce do patriotismo, no sentido que De Gaulle lhe dá: “é amar o teu próprio país; enquanto nacionalismo é detestar o dos outros”. E Konrad Adenauer esclarece que “A História é a soma total de coisas que podiam ter sido evitadas”. 


MEMÓRIAS DE UM EUROPEU
Ao lermos Stefan Zweig em Memórias de Um Europeu, compreendemos que andámos para trás, e que regressamos a um tempo de todos os riscos: “Nunca amei mais a nossa velha terra do que nesses anos anteriores à Primeira Guerra Mundial, nunca tive mais esperança na unificação europeia, nunca acreditei mais no seu futuro do que nesse tempo, quando pensávamos que estávamos a entrever uma nova alvorada. Mas, na verdade, já era o clarão do incêndio da conflagração mundial que se adivinhava”. E os acontecimentos recentes na Ucrânia lembram-nos ainda o discurso de Péricles, relatado por Tucídides: “O segredo da felicidade é a liberdade e o segredo da liberdade é a coragem”. Quando Putin lançou a ofensiva contra a Ucrânia, muitos pensaram que David estava condenado a ser vencido por Golias. Tudo seria muito rápido. Mas os acontecimentos contrariaram a expectativa e quando o “Moskva”, o navio almirante russo, foi afundado deu-se o que ninguém podia prever. E houve quem invocasse que o espírito de Aquiles, vencedor de Heitor em Troia, estava agora na ilha das Cobras no Mar Negro, que os mapas mais antigos designavam por ilha de Aquiles. Era esse espírito que agora animava os resistentes ucranianos. E, continuando a pensar em Tucídides, a verdade é que o desfecho da guerra do Peloponeso, não seguiu a lógica previsível dos estrategos. Na “casa comum europeia”, há muito por fazer numa “causa merecedora de esperança”, resta saber como prevenir o futuro.   

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

ANTOLOGIA

  


COMO JAPÃO E EUROPA SE ENTREVÊEM…
por Camilo Martins de Oliveira 


Minha saudosa Princesa de mim:


Recebi esta tarde, de um grupo de senhoras japonesas cujo clube cultural me convidara a falar sobre "Olhares trocados: como Japão e Europa se entrevêem na arte", um "kakemono" com a caligrafia de "ichi go ichi é", máxima que exprime o espírito da cerimónia do chá e posso analiticamente traduzir por: "um encontro é um tesouro que não se repete"... Sensibilizou-me a intenção e o gesto; comove-me o pensamento. Das vezes que, namorados, nos encontrámos e demos a mão, e os olhos de cada um foram a luz dos olhos do outro, não saberei distinguir uma só, nem posso dizer que foram todas iguais, ou alguma diferente. Pela simples razão de que todas foram e são únicas. A contemplação do amor é descobrir sempre o mesmo como pela primeira vez, com a mesma novidade da emoção. Assim também é o olhar do japonês para a natureza ou o objeto ou obra de arte, mesmo artesanal. Para nós, a verdade das coisas é aquela que se descobre, que "se traz ao de cima", que se manifesta. E esta atitude vala tanto para o naturalista que reproduz, como para o impressionista, o cubista ou o abstracionista: em todas essas escolas ou correntes se afirma uma visão própria, ou se pretende transmitir realidades tal como nos apoderámos delas. Para o japonês, o que se procura, o que conta e determina a entrega à contemplação, é o que não se vê. O olhar, ou o escutar - assistir a um concerto no Japão é perceber como o silêncio é participante - torna-se assim, mais do que um exercício dos sentidos, uma extensão da alma. E é esse olhar da alma que traz o objeto de arte - que é visível mas cheio de invisível - para o convívio quotidiano. Se compararmos o recheio e decoração dos palácios e casas grandes onde nascemos - e a sua acumulação de objetos exibicionistas de abundância material - com o despojamento dos interiores coevos das residências e retiros da nobreza japonesa, logo nos aperceberemos dessa diferença essencial. Nas salas japonesas, a prova de bom gosto não amontoa. Afasta e singulariza cada objeto de estimação - um "kakemono" pendurado (seja uma caligrafia, um "sumi é"), uma pintura, ou um arranjo de flores, ou uma peça de cerâmica ou de metal - de modo a poder ser contemplado e convidar ao diálogo invisível... Este sentimento da decência e da superioridade espiritual do que é simples, está patente na arquitetura e arrumo interior dos santuários, templos e mosteiros, como nas casas e pavilhões de repouso da nobreza, tenham estes a grandeza de Katsura ou sejam mais pequenos, como o Gingakuji e o Kinkakuji. E apraz-me pensar que tal contenção material terá moderado a arrogância e os excessos decorativos de construções afirmativas do poder político e militar e suas linhagens, como nesses magníficos monumentos do "barroco" Tokugawa que são o Nijo jo, aqui em Kyoto,e os túmulos dos "shogun" dessa família, em Nikko, a noroeste de Tokyo. Lembrei-me de ti, por interposta referência, durante a minha charla desta tarde. Sabes bem que não preciso de cábulas para que me sorrias à janela do coração.. Mas ocorreu-me, vinda de fora dos tópicos que tinha alinhado, a memória de Mondrian (o Piet Mondrian, nosso conterrâneo, compatriota de teus pais pelo passaporte, já que somos família de muitas fronteiras). Recordas-te da exposição que, juntos, visitámos em Paris, e de eu te ter dito que aqueles Mondrian me evocavam a geometria das plantas da arquitetura japonesa, ou ainda o desenho de portas e janelas - e dos quebra-luz das lanternas portáteis - as madeiras que dividem o espaço e seguram a translucidez do papel de arroz? Na altura em que falava, "vi" primeiro a divisão do interior da minha caixa de "ô bentô", donde fui petiscando o almoço de ontem, no "shinkansen" que me trouxe de Tokyo, onde tinha aterrado. Os compartimentos dessa "merendeira" são lineares e desiguais, contendo cada um a sua dose de alimentos diferentes, pela substância e pelo paladar. O seu consumo não obedece a qualquer ordem pré-estabelecida, vamos comendo, daqui e dali, conforme "conversamos" com eles. Na sua apresentação, há todavia a proposta de oferta, em quantidades que são, para nós, amostras, de produtos conformes à estação da natureza. E a intenção de nos conformar a ela, tornando-os mais apetecíveis pelo prazer cromático que, à vista, cada petisco em seu arrumo nos dá. Em toda a sua "sofisticação" (diríamos nós), o "bentô" é comida popular, quase sempre almoço do funcionário, do empregado, do trabalhador comum. Mas tem, para lá da saúde dietética e da economia, uma dimensão espiritual, na medida do seu usufruto estético e da sua referência à mãe-natureza (nós diríamos Criação...). Mondrian, que tanto se preocupou com a relação da arte à vida, perceberia o que quero dizer. O mesmíssimo princípio estético se aplica ao "kaiseki ryiori" com que fui gratificado ao jantar num "ryotei", restaurante fino e caríssimo. Aqui, não só a variedade dos catorze serviços obedece também à sazonabilidade dos produtos, mas, nas mesinhas baixas dispostas à nossa frente, as louças e lacas em que se nos oferecem as iguarias apresentam formas e desenhos alusivos à estação do ano... É já mais copiosa a refeição, mas "quem pode" não é obrigado a comer tudo... Vai-se bebendo "saké", acompanhando os pratos de "sashimi", "tempura" e os outros, cozidos, avinagrados ou mais adocicados, grelhados, etc... Mas, no fim da refeição, com a "miso shiru" (sopa de soja fermentada) e os "pickles", vem a malga de arroz. Esta, em princípio é para ser totalmente ingerida. Todos a comem, como quem cumpre. Tal como na nossa tradição cristã, não se deita fora o pão dos pobres." Quando, décadas mais tarde, na senda de Camilo Maria, me calhou andar pelo Japão, encontrei muito do mesmo. E também a coexistência de tudo isso com um Japão eletrónico e "pop". E pensei muito nessa coexistência, que não se anuncia só nas caixas do "bentô". Está no cerne de uma visão do mundo, com a aceitação de si e do seu contraditório, ou simplesmente da diferença, como se explica até pela convivência do shintoísmo com o budismo desde o século VII. Talvez também se possa dizer que, para o japonês, um momento de distração desse princípio de bondade universal, ou seja, a afirmação "erga omnes" da diferença pretendida, pode conduzir à barbárie. Sentimos, penso eu, de quando em vez, ou dessa vez quando estamos às avessas com a circunstância, um desejo fúnebre de embirrar com o mundo. Daí, mal nenhum ao mundo virá, pois tão pouco podemos que nem para aguentar a birra - ou o burro amarrado -  temos força... A menos que a gente se dê conta de que a birra, afinal, nossa não é, mas cegueira, sim, da circunstância. Como quando, esta noite, me assusto ao imaginar, depois de tanto comentário mais televisivo do que silenciosamente sábio, que estamos todos a ser arrastados para um barranco de cegos...


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 31.05.13 neste blogue

EDGAR MORIN E A GUERRA NA EUROPA

Edgar Morin e a Guerra na Europa.png

 

GUERRA NA UCRÂNIA – ESCALADA E QUEDA

CARTA ABERTA DE EDGAR MORIN

 

Vivemos uma paz armada com os nossos corpos instalados na paz e os nossos espíritos situados entre bombas e escombros. Atacamos um inimigo com palavras, e ele ataca-nos com ameaças, mas dormimos na nossa cama e não num abrigo. E, no entanto, participamos na verdadeira guerra, sem que tenhamos entrado, mas fazendo entrar nela armas e munições.

 

A guerra da Ucrânia internacionalizou-se progressivamente. À ajuda humanitária e depois alimentar às populações ucranianas vítimas da agressão russa, sucedeu a ajuda militar em armas, primeiro defensivas e depois contraofensivas, cuja qualidade e quantidade crescem principalmente com o contributo massivo dos Estados Unidos, acompanhados pela maior parte dos países da União Europeia.

 

A estratégia do exército russo é implacável. É filha do método de Jukov, da Segunda Guerra Mundial, com formidáveis bombardeamentos de artilharia, não só contra as tropas inimigas, mas também contra as cidades a tomar, com destruição completa pela artilharia pesada da capital do Reich, Berlim. Como acontece com qualquer exército vencedor, mas mais terrivelmente no caso do avanço soviético na Alemanha, as mortes e as violações multiplicaram-se. Soubemo-lo então, mas fomos impedidos de os denunciar, explicando-os como vingança dos enormes sofrimentos e mortes infligidos pela Alemanha nazi às populações soviéticas.

 

No tocante à Ucrânia, o povo senão irmão pelo menos parente próximo do povo russo, podemos perguntar-nos se as mortes e violações são devidas à desordem de algumas tropas, ao furor da derrota ou a uma vontade de aterrorizar.

 

Não sabemos ainda se a intenção primeira da agressão de Putin foi a de fazer cair toda a Ucrânia como um fruto maduro, decapitando-a desde os primeiros assaltos. Parece que a ambição atual sob o efeito da resistência ucraniana seja conquistar duradouramente as regiões maioritariamente russófonas do Donbass e o litoral do mar de Azov.

 

No momento em que escrevo (maio de 2022), a luta é intensa e incerta: a ofensiva russa é muito poderosa mas o exército ucraniano, no decurso da guerra desde 2014 contra os separatistas russófilos estabeleceu fortificações em profundidade e escalonadas, que travam consideravelmente os avanços russos ainda pouco decisivos.

 

O que parece provável daqui em diante, salvo um golpe de Estado no Kremlin, um golpe militar fatal ou ainda um golpe de teatro diplomático (cessar fogo, compromisso de paz), é que a guerra deve durar e intensificar-se com o contributo cada vez mais abundante de armas ocidentais e retaliações cada vez mais amplas da Rússia.

 

O carácter internacional da guerra da Ucrânia vai crescendo. É certo que o campo ocidental guiado pelos Estados Unidos declara não fazer guerra à Rússia. Mas a intervenção militar de apoio à Ucrânia é uma guerra indireta a que se junta uma guerra económica acrescentada pelo crescimento das sanções.

 

Estamos em plena escalada, sustentada por novos bombardeamentos, por novas acusações mútuas, por novas vagas de criminalização recíproca. A guerra indireta em que se tornou a guerra da Ucrânia pode a todo o momento alargar-se com bombardeamentos não acidentais em território russo ou europeu.

 

Nesse ponto Putin retomou o seu anúncio de uma resposta «rápida e avassaladora» se um certo limiar não precisado de hostilidade ou ingerência puder ameaçar a Rússia, criando condições para o uso de uma arma decisiva, desconhecida de todos os outros países, de que a Rússia seja a única possuidora.

 

Esta ameaça não é levada a sério pelos Estados Unidos e seus aliados, em virtude de um argumento racional, bem conhecido depois da guerra fria. Se a Rússia nos quer menorizar, a resposta imediata menorizá-la-ia. Este argumento racional não considera um possível carácter acidental e a possível irracionalidade. O possível carácter acidental seria o lançamento involuntário de um engenho nuclear sobre o inimigo potencial, o que deflagraria uma resposta nuclear imediata. A possível irracionalidade é a de um ditador cheio de raiva ou perturbado pelo delírio.

 

De todo o modo, é atualmente provável (sabendo-se que o improvável pode acontecer) que de derrapagem em derrapagem a guerra se alargue nos territórios europeus e se amplifique pelos misseis intercontinentais nos territórios russo e americano sem sequer poupar a Europa. Uma terceira guerra mundial, dum tipo novo, com utilização de armas nucleares táticas de alcance limitado, drones, ciberguerra com destruição de sistemas de comunicação que asseguram a vida das sociedades, seria a concretização lógica da ampliação da atual guerra internacionalizada.

 

Juntemos uma verificação importante: a guerra introduz nos países em conflito controlos, vigilâncias, eliminação de todas as opiniões diferentes da linha oficial e o desenvolvimento de propaganda de justificação permanente dos seus atos e de criminalização ontológica do inimigo. A Rússia de Putin era já um Estado autoritário às ordens de um ditador. A guerra agravou o controlo e a repressão, atingindo aqueles que não só se opunham à agressão, mas também àqueles que duvidavam dos seus fundamentos. Na Ucrânia a caça aos espiões e terroristas suscitou um controlo das populações, os excessos cometidos por algumas das suas tropas ou grupos são ocultados e, denunciando os desvios reais, a propaganda desenvolve-se contra um inimigo totalmente criminalizado. Em França, embora não beligerante e ainda com o conforto último da paz, só temos acesso às considerações mais enganadoras da Rússia de Putin e às imagens de destruição que esta causa.

 

Estamos na escalada da desumanidade e da destruição da humanidade, na escalada do simplismo e da destruição da complexidade. Mas, sobretudo, a escalada para a guerra mundializada significa o arrastamento da humanidade para o abismo. Poderemos escapar a esta lógica infernal?

 

A única possibilidade seria uma paz de compromisso que instaurasse e garantisse uma neutralidade na Ucrânia. O estatuto das regiões russófonas do Donbass poderia ser tratado por referendo. A Crimeia, região tártara em parte russificada, mereceria também um regime especial. Em suma, as condições de um compromisso, tão difícil de estabelecer, são claras. Mas a radicalização e a ampliação da guerra levam a recuar nas possibilidades positivas de modo indefinido. A situação geopolítica da Ucrânia e a sua riqueza económica em trigo, aço, carvão, metais raros atraem os grandes predadores, que são as duas superpotências. A inclinação da Ucrânia para ocidente, depois de Maidan, suscitou a agressão russa, e a agressão russa suscitou não apenas o apoio a uma nação vítima de invasão, mas a vontade de a integrar no mundo ocidental, o que correspondia de resto ao voto maioritário dos ucranianos.

 

A Ucrânia é mártir não somente da Rússia, mas do agravamento das relações conflituais entre os Estados Unidos e a Rússia e do alargamento da OTAN, ele mesmo inseparável das inquietudes suscitadas pela guerra russa na Chechénia e da sua intervenção militar na Geórgia.

 

O objetivo da Ucrânia não é apenas libertar-se da invasão russa, mas também libertar-se do antagonismo entre a Rússia e os Estados Unidos. Esta dupla libertação permitiria às nações da União Europeia libertarem-se igualmente desse conflito e procurarem ligar segurança e autonomia.

 

As sanções contra a Rússia, atingindo duramente não apenas o regime de Putin, mas também o povo russo, não se sabe até que ponto atingem igualmente os sancionadores, virando-se contra eles: não é apenas o seu abastecimento em energias e em alimentação que é ameaçado, é, sem dúvida, com a inflação aumentada e as restrições anunciadas, a sua economia e toda a sua vida social. Uma crise económica é sempre ela mesma geradora de regressões autoritárias e de instalação duradoura de sociedades submetidas.

 

A Rússia de Putin é um abominável regime autoritário. Mas não é semelhante à Alemanha de Hitler; o seu hegemonismo pan-eslavo não é, como foi o hitleriano, a vontade de colonizar a Europa e de escravizar povos racialmente inferiores. Toda a hitlerização de Putin é excessiva.

 

Estamos num mundo dominado pelos antagonismos entre superpotências e entregue aos delírios religiosos, étnicos, nacionalistas e racistas.  Por muito repugnantes que sejam as superpotências a títulos diversos o apaziguamento dos seus conflitos é uma condição sine qua non para evitar desastres generalizados. Devemos aspirar a um compromisso. A humanidade não seria salva, mas ganharia uma trégua e talvez uma esperança.

 

(Direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização do autor)
Foi publicado em “Ouest-France” em 18/03/2022

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


118. VISÕES EUROPEIAS, DO MUNDO E DA RÚSSIA


1. Perguntar “Que Europa queremos?”, coloca uma questão de fundo a que temos de responder: ou assumimos a nossa pertença ao mundo ocidental e fazemos da relação transatlântica um eixo fundamental de uma política de construção europeia, ou rejeitamos essa especificidade e elegemos o antiamericanismo e o imperialismo americano como causa estrutural de ressentimentos e traumas. O 11.09.2001 mudou a nossa perceção sobre o mundo em termos geoestratégicos e de sobrevivência. A que acresce a atual invasão da Ucrânia, tida como uma ameaça mundial, em especial para o ocidente. 


Se a Europa é uma Babel de culturas e línguas diferentes e a sua construção assenta essencialmente nas conveniências geopolíticas e estratégicas resultantes de pressões económicas, demográficas, políticas e de segurança, não é menos verdade que com o alargamento a mais países (via União Europeia) se desejou dar um salto qualitativo de um ente de natureza marcadamente económica para uma entidade política e cultural através da adoção de um tratado constitucional. E falhou. Não só porque não existe uma generalizada consciência e cidadania europeia, mas também porque falta à Europa uma massa de coesão em questões essenciais. Por um lado, o espírito europeu é embrionário e frágil, não ultrapassa as fronteiras do Estado ou da nação querendo, cada um e todos, sempre mais (da Europa e UE) do que aquilo com que se contribui. Por outro lado, há países com visões diferentes, em que os mais desenvolvidos e poderosos não querem ver as suas estratégias muito diluídas num vasto grupo de aderentes. Sempre houve tentativas de unidade europeia que falharam, em que a Europa quis ser Europa, ou mais Europa, e não foi. Desde a República Cristiana, ao império de Carlos Magno, ambições de Carlos V, Napoleão e Hitler.     


2.
Se uma histórica e permanente fragmentação da Europa se assemelha a uma “manta de retalhos”, em que os mais poderosos (à escala europeia) se têm como privilegiados, de igual modo todas as grandes potências mundiais (europeias ou não) se alimentam do culto de um suposto excecionalismo, próximo ou associado ao universalismo.


Usando as palavras de Bernardo Pires de Lima (Putinlândia, editora Tinta da China): “Todas as grandes potências vivem a mitologia de um pretenso excecionalismo. Há quem tenha adotado uma missão zelosa de universalismo liberal (EUA), quem temporize a singularidade do seu critério de ascensão (China), quem não se conforme com uma civilização contida no espaço (Irão), quem não consiga aceitar o declínio (França), quem não tenha encontrado a fórmula pós-imperial (Reino Unido), quem duvide do seu Karma (Alemanha), quem se glorifique através do espelho da geografia (Brasil), quem não descole por medos vizinhos (Índia). E depois há a Rússia”.   Rússia que com a revolução bolchevique descolou da sua escala clássica e foi modelo ideológico mundial, como farol de uma ideologia universal, o socialismo científico, que falhou, sendo agora promotora de um império eurasiano, através da União Eurasiática, em construção. Pretende ser, também, um modelo de diversidade na unidade. Desde o Báltico e dos Cárpatos ao Pacífico, devendo a Eurásia substituir, a prazo, a liderança dos EU. Tendo como indestrutível a ligação à Ucrânia, as tentativas desta, de parceria e de integração na UE, são tidas, pela Rússia, como contranatura e inadmissíveis, devendo juntar-se à União Eurasiática. 


3.
Não obstante a Rússia ser eurasiática do ponto de vista geográfico, é um país com  raízes europeias, de matriz civilizacional essencialmente europeia, pelas suas fontes históricas, nomeadamente cristãs, pela sua literatura, música clássica e as belas artes em geral que são parte da erudição europeia, ocidental e mundial, pela “joia da coroa” russa, fundada por Pedro, o Grande, ser pró-europeia (São Petersburgo), pelo seu centro do poder (Moscovo) e a maioria dos russos viver na Europa, de traços mais comuns com ocidentais do que com os vizinhos do extremo asiático. Os seus grandes momentos estão mais ligados ao Velho continente, sendo legítimo pensar que é mais uma extensão da Europa que da Ásia. Urge encontrar o meio mais adequado rumo a uma coexistência e sã convivência de direitos, tradições e costumes com respeito mútuo. Antes seja, no mínimo, um parceiro estratégico, como já foi, e não a ameaça de agora. O que não implica tergiversar com a agressão da Ucrânia, havendo que pressionar e compelir a política russa a respeitar a vontade soberana de Estados independentes que optem pela UE e o Ocidente, sem prejuízo de uma paz de compromisso.


Estamos face a uma encruzilhada, em que há que fazer uma escolha fundada numa aliança sólida com quem partilhamos os mesmos princípios e valores, os agarra mais de perto ou respeita. Liberdade, dignidade e direitos humanos são valores máximos que devemos preservar e exportar. Se os perdermos ou renegarmos a recuperação de um mundo melhor é utópica. Sem excluir uma inclusão e acomodação em diversidade e responsabilidade dentro dos padrões dominantes e vigentes, rumo a uma convergência de interesses e visão estratégica comum, fazendo a escolha de um mal menor, entre vários, dada a imperfeição da natureza humana, mas em que a magna diferença está em poder criticar, corrigir, escrutinar em liberdade num Estado de Direito que se quer sempre aberto ao debate.


12.08.2022
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  

 

115. POR UMA ESTRATÉGIA EUROPEIA


Se a Europa é cada vez menos uma mera convenção geográfica, em que a fixação das suas fronteiras tem mais a ver com um recorte político, cultural e civilizacional, e não geográfico, tem de ser vista como uma entidade com um papel estratégico na cena mundial, e não virada para o seu próprio umbigo.   


Sendo uma enciclopédia de culturas, a sua construção e projeção tem de assentar em conveniências estratégicas de médio e longo prazo, e não consoante as circunstâncias, em comunhão e conjugação de esforços com uma herança cultural, histórica e religiosa que tem de ser promotora de um diálogo entre culturas e convivência de costumes, numa perspetiva evolutiva e inclusiva que ajude a transformar o mundo.


Tem de crescer como um organismo vivo, sendo as pressões económicas, demográficas e de segurança que definem, no essencial, as suas conveniências estratégicas como ente com um papel estratégico a nível mundial.   


Esta nova mentalidade estratégica europeia alicerça-se em referências laicas, humanistas, princípios ideológicos e jurídicos gerais compatíveis com a filosofia dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana, da subordinação do Estado e da democracia representativa e suas instituições ao Direito, da economia de mercado, na qual a iniciativa privada e a regulamentação pública se complementam num amplo mercado livre (economia mista).         


Trata-se de um paradigma civilizacional que representa uma parte muito significativa do mundo ocidental, com uma história comum, laços culturais e políticos que se aproximam cada vez mais, quer a nível linguístico, emigratório, económico, turístico, entre outros. Não surpreende que dessa convergência de valores e de interesses surja uma visão estratégica comum, fazendo com que países como o Canadá, Estados Unidos da América, Austrália, Nova Zelândia, Singapura, Coreia do Sul, Japão, tenham um modo de vida ocidental ou ocidentalizado, de crescentes influências europeias. Incluindo a América Latina e países africanos que comungam línguas oficiais de génese europeia, embora com espaços democráticos menos amadurecidos e economias menos abertas ao exterior. Sem esquecer que na própria Europa há, em termos políticos, países não democráticos.


A Europa, em particular, ao assumir a sua pertença preferencial ao mundo ocidental, faz da relação transatlântica um eixo fundamental da política de construção europeia, posição esta reforçada com o 11 de setembro de 2001, com o qual a ameaça terrorista se globalizou, sendo inviável uma construção europeia sem uma política global capaz de enfrentar os novos desafios, que tem de assentar numa aliança sólida com quem partilhamos os mesmos princípios e valores. Após os atentados, também houve uma aproximação maior entre a Rússia e o Ocidente. 


Porém, com a invasão da Ucrânia pela Rússia, a Europa confronta-se e questiona-se de novo. O que torna mais claro que tem de ter uma opção estratégica, saindo reforçada a relação transatlântica da União Europeia, ocidente europeu e seus aliados. Só que, de momento, o epicentro dos acontecimentos bélicos é na Europa, entre europeus, russos e ucranianos, povos e países eslavos, o que nos interroga sobre a Europa a leste, da antiga União Soviética e antigos países do Pacto de Varsóvia.

 

22.07.2022
Joaquim Miguel de Morgado Patrício