ANTOLOGIA
EVELYN WAUGH VEM À BAILA…
por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
Escrevi uma longa carta ao nosso Camilo, falando-lhe de morte, dor e serenidade. Sabes o que sinto e sei como o sentes comigo. Mas também acabei por dissertar um pouco sobre as idades da morte. Tenho vindo a ler os "Essais sur l´histoire de la mort en Occident" do Philippe Ariès, publicados em volume este ano (1975). Penso que fiz aí um esforço de objetivação, necessário ao equilíbrio emocional que nem sempre consigo controlar. Aliás, escrevi ao Camilo neste 50º aniversário da morte do G..., por receio de me comover ou, melhor, de nos comovermos muito, se contigo o abordasse. Sinto todavia que anda em mim um remorso vagabundo, um escrúpulo de lhe ter escrito sobre situações e sentimentos que nos atingem até aos limites da nossa compreensão das coisas: Portugal está em plena revolução, o Camilo está em Bruxelas, bem sei, mas deve sentir-se afetado, para além de tudo o que possa compreender e até explicar, pelo que também é, no imediato, incompreensível e incerto. Mantem-se calado, mas referiu-me, em carta recente, como lhe doeu o coração, com "saudade" da Pátria, ao escutar, na catedral de Saint Michel e Sainte Gudule, umas "lamentações" de Jeremias adaptadas e postas em música, em 1663(?), por Matthias Weckmann, em Hamburgo, depois da peste lhe ter levado a mulher: "Wie liegt die Stadt so wüste, die voll Volkes war..." A cidade solitária e abandonada lembra uma viúva: grande entre as nações, soberana entre os estados, está reduzida à servidão. É bem verdade que não se força a realização de um sonho. E que a grandeza das nações é como a que os homens se pretendem: chega sempre o dia em que tudo isso se reduz a pó. Talvez porque, afinal, já o era: "Memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris..." O sonho do Estado Novo foi o do Portugal restaurado nas suas raízes históricas e na sua vocação universal e imperial. Tanto quanto sei, o sonho do "Quinto Império" não foi estranho a visionários como o jesuíta António Vieira ou o modernista Fernando Pessoa. Hoje, a "Revolução dos Cravos" pretende anunciar uma era nova de liberdade, abundância e paz... Uma nova Jerusalém, construída sobre o abandono de uma ordem política económica e social, com os seus valores, e de um império, com os seus recursos e oportunidades. Como será? Até que ponto o bom senso prevalecerá sobre a euforia, e o esforço sobre a irresponsabilidade? O projeto grandioso - e, acredito, com intenção patriótica - do Estado Novo falhou por ter parado no tempo, não ter percebido que a melhoria das condições de vida de um povo, ou o crescimento do produto de uma economia, não são calmantes de aspirações e desejos, antes são incentivos a novas ambições. Desconfiado, provinciano íntegro chocado com a "luxúria" da burguesia citadina da República Portuguesa, num período em que se fizeram grandes fortunas (na indústria, no comércio e na finança) e se acentuou a exploração de um proletariado urbano crescente - e uma mão de obra forçada, nas colónias - o professor de Coimbra, determinado, entendeu que o seu projeto de Estado Corporativo, inspirado pela procura da harmonia social preconizada pela «Rerum Novarum», passaria pela moralização e disciplinação da burguesia liberal enriquecida, e pela "domesticação" das massas operárias e dos movimentos e partidos que, a seu ver, ameaçariam a ordem e bom funcionamento do Estado e abririam a porta à entrada do totalitarismo comunista. A imposição autoritária da disciplina política e social, bem como da economia financeira do Estado, permitiu três décadas de crescimento económico, limitando todavia o exercício de certas liberdades cívicas e também da iniciativa económica (a que não foi estranho o regime do condicionamento industrial). Mas a expansão de uma pequena e média burguesia, e a melhoria das suas condições de vida e do seu estatuto social, transformaram a sociedade portuguesa e criaram uma tensão crescente entre as aspirações a um tipo de vida - que o cotejo (pela experiência dos emigrantes e pela televisão) com o de outros povos europeus tornava cada vez mais apetecível - e a ideologia e cultura do conservadorismo ambiente. A guerra nos domínios africanos foi o catalizador da derrocada: quer porque pedia sacrifícios financeiros e humanos a populações aspirantes ao bem-estar e bem-gozar a vida, quer porque o êxito de uma nova classe de africanistas (entre os quais se contavam universitários, grandes empresários e quadros mais qualificados) criava algum ressentimento entre a gente da "metópole" que pensava ser sacrificada para os proteger. O projeto grandioso de um Portugal multirracial e pluricontinental tornava-se inviável pela incapacidade do Estado em mobilizar o povo para uma ação comum e a longo prazo, sobretudo num ambiente internacional demissionário e hostil. Prevaleceu a vontade de conforto e a esperança de que a possível integração numa Europa abastada e liberal seria o destino prometido aos portugueses... Neste momento, todavia, o oportunismo da esquerda radical tenta atirar o país para a loucura de um socialismo utópico. Acredito mais no poder de oposição a esta nefasta pretensão que a pequena e média burguesia portuguesa - desde o norte e centro rural e conservador até ao operariado ligado ao PS - possam mover, do que numa mobilização política da CE para "salvar" Portugal. A solidariedade europeia como ação ética e prática está por provar na universalidade. O núcleo de nações que a formou é interesseiro, com políticos que vão ao mercado dos votos. Mais tarde, se felizmente se concretizar essa aspiração europeia de Portugal, veremos se os novos benefícios adquiridos não irão provocar novos desejos de rendimentos e consumo, tal como vem sucedendo nas nossas sociedades afluentes, materialistas e míopes. Lembro-me de te ter ouvido dizer naquele jantar cheio de cabeças pós-modernistas: ´Não cuidem da moral e depois queixem-se!´ Eu talvez seja conservador, mas tu és reacionária. Por vezes, com graça e com razão. Por isso também penso em ti, sempre, sempre, com muita ternura...". Esta carta de Camilo Maria à sua Princesa serve aqui para realçar a atenção lúcida com que o Marquês de Sarolea acompanhou o PREC, desligando-se da consideração de efemérides para se concentrar na compreensão de fatores dos processos sociais e políticos que ao longo do tempo são, afinal, identificáveis pela sua permanência no coração dos homens. Pelo gosto dessa visão elevada (filosófica) dos acontecimentos, mentalidades e comportamentos ao longo da história, traduzirei outros trechos da carta que ele me escreveu dissertando sobre os "Essais" do Ariès acima referidos. Para descortinarmos sinais dos tempos na diferença das ideias da morte e seu acolhimento na "Chanson de Roland" ou no "Tristão e Isolda" e no que Evelyn Waugh ironizou no seu "The Loved One"...
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 15.03.13 neste blogue.