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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O DIABO: POSSESSÕES DIABÓLICAS E EXORCISMOS. 2

  


Continuo o texto da semana passada, partindo de uma conversa com Fátima Lopes na televisão.


A partir do que explicou, como é que devemos interpretar o facto de a Igreja Católica ter credenciado uns quantos padres como estando habilitados para fazer exorcismos? Isso não faz sentido.


Sim, o diabo não existe, os exorcismos não fazem sentido. O que, na minha opinião, deve haver é uma espécie de pacto médico-pastoral, como na Alemanha. Às vezes, aparecem-me doentes que eu não posso curar porque não sou médico, mando-os para o psiquiatra, como também há psiquiatras que me mandam doentes que eles ajudam mas que têm também problemas do foro religioso, e ajudamo-nos mutuamente. É isso que é preciso fazer. Mas não atribuir ao diabo aquilo que, efectivamente, é de outra ordem.


Repare: logo no começo do Evangelho segundo S. João, lê-se: "No princípio era o Logos e o Logos era Deus". Que é que isso significa? Que Deus é razão, Deus é inteligência e tudo foi criado pelo Logos, por isso é que o mundo é legível do ponto de vista científico. Porque, se foi criado pela razão, deve ser razoável e, portanto, vamos investigá-lo, mas o Novo Testamento diz também que Deus é amor e amor incondicional. Então, Deus é inteligência, é razão e é amor. São estes dois princípios que nós devemos unir para avançarmos, ajudarmo-nos a nós e ajudarmos os outros. Frequentemente, na Igreja, a razão não está, infelizmente, muito presente.


Então acha que é por isso que ainda se continua a habilitar alguns para fazer uma coisa com que não concorda, que acha que não faz sentido?


Sinceramente, julgo que os padres devem estudar um pouco mais para perceber um pouco melhor o Evangelho. Por vezes, lê-se o Evangelho à letra, sem entender o que lá está. Como lhe disse, Jesus não pregou o diabo, mas o Reino de Deus e ajudou as pessoas. Dou-lhe um exemplo. Nos Evangelhos, aparece aquele passo no qual se fala de duas pessoas que eram consideradas "possuídas" pelo diabo, até andavam pelos túmulos. Eram ferozes e as pessoas, claro, tinham medo. Ao constatarem que Jesus ia ajudar estes desgraçados em tanta dificuldade, os demónios, porque andava por ali uma vara de porcos pediram-lhe que os mandasse para os porcos. Jesus disse-lhes que fossem e eles, saindo, entraram nos porcos, que se despenharam por um precipício no mar e morreram nas águas. O que é que está aqui? Jesus ajudou de modo eficaz aqueles "possessos"; os demónios entraram nos porcos (não se pode esquecer que os porcos eram considerados animais impuros) e precipitaram-se no mar (não se pode esquecer que o mar é também símbolo do mal. Pense-se, por exemplo: Jesus andou sobre as águas, para dizer que Jesus está acima do mal e liberta; chamou os discípulos e fê-los pescadores de homens, para dizer que devem libertar as pessoas do mal; no final, diz o livro do Apocalipse que haverá um céu novo e uma terra nova e já não haverá mar, isto é, já não haverá mal)... Quando lemos o Evangelho, é preciso ler o que lá está, interpretando a linguagem utilizada no contexto da época.


Sabe? O diabo também faz muito jeito a muita gente que não está para se converter. Diabos é o que mais há por aí, incluindo nós próprios: muitas vezes nós somos o diabo para nós. Não é preciso haver um tentador de fora, há tentação suficiente connosco. Vou dar exemplos. Olhe: a corrupção é uma tentação do diabo! E este país com a corrupção não avança! Não avança, isto é uma tragédia. Está a ver?, mas depois há os corruptos activos e passivos. Os políticos estão lá para quê? Deviam estar lá para servir o povo, não para se servir, nem servir os seus interesses em conluio muitas vezes entre política e negócios. Isto é o diabo! Veja o estado da educação, da saúde, da Justiça.. É o diabo! Olhe: a pedofilia; é uma tragédia na Igreja, há padres pedófilos, é uma tragédia, isto é o diabo!


O diabo está nas más acções das pessoas!


E nós atribuímos coisas ao diabo, porque é mais fácil, em vez de nos convertermos. Portanto, a pergunta que faço é: que responsabilidade é esta? Muitas vezes, atribuímos ao diabo as tentações, etc., para não nos convertermos. Olhe, afastemos o diabo de nós, façamos um "exorcismo" sobre nós, mudemos de vida, sejamos dignos, honestos, tentemos ajudar os outros, aqueles que estão em dificuldade e vamos ter um mundo melhor como Jesus queria.


É curioso porque, no fundo, o que está a dizer é que as pessoas têm que chamar mais a elas a responsabilidade sobre as pessoas que são e a vida que levam.


Nem mais! A dignidade! Não atribuamos ao mafarrico, ao demónio, ao diabo... o que nos pertence a nós. Deixe que lhe diga, eu conheço dois diabos muito interessantes: um, está na Catedral de Friburgo, na Alemanha, está lá no alto, uma coisa bonita, a defecar, é uma coisa soberba!... E há um outro que está no frontispício da Catedral de Basileia, que é lindíssimo, ele a tentar uma mulher, ele sorridente e ela enlevada na sedução, está a ver?


As tentações estão aí, mas bastamos nós para nos tentarmos e cairmos na tentação. Se não andarmos direitos, erguidos e inteiros, as tentações chegam e sucumbimos. Se não tivermos um pouco de tempo para parar e pensar na nossa vida, ter momentos de silêncio para rezar, fazer silêncio para ouvir o melhor, a voz da consciência, caminhar no sentido da verdade, do bem, da beleza..., não nos admiremos. É o diabo!


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 3 de junho de 2023

O DIABO: POSSESSÕES DIABÓLICAS E EXORCISMOS. 1

  


Há um católico, que pessoalmente não conheço, mas muito preocupado com os dogmas e que frequentemente me consulta sobre eles. Telefonou-me recentemente a perguntar: “Como cristãos podemos e devemos odiar o diabo? É que Jesus disse que devemos amar os inimigos...” Disse-lhe que o problema não se põe, pois o diabo não existe. Ele: “Mas está na Bíblia...”.  

Dado o interesse que o diabo desencadeia — reuniram-se ainda há pouco tempo em Roma 241 alunos, vindos de 42 países, para um curso para futuros “expulsadores de demónios” —, volto ao tema, retomando, porque facilita a reflexão, uma conversa que tive há anos na televisão com a jornalista Fátima Lopes. Uma reflexão sobre o diabo, as possessões diabólicas, demoníacas, e os exorcismos.

Fica aí o essencial da conversa, prevenindo que nem sempre será literal.

Antes de mais, vamos começar por explicar às pessoas o que é isto do exorcismo. Comecemos por aí.

O exorcismo parte do princípio de que há diabo e que o diabo, por vezes, se mete dentro de uma pessoa.

Atormenta as pessoas.

Não atormenta só. Mete-se mesmo dentro de uma pessoa e então vem o padre, e só pode ser um padre que esteja nomeado pelo bispo da diocese para isso, para expulsar, tirar o diabo de dentro da pessoa.

Dito isto, se me pergunta se eu acredito nisso, não, não acredito.

Mas não acredita que o diabo possa entrar para dentro da pessoa ou não acredita no próprio diabo?

Eu não acredito no diabo. O diabo é o contrário de símbolo, que significa reunião, coincidência (por exemplo, uma aliança no dedo de alguém remete para outra aliança no dedo de outra pessoa, o que significa que há entre elas uma união). A palavra diabo também vem do grego, diábolos, que significa aquele que separa, que dispersa, que desune, que traz zaragatas e problemas à vida. Se me pergunta se há diabo, eu não acredito. Aliás, o diabo não está no Credo, no Credo cristão. Jesus não pregou o diabo, Jesus pregou o Reino de Deus, o Evangelho, o Mistério último, que é Deus enquanto Pai/Mãe. O Evangelho é uma notícia boa, como diz a própria palavra, e felicitante, que traz alegria, felicidade, às pessoas. Há alguma notícia mais felicitante do que esta? Deus gosta de todas as pessoas, Deus gosta de si, de mim, foi isto que Jesus veio dizer. Deus ama-nos, ama todos os homens e mulheres, independentemente da sua condição, independentemente de se ser católico ou não, ama os ateus, ama-nos enquanto filhos e filhas, porque Ele é um Pai/Mãe querido e bom. Deus não nos criou para a sua maior honra e glória, não, Deus  criou-nos por causa de nós, porque é amor e quer a nossa felicidade. Esta é uma notícia boa e felicitante, o Evangelho de Jesus.

Concordo plenamente consigo. Mas como, se na Igreja Católica, se fala às vezes, não todos, mas há quem fale, desta figura do diabo? É uma coisa extremamente intimidante; a figura do diabo põe-nos em sentido!

Claro. Veja, não é por acaso que o diabo até tem tantos nomes: é o Diabo, é o Satanás, é o Belzebu, é o Mafarrico, é o Lúcifer e, frequentemente, aquilo que eu noto é que há pessoas que não acreditam em Deus, mas acreditam no diabo. Eu assisti uma vez a um debate na Alemanha — eu era muito amigo do maior biblista do século XX, católico, professor na Universidade de Tubinga, Herbert Haag, e também conheci pessoalmente um dos maiores filósofos do século XX, alemão também, Ernst Bloch, ateu. Eles tiveram uma vez um debate e veja: o padre a dizer que não havia diabo e o ateu a dizer que havia diabo. Já viu?

Fico baralhada!

É uma baralhada, é! Porque há muitas pessoas que não acreditam em Deus, no Deus de Jesus, por culpa também, às vezes, da Igreja e dos padres, que, em vez de pregarem o Evangelho, esta notícia boa e felicitante, em vez de pregarem o Evangelho, pregam o Disangelho, que é uma notícia má, uma notícia que não traz alegria e felicidade, mas traz medo. E muitas vezes prega-se o diabo por causa do medo; é que, se as pessoas tiverem medo, é mais fácil exercer o poder sobre elas e controlá-las. Ora, é preciso dizer a verdade: Jesus não pregou o diabo, pregou o Reino de Deus, a alegria do Evangelho.

Mas agora diga-me uma coisa, pois não podemos perder de vista este tema do exorcismo. O que me está a querer dizer é que, quando alguém, por exemplo, diz: eu tenho que chamar aqui um padre habilitado para fazer um exorcismo porque esta pessoa está possuída, porque esta pessoa está o que for, isto não faz sentido. Então, o que se passa com essa pessoa que tem comportamentos estranhos, desajustados, alucinações às vezes, coisas esquisitas? Se não é o diabo, é o quê?

Jesus ajudou as pessoas e é isso que a Igreja e os padres e todos devemos fazer: ajudar as pessoas e ajudá-las com os meios que nós temos.

Foi isso que Jesus pediu, não pediu outra coisa...

Exacto.  Se Deus é amor, ama-nos, gosta de nós, devemos gostar de nós e uns dos outros, é isso, e ajudarmo-nos. De facto, muitas vezes, na altura, atribuía-se ao diabo doenças, depressões, que nós hoje sabemos que são do foro psicológico ou psiquiátrico e, portanto, devemos ajudar as pessoas mandando-as ao médico, mandando-as ao psiquiatra. É isso que é preciso fazer. Não se pode de modo nenhum continuar a atribuir ao diabo aquilo que efectivamente é de outra ordem. Nós hoje, felizmente, sabemos mais da mente, sabemos mais do cérebro...  


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 27 de maio de 2023