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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


138. UM TESTEMUNHO DE GOYA NO CENTRO CULTURAL DE CASCAIS


Em “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, de Jorge de Sena, lê-se:


“(…) Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror, foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha há mais de um século e que por violenta e injusta ofendeu o coração de um pintor chamado Goya, que tinha um coração muito grande, cheio de fúria e de amor”
.


Este excerto, de 1955, e a pintura “Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808”, de 1814, vieram-me à memória de visita à exposição “Goya Testemunho do seu Tempo”, atualmente no CCC, onde indaguei por registos associados ao tema, após me aperceber que entre as várias séries de gravuras, aí expostas, estão “Os Desastres da Guerra”.   


Se na célebre pintura a óleo (não exposta) nacionalismo, patriotismo, crueldade, brutalidade e demais horrores da guerra se combinam, evocando os espanhóis fuzilados depois da revolta contra os franceses (em que a vítima iluminada lembra, pela sua postura e pormenores, a crucificação de Cristo), isso mesmo sobressai nas várias dezenas de gravuras (80) alusivas aos infortúnios da guerra.   


Pelo título da série (“Desastres da Guerra”), antevê-se uma visão crítica, dura e crua, angustiante e penetrante, sem censuras, nem temor, de tons expressivos que mergulham na sabedoria da alma humana, não propagandeando o triunfo do ganhador, nem a hagiografia do vencedor, mas sim a barbaridade e desumanidade do agressor francês para com as gentes espanholas e destas com os invasores, num olhar que tenta ser neutro. Ao exprimir o lado doloroso e implacável dos conflitos bélicos, finda com o preconceito, tido por positivo, de glória, poder e vitória dos vencedores, até então associado à guerra, não esquecendo os vencidos, que são os heróis sofredores primordiais da sua obra artística. Não surpreende, para muitos, que Goya seja tido como o primeiro repórter de guerra, devidamente adaptado aos tempos que vivemos.


Dividida em três partes (representação da guerra, suas consequências e reflexões),  começa a série com o sugestivo e premonitório tema “Tristes pressentimentos do que há-de acontecer”, alusivo a uma situação penosa, derivada da inevitabilidade da guerra, com um homem ajoelhado, olhos no céu e mãos estendidas, rezando e lastimando-se, em farrapos e num lamento consentido, como um Cristo abandonado, a que Goya tenta dar resposta, na última gravura “Ressuscitará?”, numa indecisa e esperançosa interrogação, logo a seguir a “Morreu a Verdade”. Tudo isto num percurso de largas dezenas de gravuras com personagens deformadas, desfiguradas, massacradas, mutiladas, torturadas e mortas pelo conflito, em confrontos de seres esfarrapados e sangrentos, contra uma máquina de matar, perante a qual se quedam impotentes.


Foi em “E não há remédio” e “Não se pode olhar” que encontrei o Goya que agarra mais de perto a icónica pintura “Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808”, em todos elas surgindo as baionetas distinguindo-se, às vezes, só as suas vívidas pontas, incitando-nos a observar e a compreender o seu horror, em que as vítimas, como que iluminadas, mesmo quando mártires, são um apelo à liberdade, compaixão e justiça. Destaco ainda “Dura é a passagem”, “Estragos da guerra”, “Eu vi” e “As camas da morte”.   


Goya retrata “Os Desastres da Guerra” como uma realidade transversal a todos os intervenientes, vencedores e vencidos, embora tenha pertencido a uma geração de artistas e intelectuais espanhóis (tal como em Portugal) que começaram por ver nos ideais da revolução francesa a tão proclamada liberdade, igualdade e fraternidade, sem correspondência, na prática, quando confrontado com os horrores sinistros que viu e o seu legado nos deixou, alertando-o para um mal maior, como que endémico do ser humano.   


Entre os óleos, o conflito bélico está também presente em “Dois de maio de 1808 ou a Carga dos Mamelucos” (1814), a que acrescem pinturas de outros temas, como “Baile de Máscaras”, duas religiosas e uma deliciosa série de cenas de seis jogos infantis: crianças a brincar aos soldados, no baloiço, por castanhas, à procura de ninhos, ao salto ao eixo e às touradas, em brincadeiras alegres, ternas e ruidosas, ora brigando entre si para fartar a fome com castanhas, ou lutando por ninhos, dando tensão plástica e visual às cenas, sem esquecer a condição humilde dos miúdos descalços.


Na série “Os Caprichos”, de 1799, “Os assuntos tratados compõem um retábulo vivo de vícios e defeitos humanos e estão relacionados com a religião, a moralidade, o amor, o casamento, a sedução, o rapto, a violação, a superstição, a bruxaria, os abusos da inquisição, a vaidade e a tagarelice”.   


Satiriza e critica a sociedade do seu tempo, com base na razão ou entrando no campo exagerado do fantástico, conjugando o seu valor artístico, com um sentido didático e de universalidade, testemunhando que os abusos e vícios humanos podem ser pintados, onde se inclui “O sonho da razão produz monstros” (quando não se ouve a razão, tudo se converte em visões). De destacar, ainda, “Bufos”, “Os chichilas”, “Vem aí o papão”, “Ninguém se conhece”, “Amor e morte”, “Belos conselhos”.  


Na série “A Tauromaquia”, há uma pintura alusiva à brutalidade e violência real das touradas, onde surge a única mulher toureira da época em “Coragem varonil da célebre pajuelera na de Saragoça”.


Termina a exposição com as gravuras de “Os Disparates ou Provérbios”, tida como a série “(…) mais misteriosa que criou, chegando a anunciar o surrealismo, que não se desenvolveria senão um século mais tarde. As personagens grotescas e as formas incompreensíveis dos diabos apresentam um panorama fantasmal e supõem uma rutura total com a lógica”. Há nela representações delirantes, fantasiosas, oníricas, sublinhadas pelo carnavalesco, estranho, excêntrico, grotesco, desabrido, absurdo, irracional, pela desrazão, ignorância, ironia, superstição, violência e pelas trevas, uma exploração plástica do subconsciente e dos sonhos, numa mescla de desespero e para além do real, como que prevenindo a vinda do expressionismo e surrealismo. Entre os “Disparates” refira-se o “Feminino”, o “Fúnebre” e o de “Carnaval”. Atente-se em o “Toleirão” e o “Cavalo raptor”.      


Também há o Goya que não integra esta mostra, o dos famosos retratos, de arte profana mais conhecida, como pintor da corte, mas há que felicitar e reconhecer ser louvável que o CCC tenha conseguido reunir uma exposição tão especial e extensa, de assumida qualidade, que nos faz ansiar por iguais ou mais altos voos.   


De todo o modo, Goya continua intemporal, dado que a obra de arte vale por si, mesmo depois de ter aparecido, após a sua morte, a fotografia, pensando muitos pintores da época que seria o fim da pintura. E não foi. A pintura reconfigurou-se e permanece.


12.05.23
Joaquim M. M. Patrício 

A VIDA DOS LIVROS

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    De 19 a 25 de abril de 2021

 

«Desenhos e caricaturas de Amadeo Souza-Cardoso» é uma reunião de obras do célebre autor do modernismo português falecido prematuramente, vítima da Pneumónica. A exposição está patente na Casa-Museu Teixeira Lopes em Gaia e revela uma faceta menos conhecida do artista, fundamental para a compreensão da sua importância no panorama nacional e europeu.

 

Desenhos e caricaturas de Amadeo Souza-Cardoso.jpg

 

UM ARTISTA MULTIFACETADO

Como diz Helena de Freitas, Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918) é dificilmente definível, «não tem um discurso regular, desloca-se com destreza entre vários registos na vida e na obra. Percebe-se na diversidade da pose (entre o provinciano e o cosmopolita), no estilo versátil da escrita, na letra instável, no desconcertante traçado das assinaturas»… Essas características notam-se especialmente na caricatura, onde encontramos o peso da onda modernista e dos caricaturistas como Emmérico Nunes e Christiano Cruz. E pode dizer-se que nessa diversidade, é a procura de vários caminhos que detetamos, numa manifestação evidente onde a busca do movimento está constantemente presente. Daí que na revista «Portugal Futurista», Álvaro de Campos se aproxime nitidamente de Amadeo, na perspetiva da diversidade criativa - «só tem direito a exprimir o que sente em arte, o indivíduo que sente por vários». E Almada Negreiros afirmou, nessa mesma linha de pensamento, que Amadeo «é a primeira descoberta de Portugal na Europa do século XX» - e, maravilhado, deu nota de como partiu de uma identidade próxima para a tornar global - «toda a arte reflete o seu rincão natal. E nunca é o rincão natal o que o pintor retrata. O seu rincão natal são as próprias cores. Foram estas cores que teve para começar a sua mensagem de poeta». Ora, se a obra de Amadeo parte da cor desse rincão, a verdade é que pela caricatura o artista aproxima-se das pessoas, através do humor e da ironia. E assim são as duas metades consideradas essenciais por Baudelaire que se encontram na produção multifacetada do artista, que soube lidar com o tempo – ligando as raízes e o futuro, a herança e a necessária transformação pela arte. Numa célebre entrevista ao jornal «O Dia», Amadeo Souza-Cardoso proclamou, por isso, solenemente: «Eu não sigo escola alguma. As escolas morreram. Nós, os novos, só procuramos a originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista, abstracionista? De tudo um pouco. Mas nada disso forma uma escola». A permanente demanda e a insatisfação são as marcas dominantes ao longo do seu percurso criador. José-Augusto França fala, nesse sentido, da impaciência, da angústia e de uma criação expressiva e colérica, «misturando na sua definição uma grande liberdade plástica e uma grande necessidade de dar força e imagens, violentas ou irrisórias, a uma ideia do próprio mundo que o pintor pressentia para além de uma aldeia que o destino lhe dera». Compreende-se que a caricatura seja um elemento fundamental na criação do artista. É a necessidade de uma leitura do tempo feita através da deformação da imagem e da cultura do picaresco, para haver um melhor entendimento de um mundo em acentuado movimento. Lembremo-nos da fotografia de 1906 em que Amadeo, com os seus amigos de Paris, recria com imagens vivas “Los Borrachos” de Velasquez. É, no fundo, o espírito da caricatura que aí está, num encontro em que estão Emmérico Nunes, por certo o mais prolífico caricaturista da sua geração, com Domingos Rebelo, Manuel Bentes e José Pedro Cruz.

 

UMA SELEÇÃO SIGNIFICATIVA

A Casa-Museu Teixeira Lopes recebe uma seleção de desenhos de Amadeo de Souza-Cardoso, trabalhos raramente expostos, que refletem a importância do desenho e, em particular, da caricatura, no processo de formação e afirmação da identidade artística do grande artista de dimensão europeia. Visto em Portugal com perplexidade, pelo seu espírito, aberto, livre e vanguardista, partiu para Paris no início do século XX, integrando um extraordinário círculo de artistas, e desenvolvendo uma grande cumplicidade artística e vivencial com Amadeo Modigliani, a quem é atribuída a obra “Caryatide”, que faz parte da coleção da Casa-Museu Teixeira Lopes e que será exibida nesta exposição, em diálogo com desenhos de figuras femininas do genial pintor de Amarante. Fruto de uma parceria promovida pelo Município de Gaia com o Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso (de Amarante) e com o Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian, esta mostra surge no contexto de uma estratégia de afirmação cultural, trazendo à cidade de Gaia grandes figuras do mundo das Artes como Cruzeiro Seixas, Paula Rego ou Vieira da Silva. Estudiosa e investigadora da vida e obra de Amadeo, a investigadora Catarina Alfaro assume a curadoria de “Desenhos e Caricaturas de Amadeo de Souza-Cardoso”, ajudando o visitante a compreender o percurso único de um artista para quem o desenho e a caricatura foram meios por excelência para a inovação, experimentação e observação crítica da sociedade, que caracterizou a sua fugaz carreira. Um núcleo de desenhos, onde se incluem originais do catálogo «XX Dessins» estará patente na Sala Aureliano Lima das Galerias Diogo de Macedo, enquanto a Sala Branca será dedicada ao percurso biográfico e à caricatura. Na Sala Negra, terá lugar à projeção do documentário “Amadeo de Souza Cardoso – Le Dernier secret de l’art moderne”, de Christophe Fonseca. À semelhança das anteriores exposições realizadas no mesmo local, “Desenhos e Caricaturas de Amadeo de Souza-Cardoso” permitirá a edição de um Catálogo, que contará com os contributos da curadora e da investigadora Leonor de Oliveira. Durante o período da exposição terão lugar visitas comentadas. Esta invocação de Amadeo insere-se no movimento de crescente valorização da vida e da obra do artista – permitindo na faceta dos desenhos e caricaturas compreender melhor a influência que exerceu nas gerações que se lhe seguiram. Ainda que não tenha colaborado nos dois primeiros números de “Orpheu”, estava prevista a inserção do seu contributo no malogrado terceiro número que nunca viu a luz do dia e que está profundamente ligado ao drama de Mário de Sá-Carneiro. De qualquer modo, deve dizer-se que Amadeo é de direito próprio uma das figuras mais marcantes do nosso primeiro modernismo, hoje com um reconhecimento europeu, pela sua originalidade e audácia criadora.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

23. UMA HISTÓRIA DE ASSOMBRO: PORTUGAL-JAPÃO, SÉCULOS XVI-XX

 

A exposição patente no Palácio da Ajuda, em Lisboa (até 26.03.2019), pretende mostrar as várias fases da relação estabelecida entre Portugal e o Japão há quase 500 anos, marcadas pelo assombro, deslumbramento e maravilhamento inicial, a que se seguiu uma desconfiança e tensão crescente que terminaria com o martírio e expulsão de missionários e comerciantes portugueses, o que não impediu uma influência recíproca entre ambas as culturas.   

 

A existência de um país para lá da China era conhecida, mesmo antes de Marco Polo lhe ter chamado Cipango ou Zipango, ou Tomé Pires o referir como Japun ou Japang, mas nada se sabia quanto à sua localização exata, modo de viver, costumes e população. Foi com a cartografia portuguesa que se soube do seu posicionamento geográfico, com a carta que surgiu no Atlas de Diogo Homem (1550 a 1558?), onde aparecem as três ilhas principais do arquipélago japonês, mais pormenorizado e melhor representado, em 1561, no planisfério de Bartolomeu Velho.

 

Todavia, foi com a Nau do Trato, conhecida no Japão como kurofune ou navio negro, que se concretizou o principal elo de ligação entre os territórios asiáticos de presença portuguesa e a Europa, a bordo da qual era levada carga de bens de várias latitudes, a par de uma tripulação de gentes variadas, despertando o interesse de grandes senhores da ilha de Kyushu, que após contactos junto dos portugueses e missionários, doaram Nagasáqui aos jesuítas em 1580, que além de porto seguro, foi centro de propagação do cristianismo e de comércio com o exterior, tornando-se um dos centros urbanos e mercantis mais cosmopolitas e relevantes do Japão.

 

O assombro começa, assim, com a chegada de um navio de grandes dimensões, até então nunca visto, com profusão de velas, mastros e homens diferentes, de nariz comprido, em que a tripulação salta de mastro em mastro, lembrando macacos, como tão bem são retratados nos biombos nanban. Nanban, diz a exposição, são obras artísticas que representam nanbanjin ou bárbaros do sul. Não foi apenas o aspeto físico, modo de falar e comportamento que assombrou os japoneses, dado que entre as coisas desconhecidas e raras levadas pelos portugueses estava um objeto estranho, uma espécie de cano comprido, a arma de fogo, que de imediato copiaram e utilizaram. Bem como  objetos redondos à frente dos olhos, os óculos, que absorveram. 

 

Tendo como espanto, do lado europeu, o conhecimento e importação do biombo (do japonês byobu), imediatamente absorvido e adaptado pelas elites europeias, servindo para proteção de interiores das correntes de ar e conservação ou resguardo do calor das lareiras, até à divisão de espaços, sem esquecer a sua função decorativa e artística (arte nanban). Também as armaduras, os sabres e os cavalos dos Samurais, na sua beleza e funcionalidade de técnicas sofisticadas usadas, se tornaram objetos de arte apreciados pelos ocidentais, de que é belo testemunho o conjunto exposto de armadura do Samurai, sela, arreios e armadura de cavalo que foi presente diplomático do Japão ao nosso rei D. Luís, aquando do reatamento dos laços quebrados com a expulsão dos missionários, em 1614, e com a saída forçada de todos os portugueses, no final da década de 1630.

 

Encontraram, porém, os portugueses (e europeus que se lhe seguiram) uma sociedade cultural e socialmente forte, com caligrafia e valores próprios, que não abdicava do seu poder, razão pela qual os jesuítas foram perseguidos e expulsos quando foram tidos como um contrapoder, incluindo os cristãos, com inerentes consequências aos portugueses em geral, nomeadamente comerciantes.

 

Em nome da reunificação do Japão, o cristianismo é tido como um contrapeso subversivo, havendo que o destruir, pondo fim aos contactos que os japoneses tivessem com o exterior. Os missionários são expulsos, muitos castigados publicamente, os cristãos do Japão obrigados a renegar a sua fé cristã. As execuções eram tidas como martírios, os executados crucificados ou queimados na fogueira apelidados de mártires, os seus corpos resgatados para relíquias, havendo na exposição reproduções digitalizadas de gravuras e documentos que o atestam. Martírios que não eram diferentes das punições feitas pela inquisição na Europa. O filme Silêncio, de Martin Scorsese, testemunha-o.   

 

A que acresce, em 1903, o estabelecimento da Legação de Portugal em Tóquio, vindo a ter como nota dominante o espanto dos nossos diplomatas com o esforço japonês de modernização à luz das normas civilizacionais ocidentais, espantando-se em simultâneo “(…) com o empenho nipónico em valorizar o passado histórico comum entre Portugal e o Japão. Por todas essas razões, insistem numa política que consolide e aproxime o reencontro”.   

 

Referirei, a propósito, que é normal falar-se de Portugal no Japão, desde logo pelo facto de os portugueses terem sido os primeiros ocidentais europeus a aí chegar e terem introduzido a arma de fogo, num encontro que mudou a história do país, o mesmo não sucedendo entre nós.

 

A exposição, apesar do seu inegável mérito, e falar do Atlas de Fernão Vaz Dourado, de João Rodrigues (jesuíta do primeiro dicionário de português-japonês), São Francisco Xavier, Santo Inácio de Loyla, Sequeira de Sousa, é omissa quanto a portugueses que foram decisivos neste encontro e reencontro. Como os primeiros que pisaram solo japonês (Fernão Mendes Pinto, Francisco Zeimoto, Cristóvão Borralho, a que são também associados os de António da Mota, Diogo Zeimoto e António Peixoto), Luís Frois (autor da História de Japam, tida como fundamental por investigadores portugueses e nipónicos), Luís de Almeida (médico criador de uma escola de cirurgia para alunos japoneses, que no Japão tem um hospital, monumentos e homenagens em  seu nome), Cristóvão Ferreira (que permaneceu no Japão, após abandonar o catolicismo, cuja obra Segredos da Cirurgia Portuguesa foi a base para futuras obras em japonês), Wenceslau de Morais (com uma obra notável sobre o Japão, onde passou a residir em permanência e morreu). Sem esquecer o Museu e o Festival da Espingarda, em Nishinoomote, na ilha de Tanegashima, onde arribaram os primeiros portugueses, homenageando-os. São alguns exemplos do muito que urge valorizar e não negligenciar.                             

 

22.01.2019
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

 

XLIII - “A LÍNGUA PORTUGUESA EM NÓS”

 

Quer funcionando como a primeira pessoa no plural, quer no sentido da medida de navegação ligada ao movimento e à velocidade, quer significando o entrelaçamento de cordas, cordões, fios, linhas ou algo mais, a palavra “nós” possibilita múltiplas interpretações assumindo, pelo menos, um triplo sentido de leituras, como metaforicamente o pretende simbolizar a exposição “A Língua Portuguesa em Nós”, na Central Tejo, em Lisboa, entre 6 e 21 de outubro de 2018.

 

Sem fausto, deslumbramento, pompa e circunstância, esta exposição, de raiz brasileira, pretende informar, historiando ao sabor dos tempos e resumidamente, a história do nosso idioma, aí atualmente quantificado em 270 milhões de falantes. 

 

Na sua simplicidade, economia de espaço e meios, fala-nos da grande viagem, de viajantes, promotores e divulgadores da língua portuguesa, desde as navegações marítimas portuguesas e correspondente expansão pelo mar, até aos dias de hoje, com especial enfoque no contributo do Brasil, ou não fosse ela uma iniciativa brasileira, uma espécie de miniatura ou pequena amostra do Museu de Língua Portuguesa, de São Paulo, em recuperação, após o incêndio de 2015 (em parceria com o Governo do Estado de São Paulo, a Fundação Roberto Marinho, o Instituto da Língua Portuguesa, a Fundação EDP e o Instituto Camões). 

 

Por entre painéis, livros, vídeos, era digital, há uma espécie de puzzle onde sobressaem música, textos, culinária e a Cápsula, tendo esta a particularidade de recolher testemunhos individuais da fala, de cidadãos comuns, convidados a falar e gravar depoimentos em vídeo, expondo a sua relação com o nosso idioma, para integrar uma coleta de falares que farão parte do acervo permanente do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, Brasil.

 

Há a literatura, essa linguagem trabalhada, com frases, textos, referências a Camões, Vieira, Pessoa, Vergílio Ferreira, Sophia, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Drummond, Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues, Oswaldo de Andrade. 

 

E há a música do Brasil que se internacionalizou e tanto universalizou a língua portuguesa, a quem esta tanto deve, vindo-me à memória uma guia italiana, em Veneza, sem ligações lusófonas, que me surpreendeu pelo seu português tão bem falado, cujo porquê indaguei, respondendo-me que o aprendeu graças à música brasileira, que sempre amou, desde Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, João Gilberto, Jorge Ben, Betânia, Gal Costa, Elis Regina, Vinícius de Moraes, entre outros, como Mariza Monte, Dorival Caymmi, Paulinho da Viola, nomes que vamos reconhecendo no decurso da exposição.

 

Fala-se também de Agostinho da Silva, a propósito da canção de Caetano “Minha pátria é minha língua”, dando eco a uma nova cultura que emergiria dos falantes de português no Brasil e na África, que a Praça da Língua intenta difundir e promover.

 

Da culinária e do samba, naquele português com açúcar do Brasil, da fruta e sotaque doce, a que acresce a eterna viola e o violão. 

 

Reconhecendo ser o nosso idioma uma das línguas mais faladas no mundo, dando-lhe o estatuto de língua global, aparecendo entre as seis primeiras (por vezes em quarto ou quinto lugar, consoante as fontes), estranha-se que a população da Guiné Equatorial seja contabilizada para efeitos do número de falantes do português, decerto por arrastamento, dado ser um país membro da CPLP (sendo mera retórica, até agora, ser tido como um país que tem como língua oficial a portuguesa, embora  um pressuposto necessário para integrar a CPLP).

 

Na sua modéstia e contenção de custos, vale a pena a visita, embora merecesse voos mais altos, pelo valor estratégico que a língua portuguesa tem, sem esquecer as ameaças globais que a rodeiam, mesmo a nível interno e lusófono, não obstante uma língua global e a este nível ser enfatizada, em défice com a condição de língua ainda dominada a vários níveis institucionais (e não só), factualidade de que a exposição é omissa.    

 

14.10.2018
Joaquim Miguel de Morgado Patrício 

LIVRO E EXPOSIÇÃO SOBRE ALMADA NEGREIROS

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A Câmara Municipal de Tavira e a Fundação Calouste Gulbenkian apresentam no Museu Municipal - Palácio da Galeria uma exposição subordinada ao tema “Mulheres Modernas Na Obra de José de Almada Negreiros”. Desde logo se saliente o interesse da iniciativa e a qualidade da mostra, que reúne um conjunto relevante de obras de Almada, aqui devidamente expostas, analisadas e documentadas num livro onde, além de estudos e documentação importante e pouco conhecida no conjunto, representa acervo notável de reproduções de numerosas obras exemplarmente documentadas por textos e escritos diversos do próprio artista evocado e homenageado.

 

Na introdução do livro, sobre a obra de Almada, salienta-se um conjunto de textos e estudos introdutórios de Jorge Botelho, Presidente da Câmara Municipal de Tavira, de Isabel Mota, Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, de Jorge Queiroz, Diretor do Museu Municipal de Tavira e de Mariana Pinto dos Santos.

 

E seguem-se centenas de reproduções de obras de Almada Negreiros, devidamente “ilustradas” e enquadradas por textos do próprio Almada.

 

Porque Almada Negreiros é como bem sabemos um extraordinário artista plástico, um excecional dramaturgo, um notabilíssimo escritor: e tudo isto surge devidamente documentado neste vasto e notável livro-catálogo da exposição.

 

Evidentemente, o que mais sobressai na exposição e no livro é a reprodução do conjunto das pinturas e desenhos de Almada. Mas aqui, queremos sublinhar também os textos que convertem o catálogo numa verdadeira antologia da obra escrita de Almada Negreiros.

 

Salientamos então algumas referências a peças, a teatro e a cinema, a espetáculos, feitas pelo próprio Almada Negreiros e reproduzidas no livro:

 

«Deixa-me passar! Tira-te da minha vida! Já viram isto? Sentinela à vista! Toda a vida sentinela à vista! O meu íntimo devassado!» (in “Deseja-se Mulher”)

 

«De uma vez num passeio, o arco-íris foi quadrado até ao fundo dos raios x para lá do cavalo transparente numa continuidade cinematográfica contornando a apologia feminina sagradamente epiléptica em SS de cio todo realce e posse de reflexos.» (in “K4 O Quadrado Azul”).

 

«Uma noite encontrou-a num cine. Ela não devia tê-lo visto. Seria uma boa ocasião de observá-la desprevenida. Ela porém era invariável.» (in “Vera”)

 

«Um dia “La Argentinita” entra em cena pelo mesmo lado que as outras, faz o mesmo que as outras fazem, dá as mesmas voltas, o sapateado, as castanholas, os couplets, e tudo é diferente, saudável, genial. Nós ficamos com a opinião de que a Espanha artista tem estado mal representada até à chegada triunfante de “La Argentinita”» (in DL- 17.02.1925).

 

E muitas mais são as citações, e muitíssimas mais as reproduções que tanto valorizam este livro, notável “catálogo” da exposição do Palácio da Galeria de Tavira.

 

E a Tavira voltaremos.

 

DUARTE IVO CRUZ

 

 

 

 

  

CRÓNICA DA CULTURA

 

Há alguns anos, quando o Luís visitava uma exposição de pintura ou outra que lhe agradasse, carecia de ver logo certos filmes, ler ou reler determinados livros e ir a alguns espetáculos. Depois almoçávamos no restaurante do costume e quase em silêncio. Junto ao momento do café, normalmente o Luís respirava fundo e perguntava: vamos conversar?

 

- Pois é, há uns dias a esta parte, olha, desde a nossa visita à exposição x, que vejo que a vida se tem aproximado dos fundamentos daquilo a que chamaria uma cultura tradicional, uma cultura mole, assente na bancarrota da criação. Quase tudo é pouco mais do que uma forma de entretenimento secundário, ideias, ideais e valores e artes tudo numa dimensão comestível e confinada ao público que se diz de elite pensante. Depois, basta que estes digam que sim que o paladar é agradável, e transborda o êxito e a influência para o conjunto da sociedade. Deste modo chega-lhes também um sentido da vida e uma razão que entendem superior, uma razão até de mecenas e que transcende o mero bem-estar material. Pois é! Nunca se esteve tão desconcertado, sobretudo em relação às razões básicas, sem as quais o norte é a mera sobrevivência. Até a responsabilidade é volúvel e as ideias de progresso enganosas. Que fazer?

 

- Pois não sei, respondi. Sempre pensei que a razão última da cultura era dar uma resposta cabal a esse tipo de perguntas. Ainda assim desconheço se a clonagem não se voltou apenas para os grupúsculos vaidosos dos intelectuais de instantâneo.

 

Luís sei que sabes que os enclaves da vergonha feliz, se instalaram na opulência da ignorância e há muito que se sentem lá bem. Talvez por isso as pessoas virem costas à dureza dos tempos e aos hífens do ato de criar. Não sei, mas não é só por aqui que tudo passa. Os paraísos artificiais das vidas de cada um são tidos por boa marijuana que proporcionam boas e constantes férias do dia-a-dia.

 

- Continuando nos pois, pois, amanhã, e aproveitando estarmos aqui, vamos à exposição de Goya e, se estás de acordo, às seis da tarde não perdemos Mahler. Não podes ficar o resto da semana? É tão grande a solidão que tenho sentido. Desculpa ter dito. Não me quero em lamentos, todavia é muito bom conversarmos. Sabes? lembro-me constantemente de duas coisas: do medo e da felicidade. Custa-me dormir. 

 

Teresa Bracinha Vieira
Agosto 2017