CRÓNICAS PLURICULTURAIS
174. O PODER DAS FÁBULAS
São histórias literárias ou narrativas curtas, em verso ou prosa, que têm maioritariamente como protagonistas animais, que agem como humanos, no falar e comportamentos, sustentando sempre um ensinamento como um preceito moral.
Ilustram estereótipos familiares e sociais que perduram, contrariando a ideia de que o progresso material trará inevitavelmente o progresso moral, dado que as lições morais que lhes estão associadas são intemporais, como o são as suas personagens representando o absentista, o ambicioso, o avarento, o bonzinho, o consolador, o covarde, o embirrante, o fraco, o interesseiro, o invejoso, o intriguista, o mentiroso, o paraquedista, o perfeito, o poderoso, o preguiçoso, o trabalhador, o vaidoso, entre um não mais findar de exemplos.
O que não significa que não haja divergências na sua interpretação, como o demonstra uma das fábulas mais conhecidas, a da cigarra e da formiga.
Segundo reza a história, na era em que os animais falavam, passou a cigarra o estio a cantar, enquanto a formiga, sua vizinha, trabalhava. Chegado o inverno friorento, e sem ter que comer, pediu à formiga que lhe emprestasse comida, com a promessa de pagar o devido e juros antes do verão. A formiga, conhecida por ser poupada, perguntou o que fez durante o verão. Vangloriou-se, a cigarra, de ter cantado dia e noite, ao que a formiga retorquiu: “Cantavas? Pois agora dança!”.
A lição, tida como principal desta fábula, é que há os trabalhadores cumpridores, poupados e previdentes, por um lado, e preguiçosos, absentistas, cultores exclusivos do ócio, lazer e prazer, por outro. Uma espécie de “santos” e “pecadores”.
Teoria a que se pode contrapor, desde logo, ser injusto e redutor ter como ociosos, indolentes ou mandriões cantores, dançarinos, músicos, ou seja, quem vive, pessoal e profissionalmente, a cantar, a dançar e da música, a que se podem associar letristas e poetas, autores de palavras cantadas. Que têm um trabalho digno, como qualquer outro. Um trabalho pro bono e por gosto (muitas vezes), não sobrevivendo só por ele.
Esta defesa do trabalho, só pelo trabalho, pode levar a posturas absurdas, a lembrar a cultura do descarte; descartam-se e desvalorizam-se os jovens, porque ainda inaptos para produzir, os defeituosos, porque não podem laborar, os idosos, porque já não podem rentabilizar.
Uma variedade de leituras que é adaptada e interpretada, em termos culturais, consoante os países e as populações, entre europeus do norte e sul, protestantes e católicos, a começar pela educação escolar.
Perguntando se a formiga deve ajudar a cigarra, é um lugar comum dizer que enquanto as crianças alemãs e nórdicas dizem que não, as portuguesas, espanholas e outras gritam que se deve salvar a cigarra, coitadinha, acreditando uns que a cigarra prevaricou e, por isso, deve ser punida, e outros que, aprendida a lição, trabalhará mais e cantará menos no verão seguinte.
Este epílogo da compaixão latina, por antagonismo ao castigo nórdico, tem muito a ver com o perdão tido como a qualidade mais antiga do catolicismo. Uma licença para pecar, pois quem pecou, se mostrar arrependimento, confessando-se, é absolvido e salvo, só Deus nos podendo julgar. Ter o mesmo prémio para quem pecou e não pecou, mesmo só no plano ético e moral, não é aceitável por todos, mesmo entre cristãos.
Há que alcançar um equilíbrio, podendo as cigarras trabalhar mais e melhor, em menos tempo e com mais lazer, não podendo as formigas arrogar-se de qualquer superioridade em dignidade, moral ou outra, ignorando ou evitando as vizinhas com as suas imprevisíveis consequências, não só por razões humanitárias e de convivência, mas também pela inexequibilidade de poder só haver excessos, para todos, sem défices, para ninguém, rumo a um bem estar não apenas económico, mas igualmente cultural e espiritual.
10.05.24
Joaquim M. M. Patrício