Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


174. O PODER DAS FÁBULAS


São histórias literárias ou narrativas curtas, em verso ou prosa, que têm maioritariamente como protagonistas animais, que agem como humanos, no falar e comportamentos, sustentando sempre um ensinamento como um preceito moral.


Ilustram estereótipos familiares e sociais que perduram, contrariando a ideia de que o progresso material trará inevitavelmente o progresso moral, dado que as lições morais que lhes estão associadas são intemporais, como o são as suas personagens representando o absentista, o ambicioso, o avarento, o bonzinho, o consolador, o covarde, o embirrante, o fraco, o interesseiro, o invejoso, o intriguista, o mentiroso, o paraquedista, o perfeito, o poderoso, o preguiçoso, o trabalhador, o vaidoso, entre um não mais findar de exemplos.   


O que não significa que não haja divergências na sua interpretação, como o demonstra uma das fábulas mais conhecidas, a da cigarra e da formiga.


Segundo reza a história, na era em que os animais falavam, passou a cigarra o estio a cantar, enquanto a formiga, sua vizinha, trabalhava. Chegado o inverno friorento, e sem ter que comer, pediu à formiga que lhe emprestasse comida, com a promessa de pagar o devido e juros antes do verão. A formiga, conhecida por ser poupada, perguntou o que fez durante o verão. Vangloriou-se, a cigarra, de ter cantado dia e noite, ao que a formiga retorquiu: “Cantavas? Pois agora dança!”.     


A lição, tida como principal desta fábula, é que há os trabalhadores cumpridores, poupados e previdentes, por um lado, e preguiçosos, absentistas, cultores exclusivos do ócio, lazer e prazer, por outro. Uma espécie de “santos” e “pecadores”.     


Teoria a que se pode contrapor, desde logo, ser injusto e redutor ter como ociosos, indolentes ou mandriões cantores, dançarinos, músicos, ou seja, quem vive, pessoal e profissionalmente, a cantar, a dançar e da música, a que se podem associar letristas e poetas, autores de palavras cantadas. Que têm um trabalho digno, como qualquer outro. Um trabalho pro bono e por gosto (muitas vezes), não sobrevivendo só por ele. 


Esta defesa do trabalho, só pelo trabalho, pode levar a posturas absurdas, a lembrar a cultura do descarte; descartam-se e desvalorizam-se os jovens, porque ainda inaptos para produzir, os defeituosos, porque não podem laborar, os idosos, porque já não podem rentabilizar.   


Uma variedade de leituras que é adaptada e interpretada, em termos culturais, consoante os países e as populações, entre europeus do norte e sul, protestantes e católicos, a começar pela educação escolar.   


Perguntando se a formiga deve ajudar a cigarra, é um lugar comum dizer que enquanto as crianças alemãs e nórdicas dizem que não, as portuguesas, espanholas e outras gritam que se deve salvar a cigarra, coitadinha, acreditando uns que a cigarra prevaricou e, por isso, deve ser punida, e outros que, aprendida a lição, trabalhará mais e cantará menos no verão seguinte.


Este epílogo da compaixão latina, por antagonismo ao castigo nórdico, tem muito a ver com o perdão tido como a qualidade mais antiga do catolicismo. Uma licença para pecar, pois quem pecou, se mostrar arrependimento, confessando-se, é absolvido e salvo, só Deus nos podendo julgar. Ter o mesmo prémio para quem pecou e não pecou, mesmo só no plano ético e moral, não é aceitável por todos, mesmo entre cristãos.


Há que alcançar um equilíbrio, podendo as cigarras trabalhar mais e melhor, em menos tempo e com mais lazer, não podendo as formigas arrogar-se de qualquer superioridade em dignidade, moral ou outra, ignorando ou evitando as vizinhas com as suas imprevisíveis consequências, não só por razões humanitárias e de convivência, mas também pela inexequibilidade de poder só haver excessos, para todos, sem défices, para ninguém, rumo a um bem estar não apenas económico, mas igualmente cultural e espiritual.


10.05.24
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

 

 

13. AS FORMIGAS E O GAFANHOTO E A CIGARRA E A FORMIGA

 

 

No tempo em que os animais falavam, passou o gafanhoto todo o verão compondo e tocando música, enquanto uma família de formigas trabalhava. Quase a chegar o inverno, e com ele o frio, o faminto gafanhoto abeirou-se delas, com um violino debaixo do braço, pedindo comida, ao que aquelas, com desconfiança, perguntaram o que fez durante o verão, respondendo que fez música, ao que as formigas retorquiram: “Todo o tempo a fazer música? Muito bem, agora dança!” 

 

Esta fábula do grego Esopo, foi readaptada e recontada pelo francês Jean de La Fontaine, em a Cigarra e a Formiga, contando a história de uma cigarra que cantou durante o verão, enquanto a formiga trabalhava. Chegado o inverno, a cigarra, não tendo que comer, pediu à formiga que lhe emprestasse comida, com a promessa de lhe pagar com juros antes de agosto. A formiga, tida por ser poupada e não emprestar nada a ninguém indagou, desconfiada, o que fez a cigarra no verão. Respondeu esta que cantava noite e dia, ao que a formiga replicou: “Cantavas? Pois dança agora!” 

 

Se a lição dominante destas fábulas é a de que há tempo para o trabalho e para a diversão, que devemos ser previdentes e poupados, que para os cultores da preguiça há sempre lazer, também podem ser reinterpretadas no sentido de que há nelas uma exaltação extrema ao trabalhar por trabalhar, à acumulação de capital, riqueza e bens materiais, à avareza usurária e desumana da formiga, à descredibilização e marginalização dos cantores, músicos e poetas, injustamente equiparados a pessoas absentistas e preguiçosas.

 

Estas fábulas, na sua multiplicidade de interpretações e leituras, também são adaptadas, em termos culturais, à invocada diferença de atitude mental e cultural entre povos e países, por exemplo, entre os do norte e do sul da Europa.

 

É usual dizer-se que se perguntarem aos portugueses, espanhóis, italianos e gregos, entre outros povos mediterrânicos e do sul da Europa, se as formigas devem ajudar o gafanhoto e a cigarra ou deixá-los por sua conta e risco, que eles, em unanimidade, defendem que as formigas os devem ajudar, coitadinhos, enquanto os alemães, holandeses, dinamarqueses, finlandeses e outros povos nórdicos entendem, em uníssono, que devem morrer de frio e fome, sem compaixão, tendo o que merecem, dada a sua malandrice.

 

Uns acreditam que o gafanhoto e a cigarra aprenderam a lição e no próximo verão não voltarão a reincidir, outros que prevaricaram e devem ser punidos. 

 

Só assim se fará justiça, tomando como referência o exemplo da formiga, a ser seguido por todos os animais, incluindo o ser humano. 

 

Sucede que compor e tocar música, escrever poemas ou letras para canções, cantar e dançar é um trabalho digno, exigente e gratificante para quem o faz e dele vive, à semelhança de qualquer outro, que compensa e gratifica a vida de todos nós, sendo redutor e simplista associá-lo a mera diversão.

 

O que não significa que os gafanhotos e cigarras absentistas não tenham de começar a trabalhar, ou a trabalhar mais e melhor, e que as formigas, na sua arrogante superioridade, não necessitem de gafanhotos e cigarras, evitando o seu desaparecimento e inevitáveis consequências, humanizando-se e tendo sempre presente a nossa precariedade mundana, que o que aparenta ser superior hoje pode não o ser ou não o é em permanência, em conjugação com  a inviabilidade universal de poder haver só excessos orçamentais, para todos, sem défices, para ninguém, e a necessidade humana de saber viver entre o prevenir amealhando e a compensação cultural e espiritual, mesmo que a título de lazer, sob pena de “dançarmos” todos!  

 

24.07.2018
Joaquim Miguel de Morgado Patrício