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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO

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XXIII. COMÉDIA DE ENGANOS

 

Já encontrámos Almeida Garrett nas suas geniais “Viagens”, agora invocamos o dramaturgo na Comédia “Falar Verdade a Mentir”, pequena peça em que as personagens são confrontadas com uma sucessão de mentiras que geram, entre momentos de gozo, as maiores confusões. É o exemplo da comédia de enganos, conhecida desde a dramaturgia mais antiga. Aqui os fantasmas são reais. Duarte é noivo de Amália e tem o hábito doentio e persistente de mentir. Amália é filha do Senhor Brás Ferreira, conceituado ricaço, que não suporta mentiras! Se sonha que o futuro genro diz a mais pequena mentira, o veredicto é claro: o casamento já não pode realizar-se. Entretanto, Joaquina, criada de Amália, namora o José Félix. E os dois fazem os impossíveis para que as mentiras constantes de Duarte, se transformem, como que por encanto, em autênticas verdades! As mentiras fervem, o ricaço Brás Ferreira hesita, mas tudo é um fascinante jogo de aparentes enganos no "Falar Verdade a Mentir". O episódio do Milord Coockimbroock, representado por José Félix, é hilariante. E apesar de caricatura, é convincente. E quando a mentira parece estar para ser desmascarada, tudo se revela como se fosse verdade transparente, apesar de um discurso macarrónico supostamente em inglês. Mas não é preciso apurar muito, Coockimbroock parece convincente e ninguém sabe muito.

 

E Joaquina revela a chave do enigma. Tudo está montado para que Duarte não possa mentir, mesmo querendo. «Pobre rapaz! ficou como pateta! Se ele não está acostumado a isto. Condenado a falar verdade vinte e quatro horas a fio!... Também olhe que nos dá um trabalho! porque mente com um desembaraço e sem a menor consideração... Já se tinha esquecido da peta do almoço. Felizmente que nós estamos prevenidos, e graças ao bolsinho de minha ama e à vizinhança do Manuel Espanhol, em poucos minutos se fez da peta verdade... E José Félix! Não verão o meco sentado à mesa com meus amos como se fosse gente, o pedaço de lacaio!... Mas deixem estar que o tratante tem um ar, sabe tomar uns modos, que quem o não conhecer!... Em que ele se deita a perder decerto, é que aquilo é um comilão... O que lhe vale é fazer de inglês... não se repara. – Agora que mais falta? Vejamos. A tal visita de agradecimento ao general Lemos: essa não se pode evitar. Só se... É verdade; o general Lemos que venha cá... como têm vindo os outros. Vou avisar José Félix que se avie de almoçar e nos represente mais esse figurão. Não lhe há de custar muito... é seu amo. – Ai! que é isto, que quer este senhor?». E tudo se encaminha para o desejo de todos, contra as inadvertências do Duarte Guedes, o que leva o General a afirmar: «Não há dúvida, Senhor Brás Ferreira; é preciso consentir neste casamento. Já não tem mentiras de que o acusar». Joaquina e José Félix ufanam-se e apresentam uma eficácia de cem por cento. E Duarte reconhece a lição severa e benfazeja: «Protesto-lhe que hoje foi o último dia da minha vida que me deixei cair neste maldito vício... E nem eu sei como foi; queria-me defender... vinham umas atrás das outras... por fim... não sei... Mas acabou-se: não torno mais a mentir; custa muito, dá muito trabalho. Vi-me em ânsias! Juro que me hei de emendar... já estou emendado. – José Félix, nunca me hei de esquecer da lição que me deste, e prometo pagar-ta. – Deveras? Dando-lhe uma bolsa – E eu pago-ta já. – Melhor ainda. (apalpando a bolsa) Isto sim que são verdades puras... e não deixam mentir ninguém».

 

Agostinho de Morais

 

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