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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

EVOCAÇÃO DE FERNANDO AMADO NOS 120 ANOS DO SEU NASCIMENTO (II)

 

No artigo anterior, assinalamos os 120 anos do nascimento de Fernando Amado, tendo sobretudo em vista a sua participação, intervenção e criatividade nas áreas ligadas ao teatro, onde marcou sobremaneira a atividade e a cultura como dramaturgo, como doutrinador e como docente. Trata-se efetivamente de um notável referencial nesse e em tantos mais aspetos da arte, da cultura e da vida pública portuguesa, numa abrangência de ação e doutrinação que merece sempre destaque.

 

É autor de cerca de 30 peças de teatro, às quais se acrescentará a vasta bibliografia de expressão cultural, a intervenção concreta na produção de espetáculos nos domínios da arte e da teoria da literatura dramática. E nesse aspeto globalizante, será oportuno destacar referencias doutrinárias que se lhe ficaram devendo, em escritos dispersos mas que seria oportuno novamente publicar.

 

 Destacamos aqui algumas dessas intervenções doutrinárias, que coligimos em textos diversos, numa evocação da docência de Fernando Amado, que tanto nos beneficiou, reforçada por relações pessoais-familiares e de ensino e cultura, que dele recebemos e que muito nos apraz recordar.

 

Citamos então aspetos da doutrina de Fernando Amado sobre teatro, recolhidas a partir de peças e de textos de análise que, ao longo de dezenas de anos, foi produzindo e publicando.

 

 Assim, escreveu Fernando Amado:

 

“Todo o mundo cuida de saber o que é teatro”.

 

“Desde que esteja em causa uma peça de teatro o leigo em coisas de arte cauteloso, sente-se agora como peixe dentro de água e logo afina conforme a impressão”.

 

“O teatro nasceu do povo, no meio de festas e angústia. Coisa que o povo não esquece. E tão profundas são as afinidades que não pode um palco ser construído – um verdadeiro palco, sem que o público apareça defronte”.

 

Ou num texto publicado na revista Cidade Nova em 1951 intitulado “Diálogo entre Almada Negreiros e Fernando Amado”: “Diante de uma arte moderna, deveras representativa, o público em geral não se contenta em exclamar que não percebe, mas ainda garante, cheio de comunicação, que é impossível perceber”.

 

E mais, em diversos textos:

 

“O teatro é plástico”.  “Enquanto mais se convive com os clássicos mais se entende que o Teatro é ação” pois “para haver teatro, em suma, é preciso que alguma coisa aconteça”...

 

E poderíamos prolongar este caudal de citações: pois Fernando Amado é efetivamente um grande nome e uma grande obra, criativa e doutrinária, do teatro português.   

 

DUARTE IVO CRUZ

EVOCAÇÃO DE FERNANDO AMADO NOS 120 ANOS DO SEU NASCIMENTO (I)

Fernando Amado e Almada Negreiros.jpg

 

Justifica-se esta referência a Fernando Amado, como figura referencial do moderno teatro português, e não só como docente e doutrinador e investigador: pois, para além da criatividade dramatúrgica em si mesma, importa evocar a sua ação docente no então Conservatório Nacional, mas também, e sobretudo, a doutrinação estética que, ao longo de décadas, marcou a própria atividade e criatividade do teatro português, na pluralidade de dramaturgia, direção, doutrinação, análise crítica, pedagogia.

 

Razões de sobra para estas notas evocativas: pois, decorrido pouco mais de meio século sobre a sua morte, em 1968, nem por isso a obra dramatúrgica, a doutrina estética e a atividade docente e doutrinária perderam atualidade. O mesmo se não dirá, infelizmente, da sua projeção, o que documenta a fragilidade, digamos assim e dizemos bem, da cultura teatral portuguesa.

 

E nesse aspeto, mais do que a dramaturgia em si, aliás de qualidade e modernidade indiscutíveis, haverá que salientar sobretudo a doutrinação que, a partir do teatro, Fernando Amado enunciou. Num sentido que concilia a exigência estética, a doutrinação histórica e ideológica e a qualidade de espetáculo. Tudo isto, insista-se, num sentido de modernidade que se concilia com a tradição cultural do teatro português. E todos estes fatores numa globalidade que marcaram a época e até hoje são notáveis na modernidade.

 

Aliás, não por acaso a obra de Fernando Amado foi marcada pela influência direta do seu grande amigo Almada Negreiros. Mas diria que, no que respeita ao teatro, a inversa também é verdadeira: e de tal forma que Almada presta-lhe uma sentida homenagem, ao referir que Fernando Amado “pôs em cena duas peças minhas: sinto-me pago em artista e em amigo”.

 

Importa referir que Fernando Amado criou toda uma vasta dramaturgia conciliadora da tradição sobretudo simbolista com o sentido da modernidade estética e ideológica, digamos assim. De tal forma que a alternância entre o modernismo estético e o simbolismo é constante. Refira-se por exemplo a influência futurista de peças como “O Homem Metal”, escrita no início dos anos 20, ou o simbolismo de “O Pescador”, escrito um pouco pela mesma época, mas sobretudo a renovação que já reflete em “O Retrato de César" (1935) onde se concilia a reconstituição histórica com uma visão humanística que marca um sentido de modernidade.

 

Aliás, o teatro de Fernando Amado assume um temário contemporâneo: e na expressão, referimos evidentemente a época mas o estilo e sobretudo o temário. E esse até hoje não envelheceu, mesmo quando assume temas e personagens historicistas.

 

“A Caixa de Pandora” (1948) peça determinante desta dramaturgia, é nesse aspeto exemplar. Aliás, pode citar-se, nesse aspeto, “O Casamento das Musas” (1948), escrito e representado por encomenda expressa do Teatro Estúdio do Salitre e estreado com o “Antes de Começar” de Almada. Era a verdadeira modernidade da época e, no que respeita à qualidade dos textos, ainda hoje, como veremos em próximo artigo.

 

E acrescentaremos referência a mais peças de Fernando Amado, algumas delas inéditas, outras representadas, mas poucas publicadas. Citamos designadamente “Os Segredos de Polichinelo”, “O Livro”, “O Aldrabão” e mais dezenas de peças, além de estudos e escritos sobre teatro.

 

E que peças? Onde foram representadas? Que teatros Fernando Amado dirigiu?

 

Veremos em próximo artigo.

 

DUARTE IVO CRUZ

TEMPO DE FÉRIAS…


Fernando Amado amigo de sempre

 

FERNANDO AMADO AMIGO DE SEMPRE…

 

Aproveitando as férias, temos invocado referências fundamentais dos nossos setenta anos de cultura e sinais da criatividade portuguesa e do diálogo entre a terra, o mar e as gentes.

Os ecos dos nossos amigos têm sido fantásticos.

Helena Vaz da Silva, Sophia de Mello Breyner e Maria Keil tiveram uma recetividade extraordinária e um número muito assinalável de partilhas.
Aguardamos agora, com expectativa, as respostas ao concurso de Verão e sabemos que tem havido intensas pesquisas e conversas para assegurar a candidatura aos aliciantes prémios previstos…

Hoje partilhamos uma fotografia que nos enternece.
Fernando Amado rodeado de Isabel Ruth, Manuela de Freitas e Glória de Matos.
E não resistimos à tentação de lembrar a criatividade que Fernando Amado punha nas suas criações, a ponto de um dia Almada ter protestado por discordar de uma interpretação do encenador.
Perante a insistência crítica de Almada Negreiros, autor da peça, Amado foi perentório: «O Senhor aqui está em silêncio, porque disto percebo eu!»…
E ficou-se…  


CNC

SENTIDO DE ESPETACULO NA PINTURA E DESENHO DE ALMADA


Acrobatas de Almada Negreiros
"Acrobatas" de Almada Negreiros, 1947


A exposição do acervo de obras de Almada Negreiros no Museu do Chiado - Museu de Arte Contemporânea, apresentada por Paulo Henriques, diretor do Museu, para além da qualidade e mestria das obras em si, contem como que uma dimensão "de espetáculo" que é inerente a toda a obra de Almada, seja ela expressa nos formidáveis frescos e pinturas que dominam os edifícios e as cidades, seja em desenhos e quadros como aqueles que o MAC-MC agora expõe.

São oito obras de uma extrema modernidade. Tal como refere Paulo Henriques, "é uma pintura de síntese do seu (de Almada) pensamento artístico: o desenho omnipresente, figuras neo-cubistas num interior sombreado, alongadas formas expressionistas recortadas em texturas gráficas numa atmosfera de sombras e luz". Curiosamente ou talvez não, das oito obras, três relacionam-se com expressões diretas ou indiretas de espetáculo: "Arlequim com Mulher", "Bailarina Descansando de Pé", "Acrobatas".

Ora, sabemos bem como a dimensão do espetáculo a nível de personagens e ambiente surge recorrentemente na obra de Almada, e tanto na expressão plástica como na expressão poético-literária e muito particularmente na expressão teatral: e não é só no óbvio "Pierrot e Arlequim - personagens de teatro", mas também na Boneca e no Boneco, bonifrates que assumem a vida em "Antes de Começar", nas coreografias do "Deseja-se Mulher", na intervenção insólita do "Árbitro de futebol" na revolução de "S.O.S.", na companhia de teatro de "O Público em Cena"…

E surge também nos numerosíssimos textos de análise estética do espetáculo e do fenómenos teatral, que tenho aqui referido e de que citarei agora, como obra - síntese de pensamento estético, "O Pintor no Teatro - À Memória do muito querido companheiro Frederico Garcia Lorca, por excelência a vocação de teatro em nossos dias", onde se lê: "Não conheço pintor, vivo ou morto, que na palavra Teatro não fosse como em coisa sua: o Teatro é nosso, dos pintores, o escaparate de todas as artes".

São textos e exemplos que se generalizam a toda a obra de Almada. Não me canso de lembrar a interpretação admirável do vicentino "Todo-o-Mundo e Ninguém", em postura rigorosamente igual na Faculdade de Letras de Lisboa. E já agora, ainda cito, aqui no contraste, a ambiguidade entre o crime e o sonho da peça "Aquela Noite".

Afinal, todo o teatro de Almada é  como o teatro deve ser: eminentemente "espetacular", isto é, texto realizado em espetáculo, logo necessariamente plástico na sua dinâmica e no seu movimento… mesmo quando as pinturas por definição não se movem!

 

DUARTE IVO CRUZ

FERNANDO AMADO DISCORRE SOBRE GARRETT


Almeida Garrett (1799-1854)
Almeida Garrett (1799-1854)


Em dezembro de 1969 assinalou-se o primeiro aniversário da morte de Fernando Amado, ocorrida exatamente em 23 de dezembro do ano anterior. Já aqui referi as ligações de família que me relacionam com Fernando Amado, e o interesse e proveito intelectual e cultural de que beneficiei durante os anos em que, a par de uma sofrida licenciatura em Direito, frequentava, como "aluno ouvinte" como então se dizia, as aulas de Estética Teatral e de Encenação de Fernando Amado no Conservatório Nacional. Não é demais novamente recordar que muito do que sei de teatro a ele devo. No primeiro aniversário da sua morte, foi-me pedido um texto alusivo à vida e obra, para uma sessão evocativa. Relendo-o hoje, encontro uma longa análise de Fernando Amado sobre o teatro e a obra de Garrett, que é interessante aqui transcrever em parte. Até porque me faz recordar a qualidade ímpar da sua docência.


Diz então Fernando Amado, e transcrevi nessa evocação, que "Garrett, o príncipe dos nossos dramaturgos, teve singular intuição do que havia a esperar do teatro. Pressentiu-lhe a origem sagrada; quis ressuscitar o coro helénico em jeito português e, pela mão de Gil Vicente, renovar o auto medieval; compôs três peças felizes sobre temas eternos da nacionalidade. Maior gratidão nos deve merecer ainda o que planeou sem ter feito o bastante para o ilibar das culpas que teria tido no posterior desvairo romântico"…

Havemos de voltar a estes textos de análise histórica de Fernando Amado. Mas para já, interessa-me salientar a justeza do enquadramento histórico sobre o teatro português. Na verdade, a Garrett se deve a renovação romântica do teatro e a sua modernização nos cânones da época e só ele a fez com verdadeira qualidade, pois os outros dois iniciadores do nosso romantismo - Herculano e Castilho - ficam muito aquém no que toca ao teatro. E o que se seguiu já foi ultrarromantismo.


Garrett é de facto um poderoso iniciador, e não só no plano dramatúrgico: a reforma do teatro encomendada por Passos Manoel e consagrada na Portaria de 15 de setembro de 1836 criou uma estrutura que ainda hoje subsiste: Inspeção Geral de Teatro e Espetáculos, Teatro Nacional, Conservatório de Arte Dramática, Companhia Nacional de teatro, concursos de peças, proteção de direitos de autor, política de subsídios.

 
E vale e pena, porque é retintamente garrettiano, recordar o relatório deste texto, dirigido diretamente a D. Maria II: "Valetudinário e achacado de corpo e espírito que ambos quebrei ao serviço de Vossa Majestade e pela santíssima causa da liberdade da minha Pátria,"…

Fernando Amado não cita este texto, mas o que diz de Garrett encaixa-se nele com precisão: "também a Garrett pertence o alacre apelo ao dramaturgo. Cuidado que em dramaturgo há demiurgo." E mais: "ele, dramaturgo, é instrumento e condição do diálogo. Atue pois como se estivesse simultaneamente no palco e na plateia, sincero, por amor dos homens, discreto por amor da arte"… Notável lição de um grande professor de teatro, de um grande doutrinador que foi também um grande dramaturgo - e referimo-nos evidentemente, a Fernando Amado.

 

DUARTE IVO CRUZ

FERNANDO AMADO NAS ORIGENS DO CNC

Fernando Amado
Isabel Ruth, Fernando Amado, Manuela de Freitas e Glória de Matos | CNC, 1960


Já aqui temos referido a participação de Fernando Amado em ações e iniciativas do Centro Nacional de Cultura - e isto, na pluralidade de interesses e áreas de intervenção cultural e cívica que o Centro, por um lado, e Fernando Amado, por outro, ao longo de dezenas de anos desenvolveram e desempenharam em comum.


Ora, na edição das Peças de Teatro (NCM - 2000) organizada por Teresa Amado e Vítor Silva Tavares, encontramos um levantamento exaustivo da intervenção de Fernando Amado como dramaturgo, encenador e animador teatral: e verificamos como grande parte dessa ação notável passa pelo CNC.

E isto, desde muito concretamente 1946. Nesse ano, em 16 de junho, Fernando Amado estreia-se como autor-encenador, produzindo no velho Teatro do Ginásio até 30 de maio de 1947, seis espetáculos no âmbito do então recém-criado (1945) CNC: "O Meu Amigo Barroso", "Música na Igreja", "O Ladrão", "Novo Mundo" e "A Caixa de Pandora". A seu tempo iremos analisá-las.

E é interessante recordar alguns dos nomes que colaboraram nessas produções, e desde logo Carlos Botelho, António Dacosta e António Lino como cenógrafos e figurinistas, mas também, como jovens e insólitos atores, alem do próprio Fernando Amado, Maria da Soledade Freire de Oliveira, Margarida Perestrelo Castro, Ricardina Alberty, Rui Cinatti, Afonso Botelho, Vasco Futcher Pereira, Gastão da Cunha Ferreira, Flórido Vasconcelos, Martim Lencastre Cabral, Maria José Meneres de Castro… Ora, destes nomes, a maioria marcou, e muito, a cultura e a vida pública portuguesa até hoje!


Mas agora refira-se que a colaboração dramatúrgica de Fernando Amado com o CNC recomeça, ao nível da produção de espetáculos, em 1960, com cinco produções: "Antes de Começar", do próprio autor-encenador, "O Contrato" de Marinetti, "Passadismo" de Stinelli, "Génio e Cultura" de Boccioni, "O Marinheiro" de Fernando Pessoa (encenado também no Brasil em 1962) e, mais tarde, "O Morgado de Fafe em Lisboa", de Camilo Castelo Branco.

E a partir de 1963 essa colaboração com o CNC reforça-se e estabiliza com a criação da Casa da Comédia e a produção de sucessivos espetáculos, quase todos de autores portugueses (Gil Vicente, Pascoaes, o próprio Fernando Amado, e ainda Soror Juana  Ines de La Cruz / Manuel Bandeira ou Jean Cocteau) mas sobretudo Almada, com a reposição do "Antes de Começar" e sobretudo, insista-se na expressão, com a revelação do "Deseja-se Mulher" (1963), dirigido por Fernando Amado. Já aqui falamos dessa grande peça.

DUARTE IVO CRUZ