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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

“O Cavaleiro Andante” publicou em 1957 e 1958, da autoria de Fernando Bento, a série “Emílio e os Detectives”, com base no célebre livro homónimo de Emil Erich Kästner (Dresden, 1899 – Munique , 1974). Hoje, é extraordinário, ver neste exemplo como a escola do “Cavaleiro Andante” foi um exemplo vivo de pedagogia da liberdade. Kästner foi escritor, jornalista e poeta que desenvolveu a sua atividade durante a República de Weimar. Com o início do regime nazi, foi um dos poucos intelectuais proeminentes contrários à situação que permaneceram na Alemanha, mas as suas obras fizeram parte da lista de livros queimados na noite de cristal e considerados como antinacionais. Apesar de várias represálias, pôde trabalhar sob um pseudônimo como jornalista e autor de diversos filmes de comédia. Com o fim da Guerra, em 1945, Kästner regressou à escrita com o seu próprio nome, tendo sido eleito em 1951 presidente do PEN Clube da RFA. Tomando posição contra o rearmamento, solidarizou-se com os movimentos pacifistas e militou na causa antinuclear.  Foi assim um homem de cultura devotado às causas da liberdade e dos direitos humanos. A sua popularidade deveu-se principalmente aos seus livros infantojuvenis, como “Emílio e os Detectives” (1929), “A Sala de Aula Voadora (1933) e “Cachos e Tranças” (1949), além de um vasto conjunto de poemas, epigramas e aforismos. Uma de suas mais conhecidas coletâneas de poesia, foi publicada pela primeira vez em 1936 pela editora suíça Atrium sob o título de “A Pequena Farmácia do Dr. Erich Kästner”. Em 15 de outubro de 1929, foi lançado o livro “Emílio e os Detectives”, por sugestão de Emil Jacobsohn. O livro constituiu um enorme sucesso, teve mais de dois milhões de cópias vendidas só na Alemanha e até hoje já foi traduzido para cinquenta e nove idiomas. O romance decorre na cosmopolita cidade de Berlim de entre guerras, constituindo um verdadeiro roteiro e uma homenagem aos berlinenses, aos seus monumentos e estrutura urbana e sobretudo aos cidadãos. O espírito de aventura e a alegria dos seus protagonistas contrasta com o clima depressivo e bélico que se desenvolvia e que teve os efeitos dramáticos conhecidos. Não podemos ainda esquecer a qualidade das ilustrações de Walter Trier, que foi um ingrediente extraordinário para tornar este livro como referencial, não só na Alemanha, mas na Europa. A versão cinematográfica de “Emílio e os Detectives”, dirigida por Gerard Lamprecht com Billy Wilder, foi um grande sucesso de 1931. No entanto Kästner considerou que o filme não era fiel ao espírito do livro… De qualquer modo, pode dizer-se, ao menos duas coisas, é verdade que a versão cinematográfica não dispensa a leitura do livro, para a compreensão do seu verdadeiro espírito, há, de facto, aspetos que divergem do espírito do autor; mas, por outro lado, o filme foi grandemente responsável para multiplicar o sucesso do livro, atraindo muitos leitores, que assim descobriram o caráter único e inovador do romance e do seu fantástico espírito. E é neste ponto que merece referência especial a versão de Banda Desenhada de Fernando Bento realizada para o “Cavaleiro Andante”. Com “Beau Geste”, estamos perante uma das obras-primas daquele que foi certamente, ao lado de Eduardo Teixeira Coelho, um dos maiores artistas portugueses da Histórias de Quadradinhos. Seguindo de perto o romance de Kästner, procurando ser-lhe fiel, apresenta um traço inconfundível e uma narrativa muito viva e original, que não só atrai para a leitura da obra que lhe serve de base, como demonstra, com clareza, a importância do espírito de liberdade e aventura que contempla, em contraste com a lógica belicista e não-democrática. Dir-se-á, pois, que “Emílio e os Detectives” prenuncia o melhor espírito do que viria a ser a Alemanha federal – e hoje constitui uma homenagem à cidade de Berim, que se tornou símbolo da cultura de liberdade europeia!

Agostinho de Morais

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

MEMÓRIA DE FERNANDO BENTO

 

A edição que hoje vos apresento é preciosa. Trata-se do número do Natal de 1954 do “Cavaleiro Andante”. Representa um vitral da autoria de Fernando Bento (1910-1996), o grande ilustrador da revista dirigida por Adolfo Simões Müller. Nota-se o traço inconfundível do autor. O número especial vendia-se em duas versões: normal e encadernado, sendo que um custava 10 escudos e o outro 16. Em primeiro plano, fora da representação, está o Cavaleiro Andante (símbolo da revista) ajoelhado. No quadro central está a Sagrada Família, no painel da esquerda estão os três magos e do lado direito, figuras exóticas de pastores com feições tipicamente orientais. E assim lembramo-nos das ilustrações de Bento sobre narrativas em terras distantes. Trata-se de um presépio que procura representar o momento histórico da Natividade de Jesus, e não, como normalmente, a encenação recriada por S. Francisco de Assis, que corresponde normalmente ao que nos é familiar. Se nos lembrarmos dos presépios tradicionais portugueses, como os de Machado de Castro e da sua oficina, vemos os pastores vestidos com roupas tradicionais, bem portuguesas. Não é este o caso. O desenhador quis dar um toque de originalidade e de exotismo ao seu desenho. De facto, a originalidade do traço de Fernando Bento associa-se muitas vezes a figuras com traços marcados. A cada passo, notamos no desenho inconfundível do autor uma preocupação de movimento, bem evidenciada em obras-primas, como “Beau Geste” (1952) e “Emílio e os Detetives” (1957-58). Como afirma João Paulo Paiva Boléo: “Fernando Bento é um dos maiores autores, um dos maiores desenhadores da BD portuguesa. Fernando Bento marcou o imaginário de milhares de leitores, fê-los sonhar, fê-los descobrir mundos ‘da Terra à Lua’, histórias de emoção e de coragem… Em síntese, abriu-lhes (abriu-nos), em simultâneo, o mundo da aventura e o mundo da literatura. Deu-nos a magia de uma arte de corpo inteiro, que vive da sugestão da ação e – como repetidamente se tem sublinhado – do preenchimento do espaço branco entre imagens, da elipse, de uma forma original de contar histórias através da utilização singular, sugestiva e sintética do desenho e do texto, e abriu-nos o caminho para outra arte, mais sugestiva ainda, mas convocadora ainda da imaginação, a literatura, assente na maior e mais distintiva criação da inteligência humana – a palavra”. Esta apreciação constitui uma análise rigorosa das características de Fernando Bento. Com efeito, a aventura e a literatura encontram-se intimamente relacionadas. E o exemplo que hoje aqui trazemos, permite-nos compreender que cada figura representada pode muito bem estar associada a uma aventura literária: a viagem dos três reis magos, a presença dos jovens pais Maria e José, com o filho recém-nascido e a presença misteriosa dos pastores, que se assemelham a berberes do deserto… No fundo, é a magia da Banda Desenhada que aqui está toda – a ilustração, o movimento, a aventura, a literatura, o enredo, a palavra… E lembro um poema de Miguel Torga para ilustrar este vitral, que nos lembra um tempo antigo, um autor profícuo e um artista, o desenhador Fernando Bento, merece muito ser lembrado   

 

Foi tudo tão pontual
Que fiquei maravilhado.
Caiu neve no telhado
E juntou-se o mesmo gado
No curral.

Nem as palhas da pobreza
Faltaram na manjedoira!
Palhas babadas da toira
Que ruminava a grandeza
Do milagre pressentido.
Os bichos e a natureza
No palco já conhecido.

Mas, afinal, o cenário
Não bastou.
Fiado no calendário,
O homem nem perguntou
Se Deus era necessário...
E Deus não representou.

 

Agostinho de Morais