A VIDA DOS LIVROS
De 1 a 7 de julho de 2024
Fernando Henrique Cardoso foi há 30 anos o autor do Plano Real, no Brasil, que constitui um exemplo notável de reforma político-económica, que merece celebração.
“A política não é a arte do possível. É a arte de tornar possível o necessário”. Quando Fernando Henrique Cardoso o afirmou tinha especial autoridade para o fazer por provas dadas no moderno reformismo. O Plano Real foi um exemplo extraordinário, que completa no dia 1 de julho, 30 anos. E é ponto consensual entre os economistas que a nova moeda criada em 1994 correspondeu a uma estratégia de sucesso para conter a hiperinflação e estabilizar a economia, tendo desempenhado um papel fundamental na criação de um ambiente de previsibilidade e de confiança, abrindo campo a medidas de justiça social.
Em 1993 vivia-se no Brasil uma conjuntura de dificuldade extrema em que os rendimentos do cidadão comum eram afetados por uma inflação galopante (5 mil % ano) e por uma perturbadora incerteza económica, com a multiplicação de movimentos grevistas e uma forte penalização dos trabalhadores mais pobres, mercê de uma espiral inflacionista incontrolável. Protegiam-se melhor os bancos, os grandes investidores, as empresas capazes de impor seus preços e o próprio Estado, com as suas receitas dependentes do índice de preços, contando com a inflação para ajustar o valor real das despesas. Aumentavam, porém, a pobreza e as desigualdades pelo descontrolo monetário. Fernando Henrique Cardoso conta que nesse contexto recebeu, em Nova Iorque, uma chamada telefónica do presidente Itamar Franco a perguntar-lhe se aceitaria trocar o Ministério das Relações Exteriores, cuja função então exercia, pelo espinhoso Ministério da Fazenda. Era maio de 1993 e a instabilidade determinava que, se aceitasse, seria o quarto ministro da pasta em apenas sete meses de governo. Perante o convite, respondeu que à partida não concordava com o afastamento do então Ministro da Fazenda, Eliseu Rezende, mas que não poderia responder, uma vez que não tinha condições para avaliar a situação. O Presidente Itamar foi lacónico e apenas disse que conversaria com o ministro e que voltariam a falar. Mais tarde, enviou um recado segundo o qual já não precisaria de falar. Fernando Henrique foi para o hotel convencido de que o assunto ficara resolvido. Contudo, na manhã seguinte, foi despertado por uma chamada de sua mulher, Ruth, muito preocupada e surpreendida, por ter ouvido no noticiário que ele tinha sido já designado para sobraçar a tão espinhosa pasta da Fazenda. Regressou ao Brasil com o chefe de gabinete, embaixador Sinésio Sampaio Góes, a quem disse que precisaria dele no novo ministério. E começou logo a pensar no discurso de posse do dia seguinte, lembrando o mantra repetido pelo seu amigo José Serra de que o Brasil tinha três problemas persistente: inflação, inflação e inflação. Mas como poderia um sociólogo como ele solucionar algo que ninguém tinha conseguido resolver?
UMA REFORMA EXEMPLAR
Uma coisa era certa, haveria que convocar uma boa equipa de economistas e cuidar da conceção de um plano audacioso, mas determinado. Para tanto, tinha carta branca do Presidente. Nomeou Clovis Carvalho como Secretário-Geral do Ministério e o jovem Gustavo Franco para a secretaria de Política Económica, que seria chefiada por Winston Fritsch, contando ainda como a assessoria de Edgar Bacha. A primeira ideia foi a de lançar um programa tradicional de redução de despesas. Depressa concluiu, porém, que tal seria insuficiente, havia que ser mais ambicioso. E nasceu a ideia, sugerida por Edgar Bacha, de tomar como índice de correção monetária as Obrigações do Tesouro Nacional. Partiu-se, assim, da conceção inovadora de unidade de uma conta de natureza escritural, a URV (Unidade Real de Valor), inspirada no importante estudo teórico de André Lara Resende e Pérsio Arida, escrito dez anos antes. E, em boa hora, com concordância do Presidente, incluiu ambos na equipa de coordenação. André Lara Resende substituiria Pedro Malan na chefia da negociação da dívida externa, que por sua vez seria Governador do Banco Central numa remodelação que o Presidente entendeu dever fazer. Constituiu-se, assim, a equipa do novo Plano Real, sob a coordenação de Clovis Carvalho. E Fernando Henrique fez questão de ir acompanhando, com todo o cuidado, os complexos trabalhos desenvolvidos. Quando a proposta era mais complexa dizia aos seus colaboradores: “esclareçam melhor, porque eu terei de explicar tudo ao país”. E foi o que aconteceu. Das decisões tomadas, duas deveriam ser destacadas. Antes do mais, haveria que preparar a opinião pública sobre tudo o que iria ser feito, para não haver surpresas. Por outro lado, o plano deveria ser solidamente estruturado nos planos constitucional e jurídico. Eduardo Jorge e Gustavo Franco dedicaram-se com o apoio dos melhores juristas ao desenvolvimento à concretização do Plano. Sabia-se bem das dificuldades sentidas em experiências anteriores e em tentativas noutros países, pelo que haveria que salvaguardar o melhor possível a proteção prática do programa de ação, que teria de ser acompanhado por mecanismos de segurança capazes de impedir a especulação e as hipóteses de fraude, lembrando o velho “plano de metas” de Juscelino Kubitschek.
UMA REALIZAÇÃO DE PRAZO LARGO
O Plano teria três fases: Período de equilíbrio das contas públicas, com redução de despesas e aumento de receitas, para os anos de 1993 e 1994; a criação da URV para preservar o poder de compra da massa salarial, evitando medidas de choque como confisco de poupança e quebra de contratos; e lançamento do padrão monetário denominado Real, que chega aos dias atuais. Fernando Henrique confessaria: “Dediquei-me a explicar o Plano (tarefa que foi continuada com sucesso por Rubens Ricupero). Falei com cada bancada partidária no Congresso, com os principais líderes sindicais, inclusive os da CUT, com os ministros e, especialmente, com a Nação”. Com efeito, mudar o rumo de uma economia não era apenas uma tarefa técnica. Só a inteligência política do futuro Presidente do Brasil permitiu que houvesse resultados positivos. Houve que convencer os mercados, os agentes sociais e sobretudo o cidadão comum. E a comunicação social constituiu-se num fator decisivo de mobilização.
Só poderia haver estabilização monetária se todos entendessem que era uma questão de sobrevivência. Estava-se no domínio decisivo do moderno reformismo social. Mais ainda, havia que fazer compreender que a Unidade Real de Valor (URV) não era “um truque”, mas uma ponte sólida para uma nova moeda estável. E voltamos a ouvir o principal artífice do Plano: “Um programa econômico da magnitude do Real é um processo, leva tempo. Requeria a renegociação da dívida externa, como fizemos antes de lançar a nova moeda, bem como a privatização de muitos bancos públicos, especialmente os estaduais, a negociação da dívida pública de estados e municípios e muitas outras medidas que viriam a ser tomadas ao longo dos dois mandatos que se sucederiam na Presidência do Brasil, culminando com a Lei de Responsabilidade Fiscal. Foram necessários tempo, persistência e coragem. Só assim se ganha o que é fundamental: a credibilidade”. Desde 1994, fez-se um longo caminho. Houve, naturalmente nuvens e incertezas no horizonte, mas ficou uma lição fundamental – um homem de cidadania e de cultura como Fernando Henrique Cardoso foi um exemplo forte sobre a ligação necessária entre reformismo e democracia. O Plano Real realizou-se a pensar na cidadania e na justiça, ficará na História política como a demonstração de que o tempo e a reflexão, o conhecimento e a sabedoria têm de caminhar juntos com método, antevisão, respeito mútuo, transparência, pluralismo e rigorosa avaliação dos resultados obtidos. Eis a arte de tornar possível o necessário.
Guilherme d'Oliveira Martins
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