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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

O SENHOR PESSOA VAI CHEGAR…

  


Quando há dias, em Óbidos, nos fomos despedir da nossa professora de Filosofia do Liceu de Pedro Nunes vieram-nos à memória mil lembranças. E, sob uma chuva leve, foi possível compreender como a educação constitui a chave para uma sociedade que procura ser melhor, enriquecendo a herança que recebe das gerações que a antecederam. Património é etimologicamente o serviço prestado aos nossos pais, frutificando as suas lições (patres, munus). Daí que a qualidade das aprendizagens seja uma exigência da sociedade que deseja progredir. Maria Luísa Guerra foi um caso exemplar. Os manuais de História que concebeu e concretizou com Maria Fernanda Espinosa (outra mestra inesquecível que partiu na flor da idade) foram pioneiros nos trilhos de uma moderna pedagogia, ao lado das edições irrepreensíveis dos textos de Filosofia para o ensino secundário. Tais educadoras fizeram parte de uma plêiade que deixou muito bons frutos. E não esquecemos Rómulo de Carvalho e o prazer sincero da leitura que nos incutia com os pequenos volumes da sua “Ciência para Gente Nova”, que tantas vocações despertou. A experiência destes nossos professores continua a ser atual. Ensinaram-nos sempre a não cultivar a nostalgia, mas a cuidar dos desafios de hoje, com a sua complexidade. No caso de Maria Luísa Guerra foram os seus alunos que constituíram a sua família até aos últimos dias (depois da morte do irmão, o artista José Guerra). A sua memória prodigiosa, a entrega total à permanente aprendizagem ficaram indeléveis como marcas perenes. Num dos nossos últimos encontros, recordou com entusiasmo um hipotético (ou real) encontro da criança que foi com Fernando Pessoa. “Todos os anos ouvia dizer : o senhor Pessoa vai chegar. Quem era o senhor Pessoa? Um homem triste, magro, vestido de escuro. Alojava-se numa casa baixa que ficava defronte da minha, numa rua branca fora do tempo. A casa onde eu vivia era alta. Tinha na frente um pequeno jardim com três acácias e um gradeamento verde. Chamávamos-lhe o Passeio. A janela de cima, do quarto dos meus Pais, dava-me paisagem: a estrada, um largo com gente que ia à mercearia, um coreto no meio de flores, ninhos de cegonha na torre da igreja. O senhor Pessoa, da sua janela, só via o muro do Passeio, o meu portão, a minha casa cor de rosa e dois olhos que o espreitavam por trás da vidraça. Dois olhos amplos. Depois do almoço, o senhor Pessoa lá estava, colado à janela. Com se não tivesse havido luar. Como se uma flor não estivesse a roçar o coração do vento. Como se uma criança não tivesse nascido. Perguntava-lhe lá de cima, na minha alma de bibe: vem a ares? Porque é que não vai ao pinhal? Não gosta de ouvir as pinhas a cair? E as formigas a correr ? O senhor Pessoa ficava mudo, quieto, absorto, parado no tempo e no destino. (…) E os nossos olhares cruzavam-se cheios de solidão, solidão infinita. Carregados de destino e de interrogação. Às vezes, (raras vezes) via-o sair. Absorto como a noite. Mas voltava depressa para janela. Para a clausura. E olhava. O meu olhar voltava a encontrá-lo. E assim nos demorávamos um no outro. Ele olhando, eu perguntando. Quantos poemas foram feitos neste diálogo? Hoje pergunto, quem é que eu via? Fernando Pessoa? Álvaro de Campos? Ricardo Reis? Bernardo Soares? Alberto Caeiro? António Mora? Outro qualquer?”. Os olhos da mestra iluminavam-se. Diversas vezes nos levou pelos caminhos da literatura para revelar os segredos da existência. E assim nos ensinava a vida.     


GOM

ANTOLOGIA


UMA NOVA SÉRIE – MEU CARO JOSÉ!
por Camilo Martins de Oliveira


Meu Caro José Saramago:


Por qualquer razão que me escapa, quando me achei já cansado de traduzir as cartas do Marquês de Sarolea à Princesa de... lembrei-me de si. Talvez por ter caído na tentação de responder post-mortem a Camilo Maria, que me desafiara a telefonar-lhe para o céu... Terei pensado então que, nesse nenhures intemporal, o José (permita-me tratá-lo com uma familiaridade antiga em mim) estaria presente lá em cima, lado a lado, com aquele "reacionário"? Ou, antes, seria pela necessidade de lhe confessar, a si, sentimentos de profunda, eterna (acredita, eterna?) intimidade espiritual? Porque me ocorreu dizer-lhe essas palavras com que o José fala de Fernando Pessoa, "neste preciso instante em que Ricardo Reis, encostado a um candeeiro no alto da Calçada do Combro, lê a oração fúnebre" que, pela morte do seu alter ego, alguém escreveu mas Reis-Saramago diz assim: "Duas palavras sobre o seu trânsito mortal, para ele chegam duas palavras, ou nenhuma, preferível fora o silêncio, o silêncio que já o envolve a ele e a nós, que é da estatura do seu espírito, com ele está bem o que está perto de Deus, mas também não deviam, nem podiam os que foram pares com ele no convívio da sua Beleza, vê-lo descer à terra, ou antes, subir as linhas definitivas da Eternidade, sem anunciar o protesto calmo, mas humano, da raiva que nos fica da sua partida...  ...lastimamos o homem que a morte nos rouba, e com ele a perda do prodígio do seu convívio e da graça da sua presença humana, somente o homem, é duro dizê-lo, pois ao seu espírito e seu poder criador, a esses deu-lhes o destino uma estranha formosura, que não morre..." Assim é: nascemos um dia, e connosco, em qualquer de nós, inda que pequeno, breve, talvez feio, essa misteriosa "estranha formosura, que não morre." 


Vivi quarenta anos - trinta deles seguidos - fora de Portugal. Por enquanto, ainda não mas quase 50% do tempo deste meu itinerário mortal. Quando vinha por cá, "esvaziava" livrarias e... pagava excessos de bagagem! O José, entre outros, foi um dos "culpados" desses excessos. Primeiro, com o "Memorial do Convento" que, no avião e em casa, achei interessante mas algo pesadote. Depois, com "O Ano da Morte de Ricardo Reis", que devorei sem dormir.... Até me cheirava a Lisboa, como "El Amor en los Tiempos del Colera" do Garcia Marquez me tinha enchido as narinas, o coração, a pele e os ossos da alma, de Cartagena de las Indias! Adolescente ainda, gastei uns cobres da mesada a comprar os Pessoa na Ática, e trazia no bolso do obrigatório casaco essa edição de uma antologia dos heterónimos, que o Adolfo (veja o José, aí no céu, como até os nomes enganam!) Casais Monteiro tinha publicado com a Agir, no Brasil... Aos quarenta, dou de caras, graças a si, com o Ricardo Reis, andei com ele pela Lisboa húmida, que transpirava, e nós com ela... Bem haja! Reparo agora que nunca o tratei por V. Exa., nem sequer por Senhor Saramago... Sem mesmo qualquer respeito, sequer, pela progressiva familiarização das formas de tratamento com que o Eça nos vai medindo, em "Os Maias", com os oportunismos do mundo. Trato-o por José, nome respeitável e cristão, em meu entender preferível ao "você" com que nos banalizam. Não digo Senhor José, atenção!, mas José apenas: é bem maior e muito mais bonito! Sabe? Quando adquiri, na livraria Arco-Íris, ali nas Avenidas Novas, o seu "O Ano da Morte de Ricardo Reis", vivia em Scarsdale, no Westchester County, subúrbio de New York. Abri-o em casa, logo que cheguei, lá pelas dez da noite (três da manhã em Lisboa), na cama, para me vir o sono. Fechei-o só a meio do dia seguinte, não dormi, li-o todo! Como se acompanhasse, percorrendo a sua vida de Ricardo Reis, não apenas essa, mas outro percurso interior: aquele em que José Saramago se reconhecia nas "Odes" de Ricardo Reis. Com a mesma perplexidade de uma cidade de Lisboa que, ali, com Ricardo Reis que acaba de chegar do Brasil, num vapor inglês da Mala Real, nasce de um Tejo húmido, cinzento e frio, e o leva no seu coração, em que o tempo pára. Começa assim: "Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro..." E termina quando Fernando Pessoa vem buscar o mais coevo dos seus heterónimos, e o tira do leito e das ilusões, para a noite fria: "Você não trouxe chapéu. Melhor do que eu sabe que não se usa lá. Estavam no passeio do jardim, olhavam as luzes pálidas do rio, a sombra ameaçadora dos montes. Então vamos, disse Fernando Pessoa. Vamos, disse Ricardo Reis. O Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera." Chegado a este fim, ocorreu-me essa breve ode de Reis:


            "Aguardo, equânime, o que não conheço...
             Meu futuro e o de tudo.
             No fim tudo será silêncio, salvo
             Onde o mar banhar nada."


E fico, talvez como o Ricardo Reis do Saramago, que, ao sair, ainda "foi à mesa de cabeceira buscar «The god of the labyrinth», meteu-o debaixo do braço"... nesse (cito o autor das "Odes"):


              "Nesse desassossego que o descanso
              Nos traz às vidas quando só pensamos
              Naquilo que já fomos,
              E há só noite lá fora."


Ricardo chega a Lisboa no princípio de dezembro de 1935, quando é devolvido à terra o corpo de Fernando, nascido um ano antes dele e que publicara, em 34, o seu único livro em vida: "Mensagem". Aí diz, da vida breve, o que lhe oferece a memória de D. Sebastião, Rei de Portugal:


             "Louco, sim, louco porque quis grandeza
             Qual a sorte não dá.
             Não coube em mim minha certeza;
             Por isso onde o areal está
             Ficou meu ser que houve, não o que há”


Na Lisboa invernal e turva Reis-Saramago está entre parênteses, ou entre dois portos: o da chegada, onde o mar acabou; e o da partida, onde Fernando Pessoa o vem buscar. Nem ele nem ninguém sabe qual é a demora, nem experimentou ainda a divisão de quem parte e fica. Desconhece o destino, sabe apenas que há essa "estranha formosura, que não morre"... E porque eu mesmo, muitas vezes, não sei bem separar a angústia da esperança, nem fugir à tentação de estar, ficando, quando uma voz me chama para a loucura de ser, desligando-me do meu temor, penso em si, José, e em onde estará o seu ser "que há". Onde talvez veja como Deus nos vê, e leia, com nova descoberta, esta ode de Ricardo Reis:


             "Para ser grande, sê inteiro: nada
              Teu exagera ou exclui.
              Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
             No mínimo que fazes.
             Assim em cada lago a lua toda
             Brilha, porque alta vive."


Se achar bem, vou-lhe escrevendo. Gosto de conversar consigo.


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 15.10.13 neste blogue.

CADA TERRA COM SEU USO

folhetim XX.jpg

 

 

XXII.  O século das guerras e o fim lento da autarcia

 

A partir da implantação da República em 5 de outubro de 1910, culturalmente a «Renascença Portuguesa» constituiu um exemplo de como o republicanismo, com diversas leituras, exerceu uma influência simbólica na evolução do século XX português. Recorde-se que no dealbar do movimento, Teixeira de Pascoaes e Raul Proença apresentaram dois projetos de manifesto que, apesar de diferentes, representaram uma imagem de renovação. «O fim da “Renascença Lusitana” – escrevia Pascoaes – é combater as influências contrárias ao nosso carácter étnico, inimigas da nossa autonomia espiritual, e provocar, por todos os meios de que se serve a inteligência humana, o aparecimento de novas forças morais orientadoras e educadoras do povo que sejam essencialmente lusitanas». Proença, por seu lado, falava “em pôr a sociedade portuguesa em contacto com o mundo moderno, fazê-la interessar-se pelo que interessa aos homens lá de fora, dar-lhe o espírito atual, a cultura atual, sem perder nunca de vista, já se sabe, o ponto de vista nacional e as condições, os recursos e os fins nacionais”. Como salientou José Augusto Seabra: “o ideal patriótico é idêntico, apenas os meios de o atingir divergem, embora sejam afinal complementares, como Pascoaes, aliás, n’A Águia, intentará mostrar”. Ambos se demarcam do positivismo ou de lógicas partidárias redutoras, estando em causa o que Jaime Cortesão propunha: «dar conteúdo renovador e fecundo à revolução republicana». Como dirá Pascoaes, havia que «criar um novo Portugal, ou melhor, ressuscitar a Pátria Portuguesa, arrancá-la do túmulo, onde a sepultaram alguns séculos de escuridade física e moral, em que os corpos definharam e as almas amorteceram».

 

As palavras Renascença e Regeneração são usadas no Portugal de influência liberal, pelo menos desde 1820. “Renascer é regressar às fontes originárias da vida, mas para criar uma nova vida” (Pascoaes). Vêm à memória os sinais renovadores provindos do Porto – 1820, o impulso de D. Pedro após o desembarque dos bravos do Mindelo (onde estiveram Garrett, e Alexandre Herculano), a influência portuense do Setembrismo (em que pontificaram os irmãos Manuel e José Passos), a Maria da Fonte e a Patuleia, a Regeneração de 1851, o movimento da “Vida Nova” (1885), o magistério de Rodrigues de Freitas, a presidência de Antero de Quental na Liga Patriótica do Norte, o 31 de Janeiro, o manifesto dos emigrados políticos, o “Porto Culto” de Sampaio Bruno… A “Renascença” e a revista “A Águia” procuram um pluralismo eclético e aberto, “no sentido profundo, verdadeiro, essencial, isto é, o sentimento ideia, a emoção refletida, onde tudo o que existe, corpo e alma, dor e alegria, amor e desejo, terra e céu, atinge a sua unidade divina”. Na “Renascença” estão Álvaro Pinto e Jaime Cortesão, Guerra Junqueiro, Antero de Figueiredo, António Carneiro, Leonardo Coimbra, mas também Afonso Lopes Vieira, António Correia de Oliveira, António Sérgio, Raul Proença, João de Barros, Mário Beirão, Câmara Reis e Afonso Duarte, além de Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro. Compreende-se, pela diversidade de intervenientes, que a “Renascença Portuguesa” tenha sofrido diversos sobressaltos – no entanto, olhando o impulso fundamental, depressa descobrimos que, como movimento original representa o que de mais significativo encontramos na cultura portuguesa do século XX – de Pascoaes a Leonardo, de Cortesão a Pessoa, do simbolismo ao modernismo, do lirismo ao racionalismo. Afinal, como dizia Raul Proença, havia necessidade de «homens de inteligência e de direção espiritual», para dar dimensão à nova República. E Cortesão frisava: «a Renascença Portuguesa não era incompatível com as aspirações modernas». Leonardo Coimbra dizia ser fundamental “dar uma finalidade à vida nacional”, lembrando Cortesão que o berço da Renascença é o Porto: «foi, na verdade, pelas suas origens, carácter e tendências, um movimento portuense». Note-se a prevalência da elevação das ideias, o respeito mútuo e a serenidade da razão e do sentimento, contra a cegueira sectária. Estamos, de facto, perante uma convergência humanista universalista, desde a perspetiva espiritualista, representada por Pascoaes (e depois por Leonardo Coimbra) até à razão cosmopolita de António Sérgio e Raul Proença, passando pelo modernismo e pelo futurismo de Pessoa, Sá-Carneiro e Almada Negreiros. Pesam a herança de Herculano e Garrett, a vontade nacional e a tradição romântica, mas também o sentido renovador e revolucionário de Antero, Eça, Oliveira Martins e Junqueiro e da Geração de 1870, além do positivismo, do pensamento libertário e do socialismo cooperativo. E não pode ainda esquecer-se a influência inovadora de Cesário Verde e Camilo Pessanha, que, com Antero de Quental, constituem a antecipação do “Orpheu”.

 

No plano político, o regime republicano (1910-1926) caracterizou-se pela instabilidade, dos partidos, dos governos, da sociedade, agravada com a entrada na Grande Guerra e a emergência do presidencialismo de Sidónio Pais (1917-18) e com o regresso em 1919 da República velha. No campo económico, em lugar da fixação da riqueza e da produção, houve os efeitos da Grande Guerra com inflação galopante e crise monetária. Quanto à Constituição de 1911, o parlamentarismo e a subalternidade da figura do Presidente da República (contrariada por Sidónio) geraram instabilidade governativa. Na educação, houve muitas expectativas positivas, nas reformas de António José de Almeida (1911), de Leonardo Coimbra (1919) e de João Camoesas (1923) que, apesar de não terem tido efeitos imediatos na frequência escolar, definiram orientações no sentido da valorização da qualidade do ensino.

 

Fernando Pessoa e “Orpheu” (1915) representam um sobressalto, num curioso casamento entre a história de um povo que o poeta procura interpretar e uma reflexão cosmopolita, que torna fascinante a leitura de uma obra caleidoscópica. Contudo, sem ser redutora, a perceção da identidade é feita à luz de uma consciência universalista. Como disse Eduardo Lourenço (1923-2020) em «Pessoa revisitado», o poeta «foi uma espécie de aparição fulgurante descida das brumas culturais alheias ao nosso desterro azul, para nele inscrever em portuguesa língua o mais insubornável poema jamais erguido à condição exilada dos homens na sua própria pátria, o universo inteiro». Assim se podem entender os paradoxos e as contradições que encontramos e que mais não são do que a aceitação de que uma cultura é complexa e heterogénea, abarcando elementos diversos. Estamos perante a imperfeição de que fala Lourenço, que exige a abordagem de diversos caminhos, sobretudo evidente numa cultura como a portuguesa, nascida numa finisterra de múltiplas presenças e depois espalhada pelo mundo. A relação entre o ortónimo pessoano e os principais heterónimos (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e o semi-heterónimo Bernardo Soares do “Livro do Desassossego”) corresponde, assim, à representação da pluralidade do universo. A modernidade de Pessoa tem, no fundo, a ver com essa projeção, que nos leva ambiguamente ao conceito de Quinto Império – incompreensível sem referência a Vieira, o imperador da língua portuguesa. Em vez de um projeto de domínio temporal, estamos diante da exigência de um diálogo, em busca da diferença.

 

«Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade» - afirmou Pessoa. Ora, os mitos permitem interrogar as raízes e o desenvolvimento de uma identidade, e essa abordagem crítica abre as portas para a superação de uma mera lógica defensiva ou retrospetiva. Compreende-se que José Régio e a revista “Presença” (segundo modernismo) tenham lamentado a publicação da «Mensagem» antes do outro manancial poético de Pessoa. O poeta não deixou de concordar junto de Adolfo Casais Monteiro, mas preferiu falar de um momento crítico de «modelação do subconsciente nacional». Será Eduardo Lourenço quem melhor articulará a necessidade crítica da consideração dos mitos pessoanos com a interrogação de Antero de Quental sobre «as causas da decadência dos povos peninsulares», com a obrigação crítica da geração de 1870, com a vontade de renascimento de «A Águia» e com o ensaísmo de António Sérgio. A heterodoxia de Lourenço tem a ver, afinal, com a recusa das escolas dominantes ou dos grupos instalados, pretendendo obter liberdade para seguir a necessidade crítica não acomodada à lógica positivista – de modo a partir dos mitos, a fim de poder compreender a sociedade e a cultura na sua complexidade. Afinal, Pessoa dissera sobre «Orpheu» a Cortes-Rodrigues que tinha como objetivo «agir sobre o psiquismo nacional», trabalhando-o por «novas correntes de ideias e emoções», sendo uma espécie de «ponte por onde a nossa Alma passa para o futuro». Eis por que motivo qualquer leitura superficial ou unívoca da obra pessoana pode conduzir num sentido redutor e incapaz de a compreender. Alberto Caeiro, o mestre, assume o panteísmo naturalista, pelo que afirma Campos: «O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo». «Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza. / Murcha a flor e o seu pó dura sempre. / Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua. / Passo e fico, como o Universo». Ricardo Reis afirma a nostalgia dos deuses gregos e romanos, Álvaro de Campos é o cantor da civilização mais moderna. E Pessoa procura transcender, reunir, completar, num pequeno texto em «Sobre Portugal» trata do provincianismo. Do que se trata é da definição de uma atitude crítica contrária do conformismo. «O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela – em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz. A síndroma provinciana compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e a admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade da ironia». O poeta pensa na necessidade de haver escóis, de haver uma aristocracia comportamental, de se cultivar a abertura e o cosmopolitismo, de superar uma tripla camada de negativismo: a decadência, a desnacionalização e a degenerescência. A ilusão do progresso ilimitado, a tentação de não cuidar do futuro, o fatalismo e a indiferença – tudo isso está em causa. E o certo é que a ironia ganha uma especial importância. 

 

Agostinho de Morais

 

 

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A VIDA DOS LIVROS

  
De 22 a 28 de julho de 2024


«Pessoa Revisitado» de Eduardo Lourenço constitui uma obra referencial do grande ensaísta, que acaba de ser reeditada pela Gradiva e constitui uma sugestão essencial de leitura para este Verão.


PEÇA-CHAVE 
O reconhecimento da genialidade de Pessoa é uma marca indelével que encontramos na obra que aqui se apresenta. Pessoa Revisitado – Leitura Estruturante do Drama em Gente constitui uma peça-chave na obra de Eduardo Lourenço, da qual resulta a ideia inovadora e original de que os heterónimos pessoanos não são fragmentos de um puzzle, cuja coerência o leitor poderia reconstituir com referência a alguma instância exterior à obra, mas sim à fragmentação de uma totalidade identificada na poesia do próprio Fernando Pessoa, ainda antes do nascimento de Caeiro, Campos e Reis, como tem salientado Pedro Sepúlveda (in Obras Completas, IX, Pessoa Revisitado – Crítica Pessoana – I (1949-1982)- Fundação Calouste Gulbenkian, Introdução, pp. 13 e ss.).


Nesse sentido, a famosa questão da génese dos heterónimos passa a ser colocada no plano textual, com uma perspetiva orgânica, partindo de uma ideia não só de rutura, mas também de continuidade, no tocante a motivos e temas, ligando os textos heteronímicos entre si e a uma fase anterior. E o percurso desenhado por Richard Zenith na sua biografia de Pessoa ilustra bem esta ligação. É assim que se compreende que Eduardo Lourenço tenha a preocupação de tornar claro que se demarca de uma visão psicologista na interpretação da personalidade poética de Pessoa. Para si a psicanálise é mítica, centrada no texto e não no sujeito criador dele. E Robert Bréchon afirma que Pessoa Revisitado devolve à poesia pessoana o seu poder de subversão. Há, deste modo em Eduardo Lourenço, uma redescoberta de Pessoa, que o Livro do Desassossego irá confirmar, numa coerência e num sentido de conjunto, que Eduardo Lourenço intuiu de forma pioneira magistralmente.


Aproximando-se de Adolfo Casais Monteiro ou de Maria Aliete Galhoz, o ensaísta considera que na obra policêntrica estamos perante um sistema de múltiplos sentidos, que corresponde a um todo. De facto, a aparente multiplicidade e o seu carácter supostamente contraditório da obra plural correspondem a uma impressão de totalidade. E neste ponto a referência Walt Whitman merece especial atenção.  Tradicionalmente apontado como influenciador do mestre Alberto Caeiro, verifica-se que essa prevalência é muito superior ao que se possa supor, sendo transversal a toda a criação, transformando-se em imaginário refúgio contra o sentimento de irrealidade. Aliás, a descoberta do volume Poems by Walt Whitman na Biblioteca particular de Pessoa, profusamente anotada, com a assinatura de Alexander Search, numa fase pré-heteronímica, demonstra o acerto da intuição lourenciana.


LIVRO POLÉMICO E DE URGÊNCIA
Pessoa Revisitado é, sem dúvida, para o seu autor um “livro polémico, veemente, livro de urgência” e até de paixão. E Pedro Sepúlveda tem razão ao considerar Pessoa Revisitado como, “até hoje o mais importante ensaio escrito sobre a obra de Fernando Pessoa”, pela originalidade e pela atenção inovadora. Afinal, como o mesmo considera, invocando o testemunho do próprio Lourenço: «Tal como em Caeiro, a forma de poesia de Campos teria como referência primordial Whitman, mediada pela influência do mestre, apresentando-se como “transfigurado eco da visão que Walt Whitman tem das coisas, não do concreto hino com que as canta”» (Op. Cit., p. 31). E o poeta norte-americano constitui uma chave reveladora do que se torna próprio e irrepetível na genial criatividade de Fernando Pessoa, ele mesmo.


Como o ensaísta reconhece, estamos diante de “um livro de paixão, um romance de romancista imaginário por conta de Pessoa, antes que autênticos romancistas o convertessem na ponte das suas criações” (Vinte Anos Depois). Eis o que nos obriga a esta leitura apaixonante.


UMA PREMONIÇÃO 
Como disse Eduardo Lourenço: “o canto pessoano é o do terror instalado no centro do amor, fazendo sobre-humanos esforços para não sucumbir ao seu negro sortilégio. A relação da humanidade com o seu desejo não é, nem pode ser natural. Porque foi e é através das formas que assumiu e assume que ela se liberta sem cessar da Natureza e se instala na sobrenaturalidade, onde não acabará jamais de se instalar”. Carlos de Oliveira viu bem quando afirmou que este foi o grande romance que Eduardo Lourenço, afinal, escreveu. E assim o leitor insaciável, o estudioso permanente, o cultor da linguagem poética reveladora do sentido profundo dos mitos surge aqui como revelador do sentido da criação cultural de Pessoa. Não mais poderemos compreender o alcance de «Orpheu» sem lermos esta obra. E o certo, porém é que o próprio autor talvez não se tenha apercebido, quando fechou o seu ensaio, que a descoberta do Livro do Desassossego viria a dar plena razão à coerência complexa e à genialidade do autor plural que demonstrou na modernidade uma coerência única entre a personalidade multímoda e a sua obra portentosa, assente no surpreendente diálogo entre a diversidade de ortónimos e heterónimos…     


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

ESSENCIAL TAMBÉM É PARAR PARA VIVER

  


Olhamos e perguntamos: “Que anda esta gente toda a fazer?" A  resposta é simples, sempre a mesma: "A viver.” É isso: a viver.


O problema é este: são tantas as vezes em que se não dá por isso: o milagre que é viver! Assim, numa sociedade na qual o perigo maior é a alienação - viver no fora de si -, quando a política se tornou um espectáculo tantas vezes indecoroso, quando a mentira e a corrupção imperam, quando Deus foi substituído pelo Dinheiro e o mundo se tornou  globalmente perigoso, com a Terceira Guerra Mundial em curso, embora ainda só “aos pedaços”, como diz Francisco, é essencial parar, fazer uma pausa. Porquê e para quê?  Como disse Juan Ramón Jiménez: “Devagar, não tenhas pressa, porque aonde tens de ir é a ti mesmo.”


E lembrei-me do meu querido amigo jesuíta Juan Masiá, professor de Filosofia em Tóquio, e de um dos seus livros, precisamente com o título: Vivir. Espiritualidad en pequeñas dosis. "Deixo-me acariciar pela brisa, saboreio a experiência de estar vivo, sentir palpitar a minha vida. E penso: viver, que maravilha e que enigma! Paro em silêncio a saborear esta vivência. Estou vivo, mas a minha vida supera-me: não é só minha nem a controlo. Viver é ser vivificado pela Vida que nos faz viver." A Vida vive-te, vive na Vida!


E aí estão as tarefas para a espiritualidade: dar-se conta do viver; agradecer por a Vida nos fazer viver, nos vivificar: vivemos graças à Fonte da Vida; darmos vida uns aos outros, na compaixão e na ajuda mútua para nos libertarmos. “O que é o mar? O que permite o peixe nadar. O que é o ar? O que permite o pássaro voar. O que é o Nada e o Vazio? A Vida que te faz viver. Vejo a ervita entre as gretas do pavimento. Donde lhe virá a força para abrir passagem entre o asfalto? Palpo aqui uma Presença latente. Não sei quem é. Mas brotam lágrimas de agradecimento.” Então, morrer não é senão sair para dentro da Vida verdadeira, definitiva e eterna: “vida no seio da Vida da vida.”


No meio do rebuliço estonteante, é decisiva a pausa e o silêncio. Chama-se cultura da pausa à tradição oriental de dar importância aos silêncios numa conversa, aos intervalos entre as palavras, aos vazios nas letras, aos espaços livres na arquitectura, ao não dito na mensagem, à receptividade na contemplação. Parar para ouvir o silêncio e contemplar: em vez de olhares para ti e olhar para mim, deixemo-nos olhar ambos pela "Realidade-Assim-Sempre-Presente, cuja aura comum nos envolve". Deixa o eu superficial, transcende, descendo até ao eu profundo e ao "Assim-Sempre-Presente", que se manifesta. Sem pausas de silêncio, como poderíamos ouvir uma mensagem ou uma sinfonia? Sem intervalos, margens e vazios nas letras e entre as frases, como poderíamos ler e entender? E verdadeiramente viver?


O que é a liberdade? "Agir de acordo com o melhor de si mesmo." Mas eu não sou eu sozinho. Perguntou ao jesuíta o monge budista: "Em que é que a sua religião e a nossa se parecem?" E respondeu: "Vós falais do amor de Deus e nós da compaixão do Buda. Mas nem vós nem nós praticamos. É nisso que mais nos parecemos."


E como se reza? "Crer, viver e conviver" era o lema de um encontro de meditação e espiritualidade inter-religiosa, sendo um terço dos participantes budistas, a maioria sem  ligação religiosa e uma minoria católicos. E ali se elaborou, com todos de acordo, colocando em duas colunas o "Pai Nosso" cristão e uma paráfrase do partilhar a espiritualidade inter-religiosa, a "Oração à Vida, a partir da vida": "Fonte da Vida, que estás na vida, que estás na minha vida, que estás em toda a parte, vivificando tudo. Que nos demos conta de que o Reinado da Vida vem e o construamos, vivificando-nos, dando vida uns aos outros e em tudo dando um sim à Vida. Que recebamos força de viver, fortaleza de corpo e espírito com pão de vida e esperança. Que nos capacitemos para conviver em reconciliação, recebendo e dando perdão, e para conviver com as pessoas mais desfavorecidas, com quem é diferente e com quem nos mostra inimizade. Que sejamos libertos de todo o mal: do mal no nosso interior e do mal que vulnera as relações humanas. Que dê fruto o trabalho pela libertação do mal social." Jesus ensinou: "Quando rezardes, dizei: Obrigado, Abbá, Pai e Mãe nossa. Dá-nos o pão do futuro no presente. Reconcilia-nos e livra-nos do mal."


E também me lembrei da oração de Fernando Pessoa:


"Senhor,


Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.


Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faz com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.


Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.


Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a Lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.


Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim."


Ah! E não vou esquecer o Nobel da Literatura Juan Ramón Jiménez: “Devagar, não tenhas pressa, porque aonde tens de ir é a ti  mesmo.” E lá no fundo de ti é o Mistério, o mistério da Vida.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 20 de janeiro de 2024

ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA


F. FERNANDO PESSOA


Zé Fernandes e porventura Jacinto poderiam ter encontrado um dos fantasmas de Pessoa… Como saído da lâmpada de Aladino, esse espírito encontra-se na misteriosa arca… Pessoa é um escritor vulcânico, di-lo Richard Zenith: “quando as palavras começavam a fluir, usava todos os tipos de papel à disposição – folhas soltas, blocos de notas, papel de carta dos cafés que frequentava, páginas arrancadas de agendas ou calendários, as costas de tiras de banda desenhada e folhetos, sobrecapas, bilhetes de visita, sobrescritos e margens de manuscritos alinhavados alguns dias ou anos antes. E todos eram por ele depositados na grande arca de madeira: a herança que deixou ao mundo.

«Mais surpreendentes do que os escritos exumados da arca (foram) as dúzias de alter egos desconhecidos que, depois de se esconderem lá durante anos, entraram no mundo como se tivessem sido despertados de um sono encantado”. Do filósofo esotérico Raphael Baldaya ao ultra-racional Barão de Teive, passando pelo único heterónimo feminino, o da tuberculosa Maria José, apenas três dos autores criados por Pessoa, tiveram desenvolvimento pleno – Alberto Caeiro da Silva (1889-1915) autor de “O Guardador de Rebanhos” e de “O Pastor Amoroso”; Ricardo Sequeira Reis (1887), médico, professor de Latim no liceu, autor de odes clássicas ao modo de Horácio, emigrado no Brasil e Álvaro de Campos, engenheiro naval, formado na Escócia, nascido em Tavira (1890), o mais assertivo e prolífico dos heterónimos pessoanos… Mas o mais importante trabalho de Pessoa em prosa foi o “Livro do Desassossego”, que “ilustra o princípio da incerteza que percorre o seu universo literário”. São quinhentos fragmentos, que apenas viram a luz do dia em 1982, cujo narrador é Bernardo Soares, um semi-heterónimo, para quem “o único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios”. Zenith compara esse livro ao de Robert Musil “O Homem sem Qualidades”. Contudo, a ausência e a sobreabundância de qualidades representam as faces contraditórias do homem moderno. Foi preciso tempo, porém, para que os leitores de Pessoa pudessem compreender uma poética de identidade fragmentada. Eduardo Lourenço foi quem, de modo original, pôde compreender os elos íntimos dessa misteriosa diversidade em “Pessoa Revisitado”. Talvez tenha sido positivo o atraso na revelação dessa obra crucial, para que a crítica pudesse ultrapassar as primeiras impressões. Com recusa do completo e do definitivo, Pessoa interessa-se pelo oculto e a heteronimia pode ser explicada como um meio quase religioso, mágico ou alquímico que permite progredir, na viagem espiritual de Pessoa, que anseia sentir por tudo de todas as maneiras possíveis. E há uma citação misteriosa e isolada, entretanto encontrada, de um fragmento da carta de S. Paulo aos Coríntios, que parece ser reveladora: “Eu me fiz tudo para todos, a fim de salvar a todos”. A diversidade é uma indelével marca pessoana. Nos amores, tem com Ofélia Queiroz uma relação indecisa e a marca de uma sexualidade difusa. Na política, António Mora defende a causa alemã na guerra, enquanto Pessoa se inclina para os Aliados, com entusiasmo limitado. A verdade é que é a arca, mais do que os testemunhos pessoais, a grande reveladora da vida misteriosa do poeta. Tímido e delicado na conversa, tinha sentido de humor, vestia com esmero e era muito educado. Há unanimidade na apreciação. Quanto a confissões autobiográficas, encontramo-las em toda a parte. Na “Tabacaria”, Campos fala do hipotético amor com a filha da lavadeira e acena ao Esteves pela janela. Tudo pode acontecer. Como afirmou John Keats, “a vida de um homem digna de valor é uma alegoria contínua”. O que Pessoa imaginou, visionou e projetou foi único na sua vastidão e variedade. - «Sê plural como o universo!» - escreveu de forma imperativa num papel encontrado na arca, na década de 1960. Que fantasma se segue?   

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UM ÍCONE PORTUGUÊS

  


Num especial aperitivo para o renovado Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian deparamo-nos nestes dias com “Histórias de Uma Coleção”, uma extraordinária reunião de obras de arte do último século cujo regresso encheu de emoção quantos acorreram à inauguração da exposição. Sentia-se o “espírito Gulbenkian”, como nos grandes momentos de uma vida plena, enquanto no Grande Auditório tinha lugar a prodigiosa apresentação da violinista sul coreana Bomsori Kim, sob a direção de Giancarlo Guerrero, no concerto para Violino e Orquestra em Ré maior, opus 77, de Brahms. Em iniciativas paralelas, com públicos diferentes, a cultura e a arte manifestavam-se numa sublime convergência.


O que é uma Coleção? De que histórias é feita? Um aperitivo é um anúncio do que virá. À entrada, um conjunto de 73 obras, numa parede mágica, convida-nos a uma imersão total como acontece com as crianças ávidas numa loja de brinquedos. E perguntamos: Quem? Onde? Como? E compreendemos que “histórias de uma coleção” são a procura dos mil mistérios que se escondem e que se revelam na relação entre os artistas e as suas obras, e no caminho destas ao encontro de quem as demanda. E as obras de arte tornam-se, elas mesmas, protagonistas de fascínio, que se torna indescritível nessa imersão total que nos torna participantes desse diálogo que torna a arte uma procura de nós mesmos.


Ao reencontrar o “Fernando Pessoa” de Almada Negreiros, senti não apenas o carácter fulgurante deste ícone português, mas a memória da revista “Orpheu”, que foi um dos momentos mais importantes da moderna cultura em língua portuguesa. E lembro o facto de José de Azeredo Perdigão, o primeiro presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, ter participado no grupo de “Orpheu” (em 1915) e ter sido um dos fundadores da revista “Seara Nova” (1921), dois exemplos essenciais da nossa contemporaneidade. A primeira versão deste quadro de Almada foi feita em 1954, por encomenda de “Os Irmãos Unidos”, o restaurante do Rossio, de que era sócio Alfredo Guisado, um dos companheiros de “Orpheu”, onde tiveram lugar muitas reuniões do grupo, “em camaradagem e conta fiada”, na expressão de José-Augusto França. A cabeça que está no quadro foi primeiro desenhada em 1935, e publicada no “Diário de Lisboa” quando o poeta morreu. A tela que está na Gulbenkian é a réplica, encomendada em 1964. A Fundação procurara adquirir a versão original, na sequência da atribuição do prémio de pintura extraconcurso na I Exposição de Artes Plásticas da Gulbenkian em 1957. Não houve, porém, acordo quanto ao valor, que, aliás, se fixaria em leilão. E assim foi encomendada pela Fundação ao artista uma réplica, que Almada realizou, projetando o primeiro quadro em espelho, com “curiosas incongruências na posição das mãos e do papel”, mas inspirando-se nos misteriosos painéis de S. Vicente de Fora, que apaixonaram o pintor, centrado na figura repetida do que se pensa ser S. Vicente, como esclarece no belo catálogo Ana Vasconcelos, podendo ainda lembrar-se a disposição geométrica do chão, que permitiu a ordenação dos painéis no Museu de Arte Antiga a partir de 1940. “Fernando Pessoa está sentado a uma mesa de café, pelo verão de 1915. Sobre o tampo da mesa o número 2 de ‘Orpheu’. É o retrato do poeta e da sua geração que a simples presença da revista anuncia. E também, de certo modo, um retrato de Lisboa, que entra, num sol matutino pela sala dentro, envolto em cheiro de maresia – porque se está no Terreiro do Paço e o café só pode ser o ‘Martinho da Arcada’. O poeta suspendeu a escrita, pousou a caneta, vai puxar uma fumaça. O café espera, ao lado com o açucareirozinho de metal amolgado” (segundo J.A. França). Eis porque considero esta obra-prima um ícone português, porque aí encontramos uma preciosa síntese de tradição e modernidade. “Serei Vitória um dia / - Hegemonia de Mim!” – como disse Almada em “A Cena de Ódio”.     


GOM

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


131. SONHAR E TRANSCENDERMO-NOS


“Triste de quem vive em casa,       
Contente com o seu lar, 
Sem que um sonho, no erguer de asa,   
Faça até mais rubra a brasa     
Da lareira a abandonar!


Triste de quem é feliz!     
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz   
Mais que a lição da raiz
Ter por vida a sepultura.”


(Mensagem, Fernando Pessoa)


Estes versos pessoanos têm uma dimensão e interpretação pluricultural e transversal que transcende a mensagem específica a que aludem (“O Quinto Império”), chamando-nos a atenção para a futilidade de uma vida homogénea horizontal, sem razão de existir que não seja a do dia a dia.   


O sonho é um meio de nos transcendermos, ter asas para voar, ir mais além do que é elementar e trivial para sobreviver, afastando a rotina, o aborrecimento, o tédio, mesmo se vitais para a nossa segurança.   


Sem espírito de missão, de transcendência e espiritualidade, a nossa passagem terrena está incompleta, caindo-se na mediocridade da mera subsistência, sendo insuficiente deixar aconchegados os filhos, casando-os bem, com casa, seguro, automóvel, termos descendentes e, depois, vem a senhora dona morte e … morremos! 


Para Pessoa, foi o saber sonhar, o espírito de missão e de aventura que nos fez voar e transcender, que nos levou a todo o mundo, ficando desses tempos idos uma língua global, património comum da humanidade, tantas vezes por opção voluntária de quem a fala e a tem como imperialista e neocolonialista.


Será que sonhar e transcendermo-nos é só para alguns? E em certas épocas?


Pode ser para todos, em qualquer época, pois se o sonho comanda a vida, é uma maneira de nos transcendermos, materializando-o e procurando-o em vários interesses, pela criatividade, descendência, vontade, persistência e eternizando-o, por exemplo, pela escrita, pelas artes, ciência, tecnologia, digitalização e testemunhos perenes, como modo de lutar contra a angústia de se ser mortal superando-a e concretizando na Terra um ideal abstrato e pensado que esvoaça e se sustem imaterialmente.    


13.01.23
Joaquim M. M. Patrício

A VIDA DOS LIVROS

  

De 30 de maio a 5 de junho de 2022.


«Pessoa – Uma Biografia» de Richard Zenith (Quetzal, 2022) é uma obra fundamental, na qual podemos encontrar, como antes não aconteceu, a personalidade multifacetada e heterogénea do poeta referência da língua portuguesa no século XX.

UM REPOSITÓRIO ABRANGENTE
Quatro partes constituem este repositório, no qual se pretende compreender um autor múltiplo e uno. Começamos por encontrar um “estrangeirado nato”, no período entre 1888 e 1905; depois, “o poeta como transformador” (1905-1914); em seguida “sonhador e civilizador” (1914-1925) e, por fim, “espiritualista e humanista” (1925-1935). Pessoa é um escritor vulcânico, segundo o seu biógrafo, “e quando as palavras começavam a fluir, usava todos os tipos de papel à disposição – folhas soltas, blocos de notas, papel de carta dos cafés que frequentava, páginas arrancadas de agendas ou calendários, as costas de tiras de banda desenhada e folhetos, sobrecapas, bilhetes de visita, sobrescritos e margens de manuscritos alinhavados alguns dias ou anos antes. E todos eram por ele depositados nessa grande arca de madeira: a herança que deixava ao mundo. Seriam necessárias décadas de devotado labor por parte de académicos e bibliotecários para que esse achado textual precioso fosse inventariado e largamente publicado, espantando-nos com as suas quantidade, qualidade e heterogeneidade». A arca tornou-se referência e mito. E sabemos bem que significava para o poeta a criação e o culto dos mitos. O certo é que “ainda mais surpreendentes do que os copiosos escritos exumados da arca eram as dúzias de alter egos desconhecidos que, depois de se esconderem lá durante anos, entraram no mundo como se tivessem sido despertados de um sono encantado”. Do filósofo esotérico Raphael Baldaya ao ultra-racional Barão de Teive, passando pelo único heterónimo feminino, o da tuberculosa Maria José, apenas três dos autores criados por Pessoa, tiveram desenvolvimento pleno – Alberto Caeiro da Silva (1889-1915) autor de “O Guardador de Rebanhos” e de “O pastor Amoroso”; Ricardo Sequeira Reis (1887), médico, professor de Latim no liceu, autor de odes clássicas à maneira de Horácio, emigrado no Brasil e Álvaro de Campos, engenheiro naval, formado na Escócia, nascido em Tavira (1890), o mais assertivo e prolífico dos heterónimos pessoanos… Mas o mais importante trabalho de Pessoa em prosa encontra-se no “Livro do Desassossego”, que “ilustra de uma forma magnífica o princípio da incerteza que percorre o seu universo literário”. São quinhentos fragmentos, que apenas viram a luz do dia em 1982, cujo corajoso narrador é Bernardo Soares, um semi-heterónimo, para quem “o único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios”. A magia do desassossego é a coexistência da coerência e da contradição, como marcas da complexidade da vida humana. E Zenith compara esse livro ao de Robert Musil “O Homem sem Qualidades”. Contudo, a ausência e a sobreabundância de qualidades representam as faces contraditórias do homem moderno, que ocupa Fernando Pessoa. 

O TEMPO NECESSÁRIO PARA ENTENDER
Foi preciso tempo, porém, para que os leitores de Pessoa pudessem compreender uma poética de identidade fragmentada. E Eduardo Lourenço foi quem, de modo totalmente original, pôde compreender os elos íntimos dessa misteriosa diversidade em “Pessoa Revisitado”. Talvez tenha sido vantajoso o atraso na revelação da obra crucial, para que a crítica pudesse ultrapassar as primeiras impressões. “O seu universo de partes desligadas, diz Zenith, antecipa a nossa própria mundivivência, com as evoluções na história, na ciência e na filosofia a desenganarem-nos em relação a quaisquer totalidades harmoniosas que alguma vez tenhamos prezado. Por outro lado, tudo o que existe deve, em última instância, ligar-se, uma vez que é parte do existente, e os cosmólogos e filósofos contemporâneos elaboraram em relação à origem do mundo algumas teorias elegantes do quadro global, em que o Big Bang pode ser apenas um acontecimento local”. Recusando o completo e o definitivo, Pessoa interessa-se pelo oculto e a heteronímia pode ser explicada como um meio quase religioso ou alquímico que permite progredir, na viagem espiritual de Fernando Pessoa, que anseia sentir tudo de todas as maneiras possíveis. E há uma citação misteriosa e isolada, entretanto encontrada, de um fragmento da carta de S. Paulo aos Coríntios, que pode ser reveladora: “Eu me fiz tudo para todos, a fim de salvar a todos”. A diversidade é, de facto, uma indelével marca pessoana. Nos amores, tem com Ofélia Queiroz uma relação indecisa e a marca da sexualidade é difusa. Na política, António Mora defende a causa alemã na guerra, enquanto Fernando Pessoa se inclina para os Aliados, apesar do entusiasmo limitado. A verdade é que é a arca, mais do que os testemunhos pessoais, a grande reveladora da vida misteriosa do poeta. Tímido e delicado na conversa, tinha bom sentido de humor, vestia com esmero e era muito educado. Há unanimidade nessa apreciação. E quanto a confissões autobiográficas, encontramo-las espalhadas em toda a parte. Na “Tabacaria”, Campos fala do hipotético amor com a filha da lavadeira e acena ao Esteves pela janela. Em ambos os casos há verosimilhança com a realidade. Richard Zenith procura, no fundo, cartografar, tanto quanto possível, a vida imaginativa do poeta e consegue-o com originalidade e novas descobertas. Como afirmou John Keats, “a vida de um homem digna de valor é uma alegoria contínua”. O que Pessoa imaginou, visionou e projetou foi único na sua vastidão e variedade. - «Sê plural como o universo!» - escreveu de forma imperativa num papel encontrado na arca, na década de 1960. Eis a chave!     

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A ORAÇÃO DE FERNANDO PESSOA

 

1. "Não acredito em Deus porque nunca o vi". "Pensar em Deus é desobedecer a Deus, / Porque Deus quis que o não conhecêssemos / Por isso se nos não mostrou...". Estas são afirmações célebres de Fernando Pessoa.


É verdade: se não houvesse nenhuma experiência de Deus, se ele se não mostrasse, se não se desse nenhuma possibilidade de encontrá-lo, como é que alguém poderia acreditar nele?


À pessoa religiosa Deus manifesta-se tanto na natureza — na sua contingência e ao mesmo tempo na sua beleza, no seu fascínio e nos seus enigmas, remete para uma Fonte criadora —, como na história, concretamente na história da liberdade e nos seus dinamismos: no apelo ao bem e ao respeito incondicional pela dignidade humana em si mesmo/a e nos outros e nesse impulso imparável de transcendência em ordem à realização pessoal e colectiva e da realidade toda, que só no próprio Infinito pode encontrar a sua satisfação adequada.


De qualquer modo, o encontro com Deus só pode dar-se verdadeiramente numa experiência pessoal. É de tal modo decisiva a experiência que Simone Weil, a filósofa e mística, dizia: "De duas pessoas que não fizeram a experiência de Deus, a que o nega está provavelmente mais perto dele do que a que O afirma". Esta experiência pode acontecer em múltiplas ocasiões e de muitos modos: na palavra que nos fala em silêncio no mais profundo de nós, na vivência da beleza sem nome de um pôr do Sol no horizonte sobre o oceano ou no longe da montanha, naquele súbito saber-se a si próprio como dom recebido a partir de uma fonte que jorra desde o abismo, no sentido da vida que de repente se vê ameaçado pela morte, na exaltação sublime de uma sinfonia ou do encontro no amor, no olhar abissal, triste ou saltitante de um ser humano, na solidão insuportável de um abandono, na visita surpreendente de um rosto que nos obriga a um transcendimento total, na recusa existencial radical do absurdo, no apelo suplicante e irrecusável de um esfomeado, no abalo até à raiz provocado pela morte da pessoa amada, no toque irrecusável do ser perguntado e do perguntar sem limites, naquela inquietação que impele permanentemente a pôr-se a caminho, numa experiência única de Jesus Cristo vivo, no acontecimento mais simples, que é, como escreveu o ateu Ernst Bloch, "a mística do quotidiano", sempre em conexão com "a pergunta inconstruível"...


Há sinais de transcendência no mundo. Deus aparece implicado nas experiências radicais e originárias da existência humana, e todas estas experiências são, em última análise, expressão do reconhecimento de que só no Infinito o finito encontra a sua verdade.


A experiência religiosa de Deus é a experiência pessoal mais radical que um ser humano pode fazer. Ela transforma a vida, de tal modo que já nada é como era. Estritamente falando, sobre a relação eu-tu entre Deus e o Homem só pode falar quem fez a experiência. Quem olha de fora é como se estivesse perante o vazio, pois Deus não é objecto de curiosidade objectivante. Mas, quando essa luz interior se acende, a pessoa pode experienciar que a sua existência já não soçobra no nada, não é roída pelo vazio, mas participa no mistério incomensurável, insondável e inesgotável da plenitude do Ser.


2. Fernando Pessoa rezava assim:

"Senhor, Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.


Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faz com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.


Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.


Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a Lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.


Senhor, protege-me e ampara-me. Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim."


Esta era a belíssima oração de Fernando Pessoa, num texto que deve ser de 1912.


O que é rezar?


Muitas vezes, crentes e até não crentes queixam-se de que Deus deve estar surdo. Mas ainda bem que Deus não ouve as nossas orações, pois frequentemente só pedimos disparates. Em vez de pedir o Espírito Santo, como Jesus mandou, pedimos a Deus o triunfo do nosso egoísmo e o abate dos nossos adversários; honra, glória e riqueza para nós, e os outros que fiquem na miséria e sejam nossos servos... Por um lado, queremos ser livres e autónomos e, por outro, desejaríamos que Deus resolvesse todos os nossos problemas... Com a ladainha das nossas petições, quereríamos manter-nos na preguiça, continuar infantis e colocar Deus pura e simplesmente à nossa disposição e serviço...


Afinal, Deus dá-nos tudo o que é bom, e rezar é agradecer e louvar e preparar-se para receber o que Deus tem para nos dar... Rezar é ficar à escuta do que Deus no silêncio tem para nos dizer. Rezar não é a tentativa idólatra de converter Deus ao nosso desejo, mas tentarmos nós próprios converter-nos ao desígnio de Deus, que consiste na liberdade digna e na dignidade livre de todos.


Rezar é fazer a paz dentro de nós e lembrar o essencial e olhar para o Infinito e ver o Divino em todas as coisas e contemplar a Presença viva de Deus no mais íntimo de nós e no rosto de cada homem e mulher...

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 29 de janeiro de 2022