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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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AINDA FIAMA DRAMATURGA: NOTAS SOBRE UMA PEÇA CENSURADA

 

Já aqui analisámos a abordagem criativa global do teatro de Fiama Hasse Pais Brandão: E tivemos ensejo de referir o conjunto dramatúrgico da autora, que desde 1958 escreveu e publicou uma série de peças que à sua maneira marcaram a renovação epocal do teatro português.


Cite-se pois, no seu conjunto, esta dramaturgia que em si mesma merece destaque: designadamente títulos como “Em Cada Pedra um Vão Imóvel”, “O Serão”, “O Cais”, “A Casa”, “Os Chapéus de Chuva”, “O Testamento”, “O Golpe de Estado”, “A Campanha”, “Auto da Família”, e “Quem Move as Árvores”.


Sobre este conjunto dramático, em si mesmo relevante, tivemos ocasião  de referir, num artigo aqui publicado, que “O Testamento” é reeditado no corrente ano, contendo a edição a reprodução de um carimbo da censura, no qual se esclarece que em 4 de setembro de 1963 a peça foi analisada pela Inspeção dos Espetáculos e “Reprovada”, como se escreve no carimbo da IE.


Ora tive já ensejo de referir que nessa época era difícil, por razões políticas e económicas generalizadas, levar à cena e portanto complementar a criação dramática em termos de espetáculo, o que em si mesmo não era nada estimulante… Este comentário é feito precisamente a propósito de um carimbo da Inspeção dos Espetáculos datado de 2 de setembro de 1963 e que considera a peça “Reprovada” (sic).


Ora bem: “O Testamento” é editado neste ano de 2021 (Portugália Editora), e logo na primeira página surge o carimbo de reprovação da IE, datado como referimos de 4 de setembro de 1963. Na época a peça não foi pois representada, mas seria entretanto publicada. E justifica-se, pela qualidade cénica e literária, o comentário.


Desde logo, pela prosa em si. Fiama escreve com grande qualidade e com sentido de espetáculo. A esse propósito, deve aliás citar-se o conjunto de obras que escreveu. E importa ter presente a evolução desta vasta dramaturgia que abarca algo com 15 peças de teatro, entre as peças publicadas e as inéditas.


Luis Francisco Rebello, na ”História do Teatro Português”, refere uma evolução estilística do teatro de Fiama. A propósito da censura, que atingiu alguns espetáculos previstos com obras suas, evoca a evolução a partir, e cita-se, “da revolta anárquica, surrealizante, das suas primeiras obras («Os Guarda-Chuvas», 1962; «O Testamento», 1963) evoluiu para um didatismo que lembra as Lehrstücke de Brecht de que aliás tem sido tradutora diligente”.


E refere então as peças de Brecht traduzidas por Fiama: “A Campanha”, “Auto da Família”, “Quem Move as Árvores”.


E é ainda de citar a fundação, em 1975, do grupo denominado “Teatro Hoje” e a existência de mais alguns títulos, designadamente de peças que não foram publicamente referidas mas que existem!...

 

DUARTE IVO CRUZ

BREVE EVOCAÇÃO DE FIAMA DRAMATURGA

 

Em 1961, portanto há exatos 60 anos, é publicada uma antologia de peças de autores, nessa época iniciáticos, que dedicavam precisamente ao teatro uma recolha, ela própria também genericamente iniciática, de peças de teatro.


Tratava-se de uma afirmação em si mesma significativa de renovadores da arte dramática, para alguns deles não prosseguida mas significativa, da relevância crítica que o teatro ia manifestando, numa época e numa fase mais significativa na criação e na publicação do que na consagração de espetáculo, como bem se entende.


E podem então citar-se peças por vezes esporádicas de autores hoje consagrados na literatura em geral: peças de Yvette Centeno, de Rui Mesquita, de Artur Portela Filho, de Fonseca Lobo, de Augusto Sobral, de Salazar Sampaio e de mais escritores que de uma forma ou de outra marcaram e não poucos continuam a marcar  a criação dramatúrgica  da época e (alguns menos ou bem menos…) de hoje.


Sendo certo que, para muitos, o teatro surge como uma espécie de complementaridade da criação literária e poética, numa época em que era difícil, por razões políticas e económicas generalizadas, levar à cena, e portanto complementarizar a criação dramática em termos de espetáculo, o que em si mesmo não era nada estimulante!...


E nesse aspeto é muito interessante esta reedição fac-similada da peça publicada no corrente ano (“Público”), assinalada por um carimbo datado de 9 de setembro de 1963, de reprovação pela censura, emitido pela então determinante Inspeção dos Espetáculos nesse tipo de intervenções.


Fiama Hasse Paes Brandão publicara em 1958 a peça “Em Cada Pedra um Vão Imóvel” a que se seguiu em 1960 “O Serão”. Em 1963, tal como referi na “História do Teatro Português”, surge “O Museu”, este publicado numa recolha coletiva, intitulado “Novíssimo Teatro Português”, juntamente com peças de Augusto Sobral, José Sasportes, Artur Portela Filho e Maria Teresa Horta. E aí cito ainda outras peças relevantes de Fiama: “O Cais” e “A  Casa”, ambas dos anos 60, “Os Chapéus de Chuva”, “O Testamento” (1962), “O Golpe de Estado” (1962),  “A Campanha” (1963), “Auto de Família” (1964), “Quem Move as Árvores” (1970).


Acresce Luis Francisco Rebello uma intervenção muito concreta da estética teatral ideológica do conjunto de peças de Fiama. Refere os problemas com a censura teatral dominante na época. E acrescenta a renovação da sua obra.


Escreve então Rebello que “da revolta anárquica, surrealizante, das suas primeiras obras («Os Guarda-Chuvas», 1962; «O Testemunho»,1963) evolui para um didatismo” que lembra Brecht.


E mais: “transportando para o palco personagens, episódios e mitos da história nacional – os amores de Pedro e Inês de Castro, os processos da Inquisição, as guerras liberais, as revoltas populares -, nenhuma destas peças tem a estulta pretensão , a que românticos e neo-românticos  cederam, de reconstituir um passado irresistível, mas sim submete-lo a um olhar novo (como diria Brecht a propósito do seu «Galileu») que nos restitui um passado irresistível, mas sim submetê-lo a um olhar novo (como diria Brecht)”… Assim mesmo!


 Veremos ainda outra peça de Fiama: “O Testamento”.

 

DUARTE IVO CRUZ

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

OBRA BREVE
POESIA REUNIDA
prefácio Eduardo Lourenço
Assírio & Alvim

 

De novo com Fiama vou colhendo muito do que colho.

Ela permite-me a lancha a contornar mar pela passagem interior das descobertas, e lá oiço tudo, até as aves.

A verdade é que sempre que leio Fiama Hasse sinto que recebo um legado ao deciframento e lá vou sabendo que cada ser pode ter o tempo da História.

Todavia, este sentir, não apressa os poemas que releio, ou não soubesse o quanto eles me fugiram anteriormente, e eu na lancha, já só escrevia o passado na mesma situação de mim mesma, exatamente no mesmo então.

Desta feita a minha romagem visa a descrição posterior da viagem da leitura.

Espreitam-me os peixes de oiro, é certo, e todos qual completa biografia no olhar, desde a partida da linguagem, à escrita da existência.

Na água, sobretudo, está presente o que não amaina entre a celebração e o celebrado: as palavras sagradas não são de ninguém. Conclui-se.

Hoje escolhi procurar mais os arbustos da poesia de Fiama, do que as arvores, numa consciência oficinal de que os recantos da casa dos poemas se encontram por ali.

Para tanto, tracei um sulco na leitura que abraça – obsessiva - a sugestão deste livro, e, eis que ele não se mostra pós-viagem, antes se dispõe sempre à proximidade de uma origem, bem conhecendo o quanto o vento e o tempo, ambos podem servir de alimento.

 

Teresa Bracinha Vieira

CADA ROCA COM SEU FUSO…

 

A LEMBRANÇA DO “DIABRETE”…
30 de julho de 2019

 

Há oito dias, lembrei uma capa de “O Mosquito”, hoje trago-vos uma velha capa do “Diabrete”, título marcado pela direção de Adolfo Simões Müller (1909-1989), revista nascida em janeiro de 1941. Como sabemos, foi “O Papagaio”, no tempo de Simões Müller, que publicou pela primeira vez em Portugal as aventuras de Tintin. Saído da Renascença, o professor e jornalista tentaria levar consigo as aventuras do repórter belga, o que apenas conseguiu depois de muita persistência para convencer Hergé. Não se esqueça que foi por intermédio do Padre Abel Varzim (1902-1964) que foi conseguida pelo Monsenhor Lopes da Cruz (1899-1969) a tradução pioneira para português das aventuras de Tintin, na altura designado como Tim-tim. Portugal não só foi o primeiro país não francófono a publicar a tradução dessa obra, que se tornaria essencial na história da Banda Desenhada e das modernas Artes Plásticas (colocando Hergé a par de Andy Wharol e Roy Lichtenstein), mas também porque foi onde pela primeira vez se introduziu cor nessa narrativa ilustrada. O “Diabrete” durou até à última semana de 1951 e deu lugar ao “Cavaleiro Andante”. E podemos dizer que Fernando Bento (1910-1996), também gráfico do “Cavaleiro Andante”, foi essencial no caminho seguido pelo “Diabrete”, que se traduziu num claro aperfeiçoamento das histórias de quadradinhos em Portugal, que ganharam uma dimensão que pode comparar-se à melhor evolução extra muros. Com o tempo, a imprensa juvenil foi ganhando maior importância na ilustração e na ligação entre a narrativa e o desenho. Lembremo-nos de que “O Papagaio”, revista fundada em 1935, começou por ter pouca ilustração, apesar da qualidade se ter afirmado desde muito cedo, designadamente com um dos grandes artistas portugueses do século, Júlio Resende (criador de Matulão e Matulinho)… É muito significativo que em Portugal se tenha desenvolvido o género, em ligação estreita com o modernismo e os caricaturistas, desde Almada Negreiros, Stuart, Cottinelli Telmo, Carlos Botelho ou Emmérico Nunes… É essa a genealogia que deve ser lembrada e que chega ao nosso melhor século XIX com Rafael Bordalo Pinheiro. Desde Zé Povinho e Maria Paciência, a Quim e Manecas, indo aos apontamentos de Fernando Bento com Filipim – podemos dizer que há em Portugal uma evidente repercussão da melhor criatividade europeia… 

 

O apontamento que hoje damos é do “Cavaleiro Andante” (1957), mas vem na linha do muito que já encontramos de F. Bento no “Diabrete”…

 

Não resisto ainda à tentação de uma nota final. Tenho estado em permanente contacto com a BBC. Guardo de Conrado o prudente silêncio. Aguardo serenamente sobre qual o caminho escolhido por Boris Johnson – se a pura ilusão se o realismo. E como ele conhece bem a biografia de Winston Churchill, seria bom que relesse com cuidado o discurso de Zurique de 19 de setembro de 1946, de fio a pavio. E sugiro que leia mesmo tudo, não a parte sobre a Europa, mas sobre a Inglaterra, a paz e o desenvolvimento. O Império britânico não é uma abstração histórica. Ter influência real, obriga a ter os pés no chão… Se recuso a mera ironia sobre cabeleiras, obrigo-me a levar a sério a minha anglofilia. O erro maior já foi cometido: fazer um referendo absurdo que só dividiu os britânicos. Por isso, não há referendos constitucionais na Suíça e as decisões fundamentais têm de contar com a maioria das duas câmaras, alta e baixa, a maioria dos cantões e a maioria da população. O que começa mal tarde ou nunca se endireita. Estive ontem aqui em casa a tomar uma bela chávena de chá com skones de receita da minha mãe com os meus queridos amigos Gregor Mc Gregor e Éamon Patrick Longford – que estão deveras apreensivos, temem pelo futuro do Reino Unido, por uma cegueira que corresponde aos tempos mais negros e incertos… Mc Gregor lembra que não há gloriosa Britannia sem a coragem e a inteligência escocesas. E Longford disse ter erradamente julgado que o velho clima de guerra, que tantas vidas custou, tinha terminado, esqueceu-se o que aconteceu na trágica grande fome… Saíram daqui às tantas, com muito pessimismo, mas voltaremos ao tema.

 

Escolhi para terminar o belo poema da Fiama Hasse Pais Brandão, que ontem lembrámos:

 

“O Canto da Chávena de Chá”

Poisamos as mãos junto da chávena
sem saber que a porcelana e o osso
são formas próximas da mesma substância.
A minha mão e a chávena nacarada
– se eu temperar o lirismo com a ironia –
são, ainda, familiares dos pterossáurios.
A tranquila tarde enche as vidraças.
A água escorre da bica com ruído,
os melros espiam-me na latada seca.
É assim que muitas vezes o chá evoca:
a minha mão de pedra, tarde serena,
olhar dos melros, som leve da bica.
A Natureza copia esta pintura
do fim da tarde que para mim pintei,
retribui-me os poemas que eu lhe fiz
de novo dando-me os meus versos ao vivo.
Como se eu merecesse esta paisagem
a Natureza dá-me o que lhe dei.
No entanto algures, num poema, ouvi
rodarem as roldanas do cenário,
em que as palavras representavam
a cena da pintura da paisagem
num telão constantemente vário.
Só o chá me traz a minha tarde,
com a chávena e a minha mão que são
o mesmo pedaço de calcário.
Hoje a bica refresca a água do tanque,
os melros descem da latada para o chão,
e as vidraças devagar escurecem.
As palavras movem-se e repõem
no seu imóvel eixo de rotação
o espaço onde esta mesa de verga
gira nas grandes nebulosas.

 

Agostinho de Morais

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

‘Pregnant Landscape’ de Phoebe Unwin.

 

‘Sentada no jardim vejo o crepúsculo.’, Fiama Hasse Pais Brandão em ‘Cantos do Canto’

 

 A pintura de Phoebe Unwin (aqui) pretende materializar uma ideia que é fecunda, que gera vida e que sobretudo tem a capacidade de ser sentida com o corpo todo.

 

No texto, que acompanhou a exposição ‘Pregnant Landscape’, na Galeria Amanda Wilkinson (Londres) no passado mês de maio, lê-se que Phoebe Unwin não trabalha através de imagens pré-existentes ou através de fotografias – a cultura contemporânea das imagens, que excessivamente circulam diariamente diante dos nossos olhos não tem, propositadamente, nenhuma influência sobre o trabalho que realiza. Unwin faz pinturas – no sentido mais completo de ser uma pintura (um objeto que transporta e expõe uma subjetividade muito pessoal e única).

 

‘Tudo aquilo que está a ser olhado arruma-se no verso com a ordem que coloca os seres em relação recíproca provável mas de evidência falsa.’, Fiama Hasse Pais Brandão em ‘Cantos do Canto’

 

As pinturas criadas em ‘Pregnant Landscape’, são superfície, são matéria e são sugestíveis, mas funcionam sempre como o reverso da abstração (a abstração normalmente é entendida como sendo uma fuga à realidade ou como um purificar do concreto). Ora, nas pinturas de Unwin é o abstrato que desencadeia o figurativo. A pintura é assim tida como uma coisa em si que tem a capacidade de surpreender, de seduzir e de se relacionar individualmente com aquele que frui (e que a partir daí consegue criar um novo conteúdo e um significado único). Unwin sente, por isso, uma grande afinidade com o campo de visão imaginado, com o ponto de vista subjetivo, evitando sempre metáforas, referências diretas ou narrativas. A artista insiste sempre na ativa participação do observador para gerar sentido e significado. Cada pintura é uma transformação de algo abstrato em algo concreto. Cada pintura consegue aglutinar/fundir irrepetivelmente cor, matéria, forma, a marca e o tema.

 

Para Unwin só a pintura consegue a ligação mais completa entre o mundo mais profundo e particular com aquilo que é imediatamente comunicável. É um objeto físico que envolve, em simultâneo, memória, imaginação, escala e corpo.

 

‘Só o meu verde absoluto da paisagem não se move em nenhuma direcção, é o labirinto imóvel alcançado ao meditar na Forma sem o olhar.’, Fiama Hasse Pais Brandão em ‘Cantos do Canto’

 

Ana Ruepp